Ontem, dia 15 de abril de 2019, um incêndio destruiu parte da Catedral de Notre-Dame em Paris, um dos principais templos do cristianismo com mais de oito séculos de história. Para marcar este trágico acontecimento, publicamos a homilia que o Papa Bento XVI proferiu durante sua visita à Catedral, no contexto de uma oração das Vésperas, durante sua Viagem à França em 2008:
Viagem Apostólica à França
por ocasião do 150º Aniversário das
aparições de Lourdes
(12-15 de setembro de 2008)
Celebração das Vésperas com
os Sacerdotes, Religiosos, Seminaristas e Diáconos
Homilia do Papa Bento XVI
Catedral de Notre-Dame,
Paris
Sexta-feira, 12 de setembro
de 2008
Diletos Irmãos Cardeais e
Bispos,
Senhores Cônegos do Cabido,
Senhores Capelães de
Notre-Dame,
Amados sacerdotes e
diáconos,
Caros amigos das Igrejas e
das Comunidades eclesiais não católicas,
Queridos irmãos e irmãs,
Bendito seja Deus que
permite encontrarmo-nos neste lugar tão querido ao coração dos parisienses e de
todos os franceses. Bendito seja Deus que nos concede a graça de Lhe
oferecermos em homenagem a nossa oração vespertina, elevando para Ele o louvor
que merece com as palavras que a liturgia da Igreja herdou da liturgia
sinagogal praticada por Cristo e seus primeiros discípulos. Sim, bendito seja
Deus que vem em nossa ajuda – in adiutorium nostrum –
para fazermos subir até Ele a oblação do sacrifício dos nossos lábios.
Encontramo-nos aqui na
igreja-mãe da diocese de Paris, a catedral de Notre-Dame, que se levanta no
coração da cidade como sinal vivo da presença de Deus no meio dos homens. O meu
Predecessor Alexandre III pôs a sua primeira pedra e os Papas Pio VII e João
Paulo II honraram-na com a sua visita, sentindo-me feliz por me colocar agora
no seu séquito, eu que já tinha vindo aqui há um quarto de século pronunciar
uma conferência sobre a catequese. À vista da beleza do edifício onde nos
reunimos, é difícil não prorromper em ações de graças Àquele que criou a
matéria e também o espírito. Os cristãos de Lutécia tinham já construído uma
catedral dedicada a Santo Estêvão, primeiro mártir, mas depois tornou-se
demasiado pequena e progressivamente, entre os séculos XII e XIV, foi
substituída por aquela que admiramos nos nossos dias. A fé da Idade Média
edificou as catedrais, e os vossos antepassados vieram aqui louvar a Deus,
confiar-Lhe as próprias esperanças e exprimir-Lhe o seu amor. Grandes
acontecimentos religiosos e civis tiveram lugar neste santuário, onde os
arquitetos, os pintores, os escultores e os músicos deram o melhor de si
mesmos. Basta recordar, entre muitos outros, os nomes do arquiteto Jean de
Chelles, do pintor Charles Le Brun, do escultor Nicolas Coustou e dos
organistas Louis Vierne e Pierre Cochereau. A arte, caminho para Deus, e a
oração coral, louvor da Igreja ao Criador, ajudaram Paul Claudel, que veio aqui
assistir às Vésperas do dia de Natal de 1886, a encontrar o caminho para uma
experiência pessoal de Deus. É significativo que Deus tenha iluminado a sua
alma precisamente durante o canto do Magnificat, quando a Igreja
escuta o cântico da Virgem Maria, Santa Padroeira destes lugares, que recorda
ao mundo que o Omnipotente exaltou os humildes (cf. Lc 1,52).
Teatro de conversões menos conhecidas mas nem por isso menos reais, púlpito
onde pregadores do Evangelho, como os Padres Lacordaire, Monsabré e Samson,
souberam transmitir a chama da própria paixão às mais variadas assembleias de
ouvintes, a Catedral de Notre-Dame permanece justamente um dos monumentos mais
célebres do património do vosso país. As relíquias da Vera Cruz e da Coroa de
Espinhos, que acabei de venerar como é costume desde São Luís para cá,
receberam hoje um digno escrínio, que constitui a oferta do espírito dos homens
ao Amor criador.
Sob as abóbadas desta
histórica Catedral, testemunha do intercâmbio incessante que Deus quis
estabelecer entre Si mesmo e os homens, acabou de ressoar a Palavra para ser a
matéria do nosso sacrifício da tarde, sublinhado pela oblação do incenso que
torna visível o nosso louvor a Deus. Providencialmente, as palavras do Salmista
descrevem a emoção da nossa alma com uma precisão tal que não teríamos ousado
sequer imaginar: «Alegrei-me quando me disseram: “Vamos para a casa do
Senhor!”» (Sl 121,1). Laetatus
sum in his quae dicta sunt mihi: a alegria do Salmista, encerrada nas
próprias palavras do Salmo, difunde-se nos nossos corações e aí suscita um eco
profundo. A nossa alegria é ir à casa do Senhor, porque, como nos ensinaram os
Padres, esta casa não é senão o símbolo concreto da Jerusalém do Alto, aquela
que desce até nós (cf. Ap 21,2) para nos oferecer a mais bela das
moradas. «Se nela habitarmos – escreve Santo Hilário de Poitier –, somos
concidadãos dos santos e membros da família de Deus, porque é a casa de Deus»
(Tract. in Psal. 121, 2). E Santo Agostinho acrescenta:
«Este Salmo aspira à Jerusalém celeste... É um cântico dos degraus, que não
são feitos para pessoas que descem mas que sobem... No nosso exílio suspiramos,
na pátria gozaremos; mas entretanto, durante o exílio, encontramos companheiros
que já viram a cidade santa e convidam-nos a correr para ela» (Enarr. in
Psal. 121,
2). Durante estas Vésperas, queridos amigos, com o pensamento e em oração
unimo-nos às vozes inumeráveis de quantos, homens e mulheres, cantaram este
Salmo precisamente aqui, antes de nós, ao longo de séculos e séculos. Unimo-nos
a estes peregrinos que subiam para Jerusalém e os degraus do seu Templo,
unimo-nos aos milhares de homens e mulheres que compreenderam que a sua
peregrinação na terra haveria de encontrar a sua meta no céu, a Jerusalém
eterna, tendo posto a sua confiança em Cristo para conseguirem chegar lá. Na
realidade, que alegria saber que estamos circundados de maneira invisível por
uma tal multidão de testemunhas!
O nosso caminho para a
Cidade santa não seria possível, se não o percorrêssemos na Igreja, germe e
prefiguração da Jerusalém do Alto. «Se o Senhor não constrói a casa, em vão
labutam os seus construtores» (Sl 126,1). Quem mais poderia ser este
Senhor, senão nosso Senhor Jesus Cristo? Foi Ele que fundou a Igreja, que a
construiu sobre a rocha, sobre a fé do apóstolo Pedro. Como diz sempre Santo
Agostinho, «é o próprio Jesus Cristo, nosso Senhor, que edifica a sua casa.
Muitos labutam na sua construção, mas se Ele não intervém na construção, em vão
labutam os construtores» (Enarr. in Psal. 126, 2). Pois bem,
queridos amigos, Agostinho interroga-se sobre quem possam ser estes trabalhadores,
ao que ele mesmo responde: «Aqueles que na Igreja pregam a Palavra de Deus,
todos os ministros dos sacramentos divinos. Todos nós corremos, todos
trabalhamos, todos edificamos»; mas é somente Deus que, em nós, «edifica,
que exorta e incute temor, que abre o intelecto e guia para a fé o vosso
sentimento» (Ibidem). De que maravilha se reveste a nossa ação ao
serviço da Palavra divina! Somos os instrumentos do Espírito; Deus tem a
humildade de passar através de nós para difundir a sua Palavra. Tornamo-nos a
sua voz, depois de termos estendido o ouvido para a sua boca. Pomos a sua
Palavra nos nossos lábios, para a transmitir ao mundo. A oferenda da nossa
oração é-Lhe agradável e serve para Ele Se comunicar a quantos encontramos. Na
verdade, como diz Paulo aos Efésios: «Ele abençoou-nos com toda a espécie de
bênçãos espirituais em Cristo» (1,3), porque nos escolheu para sermos suas
testemunhas até aos confins da terra, tendo-nos para isso eleito ainda antes da
nossa concepção através de um dom misterioso da sua graça.
A sua Palavra, o Verbo, que
desde sempre esteve junto d’Ele (cf. Jo 1,1),
nasceu de uma Mulher, nasceu sob a Lei, «para resgatar aqueles que estavam
submetidos à Lei, a fim de que fôssemos adoptados como filhos» (Gl 4,4-5).
O Filho de Deus encarnou no seio de uma Mulher, de uma Virgem. A vossa catedral
é um vivo hino de pedra e de luz em louvor deste acto único da história da
humanidade: a Palavra eterna de Deus que entra na história dos homens na
plenitude dos tempos, para os resgatar mediante a oferta de Si mesmo no
sacrifício da Cruz. As nossas liturgias da terra, inteiramente dedicadas a
celebrar este acto único da história, não conseguirão nunca expressar
totalmente a sua densidade infinita. Sem dúvida, a beleza dos ritos nunca será
bastante procurada, nem suficientemente cuidada nem assaz elaborada, porque
nada é demasiado belo para Deus, que é a Beleza infinita. As nossas liturgias
terrestres não poderão ser senão um pálido reflexo da liturgia que se celebra
na Jerusalém do céu, ponto de chegada da nossa peregrinação na terra. Possam,
porém, as nossas celebrações aproximar-se o mais possível dela, permitindo-nos
antegozá-la!
Desde agora, é-nos dada a
Palavra de Deus para ser a alma do nosso apostolado, a alma da nossa vida de
sacerdotes. Cada manhã a Palavra desperta-nos. Cada manhã o próprio Senhor «abre-nos
os ouvidos» (Is 50,5), com os salmos do Ofício de
Leituras e das Laudes. E no decurso do dia inteiro, a Palavra de Deus torna-se
matéria da oração de toda a Igreja, que assim deseja dar testemunho da sua
fidelidade a Jesus Cristo. Segundo a célebre fórmula de São Jerónimo, que será
retomada durante a XII Assembleia do Sínodo dos Bispos no próximo mês de
Outubro: «Ignorar as Escrituras é ignorar Cristo» (Prólogo do
Comentário a Isaías). Estimados irmãos sacerdotes, não tenhais medo de
consagrar uma parte considerável do vosso tempo à leitura, à meditação da
Escritura e à oração do Ofício Divino. Quase sem dardes por isso, a Palavra
lida e meditada na Igreja age em vós e transforma-vos. Ela, enquanto
manifestação da Sabedoria de Deus, se se tornar «companheira» da vossa vida,
acabará por ser vossa «conselheira de boas ações», vosso «conforto
nas preocupações e nos sofrimentos» (Sb 8,9).
«A Palavra de Deus é
viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes», como
escreve o autor da Carta
aos Hebreus (4,12).
A vós, queridos seminaristas, que vos preparais para receber o sacramento da
Ordem a fim de participardes na tríplice tarefa de ensinar, reger e santificar,
esta Palavra é entregue como um bem precioso. Graças a ela, se a meditardes
diariamente, entrareis na própria vida de Cristo que sois chamados a difundir
ao vosso redor. Através da sua palavra, o Senhor Jesus instituiu o santíssimo
sacramento do seu Corpo e Sangue; com a sua palavra, curou os doentes, expulsou
os demónios, perdoou os pecados; mediante a sua palavra, revelou aos homens os
mistérios escondidos do Reino. Vós sois destinados a tornar-vos depositários
desta Palavra eficaz, que cumpre o que diz. Conservai sempre em vós o gosto
pela Palavra de Deus! Aprendei, graças a ela, a amar todos aqueles que
encontrardes ao longo do vosso caminho. Ninguém é demais na Igreja, ninguém!
Nela todos podem e devem encontrar o seu próprio lugar.
E vós, estimados diáconos,
que sois colaboradores eficazes dos Bispos e dos sacerdotes, continuai a amar a
Palavra de Deus: vós proclamais o Evangelho no coração da celebração
eucarística; comentais-lo na catequese que dirigis aos vossos irmãos e irmãs:
colocai-o no centro da vossa vida, do serviço ao próximo, de toda a vossa
diaconia. Sem procurar ocupar o lugar dos sacerdotes, mas ajudando-os com
amizade e eficiência, sabei ser testemunhas vivas da força infinita da Palavra
divina!
Quanto aos religiosos,
religiosas e todas as pessoas consagradas, vivem a título particular da
Sabedoria de Deus, expressa mediante a sua Palavra. Queridos consagrados, a
profissão dos conselhos evangélicos configurou-vos Àquele que, por nós, Se fez
pobre, obediente e casto. A vossa única riqueza – a única, a bem dizer, que
superará os séculos e o véu da morte – é precisamente a Palavra do Senhor. Ele
mesmo disse: «O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão»
(Mt 24,35).
A vossa obediência é, etimologicamente, uma escuta, considerando que a palavra
«obedecer» deriva do latim ob-audire, que significa
estender o ouvido para algo ou para alguém. Obedecendo, estendeis a vossa alma
para Aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida (cf. Jo 14,6),
e que vos diz, como Bento ensinava aos seus monges: «Ouve, filho, as
instruções do mestre e presta atenção com o ouvido do teu coração» (Prólogo
da Regra). Enfim, deixai-vos purificar todos os dias por Aquele que nos
disse: «Todo o ramo que dá fruto, Ele [o Pai] poda-o para que dê ainda mais
fruto» (Jo 15,2).
A pureza da Palavra de Deus é o modelo da vossa própria castidade; garante a
sua fecundidade espiritual.
Com confiança indefectível
na força de Deus que nos redimiu «na esperança» (cf. Rm 8,24)
e que quer fazer de nós um único rebanho sob a guia de um só pastor, Jesus
Cristo, rezo pela unidade da Igreja. Saúdo novamente com respeito e afeto os
representantes das Igrejas cristãs e das Comunidades eclesiais, que vieram
rezar fraternalmente conosco as Vésperas nesta catedral. A força da Palavra de
Deus é tão grande, que todos nós podemos ser confiados a ela, como na sua época
fez São Paulo, nosso intercessor privilegiado no corrente ano. Ao despedir-se
em Mileto dos anciãos da cidade de Éfeso, ele não hesitava em confiá-los «a
Deus e à palavra da sua graça» (At 20,32), alertando-os contra toda a
forma de divisão. É o sentido desta unidade da Palavra de Deus, sinal, penhor e
garantia da unidade da Igreja, que peço ardentemente ao Senhor que faça crescer
em nós: não existe amor na Igreja sem o amor pela Palavra, não há Igreja sem
unidade em redor de Cristo Redentor, não existem frutos de redenção sem amor a
Deus e ao próximo, segundo os dois mandamentos que resumem toda a Sagrada
Escritura.
Amados irmãos e irmãs, temos
em Maria Santíssima o mais belo exemplo de fidelidade à Palavra divina. Esta
fidelidade foi tão grande que se fez Encarnação: «Eis a serva do Senhor;
faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1,38)
- disse Ela com confiança absoluta. A nossa oração da tarde retoma o Magnificat d’Aquela
que todas as gerações chamarão bem-aventurada, porque acreditou no cumprimento
das palavras que lhe tinham sido ditas da parte do Senhor (cf. Lc 1,45);
contra toda a esperança Ela esperou na ressurreição do seu Filho; amou a
humanidade a ponto de à mesma ser dada por Mãe (cf. Jo 19,27).
Maria «sente-Se verdadeiramente em casa na Palavra de Deus, dela sai e a ela
volta com naturalidade. Fala e pensa com a Palavra de Deus; esta torna-se
palavra d’Ela, e a sua palavra nasce da Palavra de Deus» (Enc. Deus caritas est, 41). Podemos dizer-lhe com
serenidade: «Santa Maria, Mãe de Deus, Mãe nossa, ensinai-nos a crer,
esperar e amar convosco. Indicai-nos o caminho para o seu reino» (Enc. Spe salvi, 50). Amém.
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