Publicamos aqui as homilias do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, proferidas durante as celebrações da Semana Santa deste ano na Sé Patriarcal de Lisboa:
Homilia de Domingo de Ramos
A Paixão de Cristo torna-se
Páscoa para todos
Iniciamos a Semana Maior. É oportunidade e graça para
aprofundarmos os motivos, também maiores, da nossa vida e da nossa fé. Não pode
ser apenas o calendário, no primeiro plenilúnio desta Primavera. Trata-se, isso
sim, da novidade evangélica, que há de qualificar um tempo novo.
A Liturgia católica preenche estes dias com sinais
expressivos dos acontecimentos celebrados. Tão expressivos e até vistosos que,
aqui e ali, se tornam apelo turístico, com encenação e reclame… É natural que
assim seja, mas será pena se for isso só. Não chega e redobra-nos o cuidado com
possíveis distrações.
Porque não se trata de distrair os sentidos, mas de
converter as vidas, a partir dos momentos definitivos que Deus quis viver
conosco na Páscoa de Jesus. Na sua paixão, que redime a paixão do mundo. A
nossa própria, do que passamos e os outros padecem, longe ou perto – e muito
perto até.
Ao longo destes dias, estando realmente atentos,
acompanharemos os últimos episódios de Jesus neste mundo, como era então, tão
distante no tempo e tão próximo no essencial. Uma glorificação breve e
equívoca, ao entrar em Jerusalém entre palmas e hosanas. Os últimos diálogos
com os seus discípulos, outros tantos avisos sobre o que previa para depois e
ainda agora. A ceia em que tudo ultimou, oferecendo-se por nós e para nós. O
combate final – a “agonia” do horto -, vencendo, por si e por todos, a última
etapa para chegar a Deus. A condenação que se seguiu, por parte de quem não
aceitava que Deus se aproximasse tanto e exigisse tudo. O tormento final, de
flagelos, espinhos e pregos, que lhe massacraram o corpo, já por si entregue.
Sobrou-nos a Cruz, novo centro do mundo em atração total, como prometera: «Eu,
quando for erguido da terra atrairei todos a mim» (Jo 12,32). Por isso aqui
estamos e é só o que importa.
Esta sim, caríssimos irmãos – esta sim e esta sempre – é a
razão de estarmos aqui, iniciando a Semana que Jesus santificou, razão única,
bastante e salutar. É certo que a Liturgia é pródiga em palavras e sinais. Mas
concentremo-nos mais na Cruz que nos salva, assumindo-a também.
Aquela multidão de discípulos aclamava o Messias a entrar na
cidade, com os sinais proféticos do reino anunciado. Sinais proféticos e já
contraditórios com as entradas normais dos triunfos mundanos. Pois assim a
anunciara o profeta Zacarias: «Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos
de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti; Ele é justo e
misericordioso; vem humilde, montado num jumento…» (Zc 9,9). Jesus aceitou o
entusiasmo, deixando-os gritar, ou gritariam as pedras…
Retenhamos o passo, tão insólito como determinante. É assim
que Jesus Cristo continua a entrar na cidade e na nossa vida. Como Messias
humilde, que vence porque convence. Somos seus discípulos quando O reconhecemos
e aclamamos deste modo, apenas deste modo, com a mesma humildade e verdade, no
dia-a-dia em que nos chega.
Não passou muito tempo até se ouvirem outros gritos, no
pretório de Pilatos, pedindo a sua morte. De Jesus, que de novo aceitou o
clamor, sujeitando-se à mais injusta das condenações.
Aí O temos, igual a si próprio. – E nós, onde estamos, assim
como somos? Dos Ramos ao pretório, Jesus teve razão para se decepcionar com
multidões desencontradas, entre hosanas e apupos. Perguntemo-nos nós agora se
também nos decepcionamos com Jesus, quando Ele não corresponde ao que desejamos
para já – e como o desejamos ainda. Quando o deixamos “morrer” no horizonte das
nossas vidas por converter, no que mais profundamente desejamos.
Porque, da nossa parte, a clareza tem de ser total, como o é
da sua. Para desejos vãos a resposta de Jesus é nenhuma. Como ouvimos, Pilatos
enviou-O a Herodes, que ficou contente, à espera de milagres e coisas de
espantar. Resultado: às muitas perguntas de Herodes, Jesus nada respondeu.
Fixemo-nos neste ponto ao iniciar a Semana Maior, para que
seja de franca conversão, com disponibilidade total da nossa parte para seguir
Jesus na obediência inteira a Deus Pai. Nada mais nos oferece, pois só isso nos
salva.
- Quando Jesus nos levar consigo à obediência perfeita à
vontade do Pai, ainda a mais custosa, para ser salvadora, como aconteceu no
Horto das Oliveiras, continuaremos com Ele, como estamos agora?
Deixemo-nos surpreender pela Paixão de Cristo na paixão do
mundo. Dito doutro modo, acompanhemo-lo como Ele mesmo nos acompanha, por
imprevisível que seja. Como Simão de Cirene viu converter-se o caminho de casa
em caminho do Calvário: «Lançaram mão de um certo Simão de Cirene, que vinha do
campo, e puseram-lhe a cruz às costas, para a levar atrás de Jesus.»
Vivamos estes dias como surpresa de Deus. Facilidades ou
dificuldades vivamo-las com Cristo, que as viveu conosco, antes de nós e por
nós. Podemos até desconfiar do que prevemos, por ser demasiado nosso. Para
confiarmos plenamente na vontade de Deus, vitoriosa sempre, como o foi na Cruz.
Como aquelas mulheres receberam a advertência que não
esperavam: «Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai antes por vós
mesmas e pelos vossos filhos.» Como os seus carrascos escutaram um perdão que
nunca suporiam: «Pai perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.» Como um dos
crucificados ouviu o que todos almejamos ouvir: «Em verdade te digo: Hoje
estarás comigo no Paraíso.». Como Deus Pai escutou da sua boca o que espera por
fim ouvir das nossas: «Pai, em tuas mãos entre o meu espírito!»
E assim mesmo, apenas assim, a Paixão de Cristo se torna
Páscoa para todos.
Sé Patriarcal, 14 de abril de 2019
+ Manuel,
Cardeal-Patriarca
Homilia na Missa Crismal
Renovo a ação de graças pelo
vosso sacerdócio!
Preparamo-nos imediatamente para a celebração pascal e assim
mesmo aqui estamos, para que tal aconteça com muito fruto para todos. Está o
Povo de Deus, tão numerosamente representado – féis leigos, irmãos e irmãs
especialmente consagrados, diáconos e sacerdotes do clero secular e regular da
Diocese de Lisboa - nesta Missa justamente “crismal”, pela graça que daqui
brotará com os óleos sacramentais em que o Espírito se derrama.
É um momento feliz e verdadeiro da Igreja que somos para o
mundo que servimos. Verdadeiro, porque nos exprime e qualifica, como Povo de
Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito. Feliz, porque nos reencontramos
assim, ganhando ânimo para correspondermos cada vez mais e melhor ao que Deus
nos pede e o mundo precisa.
Saúdo-vos muito cordialmente a todos, reconhecendo e
agradecendo o que o Espírito nos oferece em cada um de vós, na variedade dos
carismas e na fidelidade com que os viveis para a Igreja e a missão.
Ouvimos no Evangelho aquele momento crismal por excelência
que qualificou o ser e a missão do próprio Jesus, por isso mesmo o “Cristo”:
Assim leu e a si mesmo aplicou o trecho profético: «O Espírito do Senhor está
sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me
enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista os cegos, a restituir a
liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor».
Reparemos que tudo se passa em contexto celebrativo, como
começava o trecho: «Segundo o seu costume, Jesus entrou na sinagoga a um sábado
e levantou-se para fazer a leitura». A alusão é muito significativa para nós,
que dedicamos este ano pastoral na diocese à formação litúrgica e no conjunto
das dioceses portuguesas ao estímulo missionário. Como escreve o Papa Francisco
na Exortação Apostólica Gaudete et
Exsultate (nº 142) são duas realidades interligadas, projetando-se a
Liturgia na Missão: «Partilhar a Palavra e celebrar juntos a Eucaristia
torna-nos mais irmãos e vai-nos transformando pouco a pouco em comunidade santa
e missionária».
Mais santos e mais missionários é o que havemos de ser, para
seguirmos Jesus Cristo e reproduzirmos os seus gestos de proximidade e
acompanhamento concreto de pessoas e situações que pedem resposta capaz. Quando
olhamos à nossa volta, não faltam dramas e tragédias iniludíveis.
Tanto há para redimir, de facto, com a redenção que Cristo
anunciou naquele dia e é programa para a Igreja de sempre. Para redimir a
própria vida, da concepção à morte natural de cada ser humano, ameaçada por
muitas ações e omissões. Vítimas de inadmissíveis violências, sejam menores ou
frágeis, mulheres ou idosos; vidas por realizar, carentes de formação,
atividade e habitação condignas; migrantes à procura de condições de subsistência
pessoal e familiar; reclusos e ex-reclusos por reintegrar socialmente; pessoas
sós e doentes necessitados de cuidados continuados; vítimas de vários tráficos
que persistem, degradando-nos a todos como humanidade…
A lista poderia continuar e cada ponto há de ser um encargo
para a sociedade que integramos, como para nós, discípulos de Cristo. Aproveito
a ocasião para saudar e agradecer muito reconhecidamente a todos quantos, no
âmbito religioso e na sociedade inteira, se entregam à resolução destes problemas.
As suas pequenas ou grandes vitórias em qualquer das frentes, essas sim,
deveriam encabeçar as notícias que se difundem, para nos motivar ainda
mais.
O olhar de Jesus foi sempre atento, a sua palavra
esclarecedora e o seu gesto preciso. Viu e fez ver aos seguidores o que
realmente acontecia e o que era preciso fazer. Não deixou ninguém indiferente,
exceto quem não tivesse olhos para ver e ouvidos para ouvir.
Houve “redenções” imediatas, físicas e morais, que os
Evangelhos nos contam. Mas na vida de Jesus tudo é sinal de realidades
absolutas e definitivas. Doutra liberdade, doutra luz, duma graça maior e
redenção total. Essa mesma de que o ministério sacerdotal é exercício.
Povo sacerdotal aqui reunido e caríssimos irmãos sacerdotes:
Dos muitos males que o afligem, o mundo precisa de ser libertado no que tem de
mais profundo e atávico. Males que se enraízam no coração humano, modo de dizer
no que em cada um de nós é mais contraditório ainda. Reparemos no que São Paulo
não hesita em escrever de si mesmo e da absoluta necessidade da redenção de
Cristo. São palavras fortíssimas que nos devem dar que pensar e converter:
«Sim, eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita coisa boa; pois o
querer está ao meu alcance, mas realizar o bem, isso não. É que não é o bem que
eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico» (Rm
8,18-19).
Para dizer de seguida que o que não poderíamos resolver por
nós nem pela letra e os sacrifícios da antiga Lei, resolveu-o o próprio Deus no
sacrifício de Cristo: «Deus fez o que era impossível à Lei, por estar sujeita à
fraqueza da carne: ao enviar o seu próprio Filho, em carne idêntica à do pecado
e como sacrifício de expiação pelo pecado, condenou o pecado na carne para que
assim a justiça exigida pela Lei possa ser plenamente cumprida em nós, que já
não procedemos de acordo com a carne, mas com o Espírito» (Rm 8,3-4).
Não nos pareça o trecho como algo muito complexo e só
entendível por alguns. Para nós sacerdotes, como para todo o povo sacerdotal, é
o cerne da questão e da salvação que nos toca. Não chegamos a Deus sem Deus,
mas só retornando por Jesus ao Pai, no Espírito que Os une.
Cumpre recordar aqui o que há quarenta anos escreveu São
João Paulo II, na Encíclica Redemptor
Hominis (nº 9), portal do seu pontificado: «…não esqueçamos, nem sequer por
um momento, que Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, se tornou a nossa
reconciliação junto do Pai. Ele precisamente e só Ele satisfez ao amor eterno
do Pai, àquela paternidade que desde o princípio se expressou na criação do
mundo, na doação ao homem de toda a riqueza do que foi criado, ao “fazê-lo
pouco inferior aos anjos”, enquanto criado “à imagem e semelhança de Deus”».
Ou seja, só em Cristo e no Espírito de Cristo conseguimos a
perfeita filiação divina. Filiação que, dando todo o lugar a Deus Pai, dá
também todo o lugar aos outros e à criação inteira. Foi ainda São Paulo a
dizê-lo com grande inspiração e rasgo: «Pois até a criação se encontra em
expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus. De facto, a
criação foi sujeita à destruição – não voluntariamente, mas por disposição
daquele que a sujeitou – na esperança de que também ela seja libertada da
escravidão da corrução, para alcançar a liberdade dos filhos de Deus» (Rm
8,19-21).
Faz-nos muito bem meditar nestas passagens e noutras
coincidentes, pois nelas residem o que podemos designar como realismo cristão e
aquela “ecologia integral” em que o magistério pontifício tem insistido.
Realismo particularmente sentido em tempos difíceis, em que a própria
sobrevivência estava sempre em risco, pareceu ultrapassado noutros mais
recentes, em que tudo parecia garantido para satisfações imediatas e futuros
previsíveis. – Para quê recorrer à graça divina, se a vida podia ser bastante e
gratuita, ao menos para alguns?
Diante desta presumida riqueza, a proposta evangélica nada
teria a oferecer. E também por isso Jesus dizia ser difícil a um rico entrar no
Reino dos Céus. Na verdade, a primeira condição é querer entrar, pedir para
entrar no mundo novo que só Deus oferece, quando Cristo o atinge na humanidade
que redime. O preço que pagou foi fazer-se um de nós, para nos fazer de Deus.
Foi este o sacrifício e a oferta que permanece.
Quando a nossa vida não tem como princípio, meio e fim o sacrifício
de Cristo, não é, nem se pode chamar “cristã”. É apenas a nossa vida, melhor ou
pior, como vai acontecendo e definhando. A vida cristã ou, melhor dizendo, a
vida de Cristo em nós, só acontece a partir do que nos conseguiu na sua Páscoa.
Para nós sacerdotes, esta é a convicção que nos leva a ser
sinais ativos do sacrifício de Cristo, para cuja celebração e herança
convocamos a todos, a fim de se tornarem um povo sacerdotal também. Anunciamos,
celebramos e partilhamos a redenção que Jesus nos obteve, oferecendo na
Eucaristia o seu sacrifício, em cada sacramento a sua graça, em toda a caridade
o seu amor. Nada menos do que isto nos chamaria ao ministério e nada menos nos
pedem a Igreja e o Mundo.
Resume-o o prefácio desta Missa Crismal, a Deus Pai dirigido,
com palavras que nos faz bem soletrar e reter, especialmente a nós sacerdotes,
por tão bem dizerem o que somos e fazemos: «[Os sacerdotes] renovam em nome de
Cristo o sacrifício da redenção humana, preparando para os vossos filhos o
banquete pascal; dirigem com amor fraterno o vosso povo santo, alimentam-no com
a palavra e fortalecem-no com os sacramentos. Como verdadeiras testemunhas da
fé e da caridade, comprometem-se generosamente a cumprir a sua missão, prontos,
como Cristo, a dar a vida por Vós e pelos homens seus irmãos».
Esta é a nossa verdade sacerdotal e ministerial, aqui tão
intensamente revivida, no meio do Povo Deus a quem e por quem se oferece. Pelo
que conheço e sei de tantos de vós que aqui estais, esta é maravilhosamente a
vossa vida, para bem de muitos. Com todo o Povo de Deus aqui presente, redobro
a ação de graças pelo vosso sacerdócio!
Sé Patriarcal, 18 de abril de 2019
+ Manuel,
Cardeal-Patriarca
Homilia na Missa da Ceia do Senhor
Vivamos eucaristicamente o tempo
inteiro!
Dois mandamentos nos deu o Senhor Jesus, como acabamos de
ouvir. O primeiro, uma e outra vez, na epístola de São Paulo: «O Senhor tomou o
pão e, dando graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu Corpo, entregue por vós.
Fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo tomou o cálice e disse: “Este
cálice é a nova aliança no meu sangue. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o
em memória de mim”». É o mandamento que cumprimos em cada celebração
eucarística.
O segundo mandamento, ouvimo-lo no Evangelho de São João,
quando disse aos discípulos: «Se eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés,
também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que,
assim como eu fiz, vós façais também». Importa cumpri-lo igualmente.
Bem recebidos e compreendidos, estes dois mandatos
aproximam-se na intenção. Na verdade, o corpo e o cálice oferecidos são a vida
de Cristo entregue a Deus Pai em favor de todos; e a todos entregue, da parte
de Deus Pai. Como dissera: «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu
Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna»
(Jo 3,16).
E isto mesmo realizado à maneira de Deus, ou seja, do modo
mais humilde e até serviçal. Num gesto próprio dos servos, lavando os pés dos
comensais. Num gesto de absoluta entrega, sem reserva alguma.
O que em Jesus foi gesto torna-se para nós mandato,
celebrando a Eucaristia numa vida eucarística, unindo o serviço de Deus com o
serviço dos irmãos. Melhor dizendo, incluindo-nos no movimento divino em que
Deus nos serve a nós. Deus que em todos nos espera também. Ouvimos Jesus a
insistir com Pedro para que o deixasse lavar-lhe os pés, condição necessária
para participar na vida que lhe oferecia. Pedro e os outros acabaram por
perceber. Connosco agora, é disso mesmo que se trata.
Não é fácil, não é nada fácil. Não condiz com a ideia
espontânea que faríamos de Deus, projetando nele o que afinal é só nosso,
exageradamente nosso. Bem pelo contrário, o que o Evangelho tem de próprio e
autêntico é convencer-nos precisamente do que temos tanta dificuldade em
aceitar, tão diferente é dos nossos cálculos e das boas intenções que não
chegam.
Mesmo na esplêndida liturgia deste Tríduo poderíamos ficar
só pelo cerimonial, se não atentássemos seriamente no significado das palavras
proclamadas e dos gestos nunca por demais repetidos.
Não será assim, não pode ser assim. Estamos aqui para
assimilar profundamente, por ação do Espírito, a Ceia e a oferta do Senhor Jesus;
ao Pai e por todos, do Pai para todos. Ou, como pedimos na coleta, para
recebermos «a plenitude da caridade e da vida».
É este o mandato e esta a salvação. Pelas mãos de Cristo,
multiplicadas nas mãos dos ministros da Nova Aliança, os daquele momento e os
que se seguiram e seguem. E nos gestos humildes e serviçais com que todos
quantos O comungam lhe prolongam a atitude. E assim mesmo se salvam, porque já
vivem a vida de Deus, como ela é realmente, generosa e humilde. Como ela pode e
deve acontecer também conosco e através de nós.
Não faltam locais, ocasiões e urgências para transportarmos
para a vida a caridade eucarística, traduzindo o sacramento em serviço. Não
faltam nas famílias, não faltam nas comunidades, não faltam nas mil e uma
articulações da sociedade que integramos.
Não faltam nas famílias que, sendo cristãs, viverão da
caridade de Cristo na atenção permanente a cada um dos seus membros, dos mais
novos aos mais idosos, dos saudáveis aos enfermos, dos presentes aos ausentes.
Quando o dia-a-dia não parta tanto da agenda de cada um, ainda que importe,
como do que mais requeira ajuda, previsível ou não.
Não faltam nas comunidades, que tendo a fonte e o cume na
Eucaristia a que se ordenam, dela haurem a vida e a missão. Comunga cada um o
Pão de todos, mesmo para quem não o possa por alguma razão receber, e sem
privatização possível. – Como tudo seria melhor e mais perfeito se cada Missa
redundasse em missão, juntando plenamente a Santa Ceia ao não menos Santo Lava
Pés!
Não faltam expetativas eucarísticas na própria sociedade que
integramos. Saibam ou não saibam do que se trata, todos aguardam aquela
salvação que só o serviço mútuo traduz e opera. Sabendo-o nós, devemo-lo aos
outros.
Nos primeiros séculos cristãos tudo isto era novo e
interrogava quem ouvia. Reuniam-se em local discreto, naquele primeiro dia de
cada semana, para experienciar mais fortemente a vitória do Ressuscitado e
viverem entre si a comunhão com Ele e entre todos. Era-lhes evidente e
indispensável a promessa de Cristo: «Onde estiverem reunidos, em meu nome, dois
ou três, eu estou no meio deles!» (Mt 18,20). Também o repetimos no diálogo
litúrgico: «O Senhor esteja convosco! Ele está no meio de nós!» - Como há de
ser grande a consequência, não faltando à Eucaristia e manifestando-a na vida!
Mostravam depois um modo diferente de ser e servir, tão
conforme com o que fora de Cristo, de quem ganharam o nome… Servindo por isso
mesmo a vida, no seu arco completo, como Ele a servira e restaurara em tantos
passos evangélicos. Criando uma nova cultura de proximidade, de perdão e de
paz… Tudo isto foi plenamente eucarístico, quando foi assim e tantas vezes foi.
Como ainda hoje, em muitos lugares onde os cristãos continuam a ser mártires,
testemunhas, da sua fé – da nossa fé.
Como agora pode e deve ser, conosco também e através de nós.
O Espírito ultrapassa-nos e trabalha em todo o mundo, antes e depois de lá
chegarmos. Mas para nós, que sabemos estas coisas, a responsabilidade
eucarística é prioritária e maior.
Temos nos gestos eucarísticos de Cristo, como hoje os
evocamos e celebramos, o modelo e o estímulo do que tudo deve ser. Para que
tudo se ofereça e partilhe, como em Cristo se assume a criação inteira para a
restaurar em Deus, comunhão absoluta.
Vivamos eucaristicamente o tempo inteiro!
Sé Patriarcal, 18 de abril de 2019
+ Manuel,
Cardeal-Patriarca
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
Deixemo-nos surpreender pela
Paixão de Cristo
Deixemo-nos surpreender uma vez mais pelo que acabamos de
ouvir. Retenhamos as palavras que nos narraram a paixão de Cristo. Deixemos que
a sua figura nos ressalte delas, com a espessura que dois milênios de meditação
nunca esgotam.
Esta soleníssima tarde não tem outro objetivo, como aliás o
sagrado tríduo, que graças a Deus celebramos. Graças a Deus, digo bem, pois
nenhum de nós se concentraria em Cristo sem a luz com que Deus Pai nos abre os
olhos para O ver. E para vermos nele toda a paixão da humanidade, como a assume
e redime. Como nos assume e redime a cada um de nós, assim assintamos,
correspondendo à mesma graça. Não é por acaso, mas por graça, que a Cruz ganhou
e mantém tal poder de atração. Sabemos que ela se impôs aos próprios e
primeiros cristãos, vencendo a natural resistência e até repugnância que
provocaria, como sinal do crudelíssimo suplício. Suplício e maldição, como era
morrer numa cruz.
Acontecera porém a ressurreição, que fez da Cruz um “trono
da graça”, para usarmos a expressão que escutamos na Carta aos Hebreus.
Retomaram por isso, como retomamos agora nós, com pleno realismo cristão, as
palavras do cântico de Isaías, tão antigas como novíssimas: «Vede como vai
prosperar o meu servo: subirá, elevar-se-á, será exaltado. Assim como, à sua
vista, muitos se encheram de espanto – tão desfigurado estava o seu rosto que
tinha perdido toda a aparência de um ser humano -, assim se hão de encher de
assombro muitas nações e, diante dele, os reis ficarão calados, porque hão de
ver o que nunca lhes tinham contado e observar o que nunca tinham ouvido».
Tal e qual assim, como decerto sentirá cada um dos que aqui
estamos, como as multidões que por esse mundo além se voltam hoje, gratas e
contritas, para a Cruz de Jesus Cristo. Nela se revela a glória de Deus, ou
seja, a vida divina como oferta. E nela se revela a nossa glória, a nossa vida
como graça. Por isso São Paulo disse que toda a sua glória estava na Cruz de Nosso
Senhor Jesus Cristo, e o dizemos e cantamos nós também.
Não a reduzamos a ornamento ou a símbolo religioso entre os
demais. É o nosso sinal de cristãos, como o recebemos no batismo, para que toda
a vida ganhe também a sua forma: continuamente para o alto e para o Pai e
igualmente para todo o lado em que os outros nos esperam.
Mas tudo isto acontecerá apenas se for a vida de Cristo em
nós, como o seu Espírito permite acontecer. E não em abstrato, mas no mais
concreto dos sentimentos compartilhados. Sentimentos que a paixão que escutamos
tão bem ilustra.
Fixemo-nos nalguns. E antes de mais, no modo como Jesus se
mantém a si mesmo, quando tudo a seu lado se agita e desfaz. A começar no
círculo dos discípulos: Judas Iscariotes trai-o e vende-o, talvez num misto de
desilusão e ganância, por Jesus não ser o líder político-religioso que ele
esperava e mais valesse ganhar alguma coisa com a sua entrega… Pedro tem um
assomo de violência, que Jesus logo reprime, pois se defende por dentro da
intenção de ir até ao fim, igual a si próprio e viesse o que viesse… Os outros
discípulos aproveitam a cobertura que Jesus lhes dá e fogem, sobrando apenas um
ao pé da Cruz. Da Cruz que ele aceita para si, carregando afinal a todos – a
eles e a nós, discípulos recuperados, ou opositores ainda.
Sabemos e confessamos que assim é, e por isso estamos aqui,
com sentimentos e evidências que só a luz divina proporciona. E revemos Jesus
diante de Anás, antes e depois daquela bofetada que o atingiu na face, mas não
na segurança interior que mantinha. E depois diante de Pilatos, nas respostas
que dava e sobressaiam da gritaria da multidão que lhe pedia a morte. Morreram
eles depois, como é sorte comum dos mortais, mas não as palavras que disse e
vivamente ecoam. E estas, muito especialmente: «Sou rei. Para isso nasci e vim
ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade
escuta a minha voz».
Somos da verdade de Cristo, somos da verdade da Cruz.
Sabemos que a verdade essencial da vida é a verdade total da entrega, pois só
ganhamos o que oferecemos. Jesus percorreu o nosso caminho humano, sublimando-o
com sentimentos divinos.
Sentimentos que se consubstanciam e traduzem nisso mesmo de
viver inteiramente uns para os outros, como entre Jesus e o Pai a entrega é
mútua e total, no Espírito em que mutuamente se doam. Jesus “expirou”,
devolvendo ao Pai o Espírito que o habitava, na sua vida humana também. O mesmo
Espírito que nos doou na água que lhe saiu do lado, com o sangue da vida que
nos concede agora. Para assim vivermos e convivermos em todas as dimensões da
nossa existência, eternizando-nos no amor que vence a morte e nunca acabará.
Esta é a verdade pessoal de Jesus, como se apresentava
diante de Pilatos, que não a compreendeu, e de todos quantos lhe pediram a morte.
Esta é a verdade essencial de nós todos, como a confessamos e celebramos aqui.
Irradia da Cruz para o mundo inteiro, para nós e através de nós onde
estivermos, como devemos realmente estar.
Se fazemos tanta vez o sinal da Cruz, sejamo-lo nós próprios
para os outros, nos gestos e atitudes de cada dia e situação: Recebemos no
batismo o sinal da Cruz. Pois que ela marque a nossa vida com a sua forma,
inteiramente para Deus Pai em louvor e inteiramente para os outros em serviço.
Os outros, nos quais nos espera Deus Filho. Para os outros, como nos impele
Deus Espírito. Benzemo-nos antes das refeições. Pois que a Cruz nos faça
partilhar o pão com quem tem fome e a atenção com todos os comensais de hoje e
amanhã, na mesa larga da caridade de Cristo, como se lhe alargam os braços da
Cruz.
Usamos uma Cruz no fio que trazemos ao peito. Pois que ela
nos toque profundamente o coração, fazendo-nos ouvir o brado que Cristo lança
no Calvário do mundo. Brado onde ressoam os gritos mal sufocados de quem sofre
de privações e violências, de quem pena em solidões e esquecimentos, de quem
quase desiste, velho ou novo.
Na coincidência profunda da nossa vida com a Cruz de Cristo
está a verdade que nos salva e a atração que nos chama. Essas mesmas que
marcarão de novo a Páscoa de agora. Assim a desejemos convictos, assim a
recebamos deveras.
Sé Patriarcal, 19 de abril de 2019
+ Manuel,
Cardeal-Patriarca
Homilia na Vigília Pascal
Surpreende-nos uma vida
triunfante
Podemos perguntar-nos pela razão de estar aqui esta noite,
de ouvirmos o que ouvimos e vermos o que vemos… Podemos e talvez devamos, para
que tudo fique mais claro na nossa consciência e definido na nossa vida.
No antigo Israel era assim que os mais novos perguntavam
pela Páscoa, ouvindo a resposta do que Deus fizera pelos seus antepassados e
estava disposto a fazer com eles, em gestos libertadores. Agora e conosco, tudo
nos fala da mesma disposição divina e tudo nos pede inteira adesão humana.
Como acontecerá decerto. Os próprios ritos de iniciação, que
faremos com alguns e retomamos para todos os que aqui estamos, significam tal
adesão, vivendo intimamente a Páscoa, passando na verdade com Jesus para o Pai.
Por um caminho certo, como o que o Evangelho nos acaba de anunciar.
«Porque buscais entre os mortos Aquele que está vivo? Não
está aqui, ressuscitou!» O que aquelas mulheres, tão fiéis a Jesus, ouviram
então, ouvimo-lo nós também, tendo realmente ouvidos para ouvir.
Eram fiéis, voltaram ao sepulcro, encontraram-no vazio,
ouviram o anúncio. É conosco agora: Acompanhamos o Senhor no Sagrado Tríduo,
não esquecemos a sua sepultura, voltámos esta noite e ouvimos o Evangelho da
ressurreição.
Fidelidade, persistência e reencontro, ultrapassando este as
expetativas. Já não velamos um morto, surpreende-nos uma vida triunfante. Cada
um dos momentos importa e também a sequência. Aquelas mulheres eram fiéis desde
a Galileia e assim permaneceram até ao Calvário, mesmo quando quase todos
fugiram. Voltaram logo que puderam, para concluir os ritos da sepultura, que
tão apressada fora. Sendo fiéis, ouviram antes dos outros o que nunca ninguém
ouvira: Jesus vencera a morte, o seu cadáver sepultado era agora corpo
glorioso, infinita presença em qualquer espaço e tempo. Como o celebramos aqui,
como muitos o celebram por esse mundo fora, mesmo onde arriscam a vida para o
fazerem também.
Dando todo o lugar às surpresas de Deus, é normalmente assim
que acontece. Por isso Jesus dissera que «quem procura, encontra» (Lc 11,10). A
persistência das mulheres deu-lhes antecedência na descoberta. Estou certo de
que quem mais seguiu Jesus nesta Quaresma de oração, jejum e esmola, também
melhor distingue, sente e saboreia a sua presença ressuscitada.
Assim também os que vieram, não trocando esta Vigília por
outra coisa qualquer, porventura mais cômoda ou distrativa… Também não foi
cômodo para aquelas mulheres saírem de madrugada e irem ao sepulcro. Não foi
cômodo nem seguro, mas redundou numa surpresa absoluta. Esta mesma que nos
atinge agora.
Sigamos-lhes então os passos. Tinham vindo com Jesus da
Galileia até Jerusalém. Não era assim tanta a distância, com alguns dias de
marcha. Mas algum fora o risco e séria a decisão. Não o seguiram apenas, porque
o serviam também e aos discípulos.
Pela Galileia de toda a gente, podemos tomar a terra de cada
um de nós, onde encontrámos Jesus e começámos a segui-lo. Porque ouvimos falar
dele em nossas casas ou paróquias, porque o conhecemos mais tarde nalgum
contacto ou exemplo, porque desta ou outra maneira fomos vislumbrando a sua
presença aqui ou ali.
E fomo-lo seguindo nos lugares onde mais se encontra. Aqui
no culto cristão, ali no gesto caritativo, neste ou naquele diálogo, leitura, ou
momento mais forte, inesperado até. Pouco a pouco, fomo-lo reconhecendo. A voz
evangélica ressoou-nos, mais clara e distinta; as suas parábolas traduziram
perfeitamente as nossas vidas, no que elas hão de ser; os sinais da sua
presença marcaram os nossos dias.
Tanto assim quanto mais o seu caminho conosco se tornou no
nosso caminho. Caminhamos com Ele, servindo Aquele que tão absolutamente nos
serve a nós. Como aquelas mulheres fizeram, também com o que tinham, para
receberem afinal muito mais.
Depois chegaram a Jerusalém e assistiram à paixão e morte de
Jesus. Terão sido as únicas, ou quase únicas, a assistir a tudo, arriscando-se
também. Menciono-as as elas, mas gostaria de mencionar igualmente a todos
quantos seguimos Jesus até ao fim, ou até onde o fim começa, onde a fidelidade
se joga inteiramente.
Como elas então, estando nós agora onde o Evangelho se
afirma com inteira coerência em qualquer situação e espaço, em qualquer momento
e altura. Tem muitas traduções esta atitude. Como seja não calar o que deve ser
dito, não dissimular o que deve ser patente, não esbater o que deve ser claro.
Quando Jesus foi preso e depois julgado e por fim condenado,
onde estavam os que apareciam antes a seu lado, onde soavam os hosanas e se
levantavam os ramos de há poucos dias? Pouco ou nada se notava já, voz nenhuma
o defendia ainda. No Calvário estavam tão poucos, como aquelas mulheres – ou
como a Mãe e o discípulo que o quarto Evangelho não esquece.
Tão poucos, ainda que indispensáveis. Mas agora mesmo,
quando algum constrangimento social quer inibir o protagonismo cristão
propriamente dito. Ou quando um certo reducionismo cultural normaliza por baixo
as convicções, afastando-as daqueles espaços que, exatamente por serem
públicos, deviam ser de todos. Como legitimamente são e não de nenhuns, como
acabariam por ser… Com respeito pelos outros, certamente, mas sendo o próprio
respeito a exigir-nos a partilha.
Seguir Jesus até o fim, como tão poucos fizeram, é o que
importa e o caminho certo para o que aconteceu depois. Depois, quando aquelas
mulheres voltaram ao sepulcro, sem medo da noite que desaparecia. Era o que
restava ainda do seu Jesus de sempre, bastando isso mesmo para irem lá.
E assim mesmo foram e assim mesmo souberam da sua vitória e
presença nova. Esta mesmo que nos tem aqui, certos e seguros da ressurreição de
Cristo. Da ressurreição que nos ressuscita também, como ouvíamos a São Paulo:
«… uma vez ressuscitado dos mortos, Cristo já não pode morrer; a morte já não
tem domínio sobre ele. […] Assim vós também considerai-vos mortos para o pecado
e vivos para Deus, em Cristo Jesus».
Seguindo este caminho, tão estreito como vitorioso, teremos
a resposta sobre o estarmos aqui, nesta santa noite que se fará claro dia.
Saberemos dum “saber de experiência feito”. Experiência nossa e anúncio para
todos.
A vós, que a seguir celebrareis o início sacramental das
vossas vidas, dirige-se o apelo e garante-se a certeza. O apelo angélico a
reconhecer Cristo vivo, como o sentis agora; a testemunhá-lo sempre, seja aonde
for. E a garantia do seu Espírito, que fará de vós um Evangelho vivo!
Sé Patriarcal, 20-21 de abril de 2019
+ Manuel,
Cardeal-Patriarca
Homilia no Domingo de Páscoa
“Um mundo novo a acontecer entre
nós”
Retenhamos o trecho que acabamos de ouvir. Retenhamo-lo
muito especialmente, pois nos explica aqui nesta manhã renascida: «…Simão Pedro
entrou no sepulcro e viu as ligaduras no chão e o sudário que tinha estado
sobre a cabeça de Jesus, não com as ligaduras, mas enrolado à parte. Entrou o
outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: viu e acreditou».
Um sepulcro vazio, mortalhas dispostas de modo intrigante…
Nada mais do que isto, mas precisamente o bastante para o discípulo acreditar.
O bastante para nós acreditarmos também, acolhendo o que o Ressuscitado dirá a
Tomé, depois de lhe aparecer: «Porque me viste, acreditaste. Felizes os que
creem sem terem visto» (Jo 20,29).
Ou seja, os que dispensam o simples olhar físico, por já
verem com os olhos da alma, infinitamente certeiros. Felizes nós, que, mesmo
não beneficiando de aparições particulares, cremos na ressurreição de Cristo e
entrevemos a sua presença universal, que preenche tantos vazios deste mundo.
Porque a ressurreição de Cristo o torna presente em todo o
espaço e tempo, manifestando a sua vitória sobre a morte, hoje como então. O
que o discípulo soube diante do túmulo vazio é o que nós sabemos aqui e onde
for. Um lugar de morte tornou-se sinal de vida.
Estamos aqui a afirmá-la, numa bela e vetusta catedral, em
esplendente liturgia. Graças a Deus que assim é. Mas neste mesmo momento, em
muitos lugares por esse mundo, como esta madrugada no Sri Lanka, outros
cristãos celebram igualmente a Páscoa, escondidos ou entre escombros,
maltratados e mal curados de feridas e desastres graves.
Quando não faltam atentados e ofensas que os vitimam, sendo
o cristianismo uma religião tão perseguida no mundo atual; quando, mesmo na
nossa Europa, se sucedem profanações de igrejas – centenas em França no ano
passado; quando estas e outras tristíssimas realidades os poderiam desanimar e
tolher: os cristãos continuam a entrever por entre os sinais de morte a
presença de Cristo que a venceu e a celebrá-la como podem – tudo podendo
n’Aquele que lhes dá força, como São Paulo dizia de si próprio.
Quando dizemos e repetimos tantas vezes “Ele está no meio de
nós!”, é também isso que expressamos, porque o experimentamos e sabemos.
Sabemo-lo porventura melhor quando tudo o mais soçobra, como garantia que
tivéssemos.
Depois da morte e sepultura de Cristo, tudo era desolação
entre os discípulos em fuga, ou mal escondidos. Veio a Madalena ao sepulcro,
viu a pedra retirada, correu a avisar… Veio Pedro, veio o outro discípulo que
viu e acreditou. Acreditou que daquele inesperado vazio ressaltava uma ainda
mais inesperada presença.
A presença de Cristo ressuscitado, esta mesma que aqui nos
chama e reúne, para daqui nos enviar em anúncio jubiloso: A morte está vencida,
sabemos Quem a venceu e como a venceu. Este é também o Evangelho todo.
Somos cristãos porque nos transfiguramos nesta luz.
Fixemo-nos no que entrevemos, como ao Ressuscitado ainda. O que já cremos
antecipa-nos a visão clara.
Como escreveu São Paulo – ele, que aliás beneficiara duma
aparição tão particular naquela estrada de Damasco: «Agora, vemos como num
espelho, de maneira confusa; depois veremos face a face» (1Cor 13,12).
Sim, num espelho que se desembacia sempre que nos fixamos
onde o Ressuscitado mais nos fixa. Na meditação do Evangelho, concentrando-nos
nas passagens, nos gestos e nas expressões de Jesus, que são outras tantas
“palavras da salvação”.
Pouco a pouco, mais e mais, é com Ele mesmo que deparamos,
mais intenso hoje, mais irresistível sempre. É a proposta da lectio divina, lendo atentamente,
meditando profundamente, orando sentidamente e adorando por fim, como Tomé se
rendeu ao Ressuscitado: «Meu Senhor e meu Deus!»
Espelho que se desembacia quando adoramos a Cristo nos
sinais sacramentais da sua presença, sobretudo nas “espécies” eucarísticas que
isso mesmo significam: o que se pode ver dum esplêndido infinito.
Espelho que se desembacia nos olhos que nos fixam com a
verdade e a caridade de Cristo, que por eles nos chegam. Foram e são certamente
muitos os que assim nos beneficiaram, como hão de ser os nossos, para quem
olharmos. Como tão bem os cantou uma grande poetisa portuguesa, desenganada
doutros sinais mas certíssima deste: «Só o olhar daqueles que escolheste / Nos
dá o Teu sinal entre os fantasmas» (Sophia, Não darei o teu nome).
Espelho desembaciado sempre que O vislumbramos no irmão que
sofre – e que sofre por não ser visto, ouvido e atendido. Nisto precisamente,
como o testemunham tantos episódios da santidade cristã, em que o serviço ao
irmão foi serviço a Cristo, assim mesmo revelado e certeiro.
Porque a visão do Ressuscitado é mútua e reflexa, uma troca
de olhares em convivência perfeita. Acontece na atmosfera nova daquele
“primeiro dia” duma semana infinda, como a caridade que nunca acabará.
Aqui, em celebração esplêndida e festiva, como felizmente
estamos. E depois, onde tudo continuará forte e luminoso, se nos mantivermos
com Cristo nos lugares onde nos espera e donde já nos vê. Os que atrás
mencionámos em geral, se agora os vivermos no nosso particular, na relação com
os outros, ao modo evangélico dos ressuscitados e até que Cristo seja tudo em
todos.
A ressurreição de Cristo não é um espetáculo para ver de
fora, é um mundo novo a acontecer entre nós. Como transbordou do túmulo vazio,
preencherá também os vazios existenciais que aí estão agora, que aí estão
urgentes.
Sé Patriarcal, 21 de abril de 2019
+ Manuel,
Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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