domingo, 28 de abril de 2019

Homilias do Patriarca de Lisboa: Semana Santa 2019

Publicamos aqui as homilias do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, proferidas durante as celebrações da Semana Santa deste ano na Sé Patriarcal de Lisboa:

Homilia de Domingo de Ramos
A Paixão de Cristo torna-se Páscoa para todos

Iniciamos a Semana Maior. É oportunidade e graça para aprofundarmos os motivos, também maiores, da nossa vida e da nossa fé. Não pode ser apenas o calendário, no primeiro plenilúnio desta Primavera. Trata-se, isso sim, da novidade evangélica, que há de qualificar um tempo novo.
A Liturgia católica preenche estes dias com sinais expressivos dos acontecimentos celebrados. Tão expressivos e até vistosos que, aqui e ali, se tornam apelo turístico, com encenação e reclame… É natural que assim seja, mas será pena se for isso só. Não chega e redobra-nos o cuidado com possíveis distrações.
Porque não se trata de distrair os sentidos, mas de converter as vidas, a partir dos momentos definitivos que Deus quis viver conosco na Páscoa de Jesus. Na sua paixão, que redime a paixão do mundo. A nossa própria, do que passamos e os outros padecem, longe ou perto – e muito perto até.
Ao longo destes dias, estando realmente atentos, acompanharemos os últimos episódios de Jesus neste mundo, como era então, tão distante no tempo e tão próximo no essencial. Uma glorificação breve e equívoca, ao entrar em Jerusalém entre palmas e hosanas. Os últimos diálogos com os seus discípulos, outros tantos avisos sobre o que previa para depois e ainda agora. A ceia em que tudo ultimou, oferecendo-se por nós e para nós. O combate final – a “agonia” do horto -, vencendo, por si e por todos, a última etapa para chegar a Deus. A condenação que se seguiu, por parte de quem não aceitava que Deus se aproximasse tanto e exigisse tudo. O tormento final, de flagelos, espinhos e pregos, que lhe massacraram o corpo, já por si entregue. Sobrou-nos a Cruz, novo centro do mundo em atração total, como prometera: «Eu, quando for erguido da terra atrairei todos a mim» (Jo 12,32). Por isso aqui estamos e é só o que importa.

Esta sim, caríssimos irmãos – esta sim e esta sempre – é a razão de estarmos aqui, iniciando a Semana que Jesus santificou, razão única, bastante e salutar. É certo que a Liturgia é pródiga em palavras e sinais. Mas concentremo-nos mais na Cruz que nos salva, assumindo-a também.
Aquela multidão de discípulos aclamava o Messias a entrar na cidade, com os sinais proféticos do reino anunciado. Sinais proféticos e já contraditórios com as entradas normais dos triunfos mundanos. Pois assim a anunciara o profeta Zacarias: «Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti; Ele é justo e misericordioso; vem humilde, montado num jumento…» (Zc 9,9). Jesus aceitou o entusiasmo, deixando-os gritar, ou gritariam as pedras…
Retenhamos o passo, tão insólito como determinante. É assim que Jesus Cristo continua a entrar na cidade e na nossa vida. Como Messias humilde, que vence porque convence. Somos seus discípulos quando O reconhecemos e aclamamos deste modo, apenas deste modo, com a mesma humildade e verdade, no dia-a-dia em que nos chega.  
Não passou muito tempo até se ouvirem outros gritos, no pretório de Pilatos, pedindo a sua morte. De Jesus, que de novo aceitou o clamor, sujeitando-se à mais injusta das condenações.
Aí O temos, igual a si próprio. – E nós, onde estamos, assim como somos? Dos Ramos ao pretório, Jesus teve razão para se decepcionar com multidões desencontradas, entre hosanas e apupos. Perguntemo-nos nós agora se também nos decepcionamos com Jesus, quando Ele não corresponde ao que desejamos para já – e como o desejamos ainda. Quando o deixamos “morrer” no horizonte das nossas vidas por converter, no que mais profundamente desejamos.
Porque, da nossa parte, a clareza tem de ser total, como o é da sua. Para desejos vãos a resposta de Jesus é nenhuma. Como ouvimos, Pilatos enviou-O a Herodes, que ficou contente, à espera de milagres e coisas de espantar. Resultado: às muitas perguntas de Herodes, Jesus nada respondeu.
Fixemo-nos neste ponto ao iniciar a Semana Maior, para que seja de franca conversão, com disponibilidade total da nossa parte para seguir Jesus na obediência inteira a Deus Pai. Nada mais nos oferece, pois só isso nos salva.
- Quando Jesus nos levar consigo à obediência perfeita à vontade do Pai, ainda a mais custosa, para ser salvadora, como aconteceu no Horto das Oliveiras, continuaremos com Ele, como estamos agora?
Falo por dentro da liturgia que celebramos. Falo de Cristo e dos sentimentos de Cristo, que hão de ser os nossos para que a Páscoa aconteça. Menos do que isto não nos explicaria aqui.     
Deixemo-nos surpreender pela Paixão de Cristo na paixão do mundo. Dito doutro modo, acompanhemo-lo como Ele mesmo nos acompanha, por imprevisível que seja. Como Simão de Cirene viu converter-se o caminho de casa em caminho do Calvário: «Lançaram mão de um certo Simão de Cirene, que vinha do campo, e puseram-lhe a cruz às costas, para a levar atrás de Jesus.»
Vivamos estes dias como surpresa de Deus. Facilidades ou dificuldades vivamo-las com Cristo, que as viveu conosco, antes de nós e por nós. Podemos até desconfiar do que prevemos, por ser demasiado nosso. Para confiarmos plenamente na vontade de Deus, vitoriosa sempre, como o foi na Cruz.
Como aquelas mulheres receberam a advertência que não esperavam: «Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos.» Como os seus carrascos escutaram um perdão que nunca suporiam: «Pai perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.» Como um dos crucificados ouviu o que todos almejamos ouvir: «Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso.». Como Deus Pai escutou da sua boca o que espera por fim ouvir das nossas: «Pai, em tuas mãos entre o meu espírito!»  
E assim mesmo, apenas assim, a Paixão de Cristo se torna Páscoa para todos.

Sé Patriarcal, 14 de abril de 2019
+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Homilia na Missa Crismal
Renovo a ação de graças pelo vosso sacerdócio!

Preparamo-nos imediatamente para a celebração pascal e assim mesmo aqui estamos, para que tal aconteça com muito fruto para todos. Está o Povo de Deus, tão numerosamente representado – féis leigos, irmãos e irmãs especialmente consagrados, diáconos e sacerdotes do clero secular e regular da Diocese de Lisboa - nesta Missa justamente “crismal”, pela graça que daqui brotará com os óleos sacramentais em que o Espírito se derrama.
É um momento feliz e verdadeiro da Igreja que somos para o mundo que servimos. Verdadeiro, porque nos exprime e qualifica, como Povo de Deus, Corpo de Cristo e Templo do Espírito. Feliz, porque nos reencontramos assim, ganhando ânimo para correspondermos cada vez mais e melhor ao que Deus nos pede e o mundo precisa.
Saúdo-vos muito cordialmente a todos, reconhecendo e agradecendo o que o Espírito nos oferece em cada um de vós, na variedade dos carismas e na fidelidade com que os viveis para a Igreja e a missão.
Ouvimos no Evangelho aquele momento crismal por excelência que qualificou o ser e a missão do próprio Jesus, por isso mesmo o “Cristo”: Assim leu e a si mesmo aplicou o trecho profético: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos cativos e a vista os cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor».
Reparemos que tudo se passa em contexto celebrativo, como começava o trecho: «Segundo o seu costume, Jesus entrou na sinagoga a um sábado e levantou-se para fazer a leitura». A alusão é muito significativa para nós, que dedicamos este ano pastoral na diocese à formação litúrgica e no conjunto das dioceses portuguesas ao estímulo missionário. Como escreve o Papa Francisco na Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate (nº 142) são duas realidades interligadas, projetando-se a Liturgia na Missão: «Partilhar a Palavra e celebrar juntos a Eucaristia torna-nos mais irmãos e vai-nos transformando pouco a pouco em comunidade santa e missionária».

Mais santos e mais missionários é o que havemos de ser, para seguirmos Jesus Cristo e reproduzirmos os seus gestos de proximidade e acompanhamento concreto de pessoas e situações que pedem resposta capaz. Quando olhamos à nossa volta, não faltam dramas e tragédias iniludíveis.
Tanto há para redimir, de facto, com a redenção que Cristo anunciou naquele dia e é programa para a Igreja de sempre. Para redimir a própria vida, da concepção à morte natural de cada ser humano, ameaçada por muitas ações e omissões. Vítimas de inadmissíveis violências, sejam menores ou frágeis, mulheres ou idosos; vidas por realizar, carentes de formação, atividade e habitação condignas; migrantes à procura de condições de subsistência pessoal e familiar; reclusos e ex-reclusos por reintegrar socialmente; pessoas sós e doentes necessitados de cuidados continuados; vítimas de vários tráficos que persistem, degradando-nos a todos como humanidade…   
A lista poderia continuar e cada ponto há de ser um encargo para a sociedade que integramos, como para nós, discípulos de Cristo. Aproveito a ocasião para saudar e agradecer muito reconhecidamente a todos quantos, no âmbito religioso e na sociedade inteira, se entregam à resolução destes problemas. As suas pequenas ou grandes vitórias em qualquer das frentes, essas sim, deveriam encabeçar as notícias que se difundem, para nos motivar ainda mais.   
O olhar de Jesus foi sempre atento, a sua palavra esclarecedora e o seu gesto preciso. Viu e fez ver aos seguidores o que realmente acontecia e o que era preciso fazer. Não deixou ninguém indiferente, exceto quem não tivesse olhos para ver e ouvidos para ouvir.
Houve “redenções” imediatas, físicas e morais, que os Evangelhos nos contam. Mas na vida de Jesus tudo é sinal de realidades absolutas e definitivas. Doutra liberdade, doutra luz, duma graça maior e redenção total. Essa mesma de que o ministério sacerdotal é exercício.

Povo sacerdotal aqui reunido e caríssimos irmãos sacerdotes: Dos muitos males que o afligem, o mundo precisa de ser libertado no que tem de mais profundo e atávico. Males que se enraízam no coração humano, modo de dizer no que em cada um de nós é mais contraditório ainda. Reparemos no que São Paulo não hesita em escrever de si mesmo e da absoluta necessidade da redenção de Cristo. São palavras fortíssimas que nos devem dar que pensar e converter: «Sim, eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita coisa boa; pois o querer está ao meu alcance, mas realizar o bem, isso não. É que não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico» (Rm 8,18-19).
Para dizer de seguida que o que não poderíamos resolver por nós nem pela letra e os sacrifícios da antiga Lei, resolveu-o o próprio Deus no sacrifício de Cristo: «Deus fez o que era impossível à Lei, por estar sujeita à fraqueza da carne: ao enviar o seu próprio Filho, em carne idêntica à do pecado e como sacrifício de expiação pelo pecado, condenou o pecado na carne para que assim a justiça exigida pela Lei possa ser plenamente cumprida em nós, que já não procedemos de acordo com a carne, mas com o Espírito» (Rm 8,3-4).
Não nos pareça o trecho como algo muito complexo e só entendível por alguns. Para nós sacerdotes, como para todo o povo sacerdotal, é o cerne da questão e da salvação que nos toca. Não chegamos a Deus sem Deus, mas só retornando por Jesus ao Pai, no Espírito que Os une.  
Cumpre recordar aqui o que há quarenta anos escreveu São João Paulo II, na Encíclica Redemptor Hominis (nº 9), portal do seu pontificado: «…não esqueçamos, nem sequer por um momento, que Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, se tornou a nossa reconciliação junto do Pai. Ele precisamente e só Ele satisfez ao amor eterno do Pai, àquela paternidade que desde o princípio se expressou na criação do mundo, na doação ao homem de toda a riqueza do que foi criado, ao “fazê-lo pouco inferior aos anjos”, enquanto criado “à imagem e semelhança de Deus”».
Ou seja, só em Cristo e no Espírito de Cristo conseguimos a perfeita filiação divina. Filiação que, dando todo o lugar a Deus Pai, dá também todo o lugar aos outros e à criação inteira. Foi ainda São Paulo a dizê-lo com grande inspiração e rasgo: «Pois até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus. De facto, a criação foi sujeita à destruição – não voluntariamente, mas por disposição daquele que a sujeitou – na esperança de que também ela seja libertada da escravidão da corrução, para alcançar a liberdade dos filhos de Deus» (Rm 8,19-21).  
Faz-nos muito bem meditar nestas passagens e noutras coincidentes, pois nelas residem o que podemos designar como realismo cristão e aquela “ecologia integral” em que o magistério pontifício tem insistido. Realismo particularmente sentido em tempos difíceis, em que a própria sobrevivência estava sempre em risco, pareceu ultrapassado noutros mais recentes, em que tudo parecia garantido para satisfações imediatas e futuros previsíveis. – Para quê recorrer à graça divina, se a vida podia ser bastante e gratuita, ao menos para alguns?

Diante desta presumida riqueza, a proposta evangélica nada teria a oferecer. E também por isso Jesus dizia ser difícil a um rico entrar no Reino dos Céus. Na verdade, a primeira condição é querer entrar, pedir para entrar no mundo novo que só Deus oferece, quando Cristo o atinge na humanidade que redime. O preço que pagou foi fazer-se um de nós, para nos fazer de Deus. Foi este o sacrifício e a oferta que permanece.     
Quando a nossa vida não tem como princípio, meio e fim o sacrifício de Cristo, não é, nem se pode chamar “cristã”. É apenas a nossa vida, melhor ou pior, como vai acontecendo e definhando. A vida cristã ou, melhor dizendo, a vida de Cristo em nós, só acontece a partir do que nos conseguiu na sua Páscoa.
Para nós sacerdotes, esta é a convicção que nos leva a ser sinais ativos do sacrifício de Cristo, para cuja celebração e herança convocamos a todos, a fim de se tornarem um povo sacerdotal também. Anunciamos, celebramos e partilhamos a redenção que Jesus nos obteve, oferecendo na Eucaristia o seu sacrifício, em cada sacramento a sua graça, em toda a caridade o seu amor. Nada menos do que isto nos chamaria ao ministério e nada menos nos pedem a Igreja e o Mundo.
Resume-o o prefácio desta Missa Crismal, a Deus Pai dirigido, com palavras que nos faz bem soletrar e reter, especialmente a nós sacerdotes, por tão bem dizerem o que somos e fazemos: «[Os sacerdotes] renovam em nome de Cristo o sacrifício da redenção humana, preparando para os vossos filhos o banquete pascal; dirigem com amor fraterno o vosso povo santo, alimentam-no com a palavra e fortalecem-no com os sacramentos. Como verdadeiras testemunhas da fé e da caridade, comprometem-se generosamente a cumprir a sua missão, prontos, como Cristo, a dar a vida por Vós e pelos homens seus irmãos».
Esta é a nossa verdade sacerdotal e ministerial, aqui tão intensamente revivida, no meio do Povo Deus a quem e por quem se oferece. Pelo que conheço e sei de tantos de vós que aqui estais, esta é maravilhosamente a vossa vida, para bem de muitos. Com todo o Povo de Deus aqui presente, redobro a ação de graças pelo vosso sacerdócio!   

Sé Patriarcal, 18 de abril de 2019
+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Homilia na Missa da Ceia do Senhor
Vivamos eucaristicamente o tempo inteiro!

Dois mandamentos nos deu o Senhor Jesus, como acabamos de ouvir. O primeiro, uma e outra vez, na epístola de São Paulo: «O Senhor tomou o pão e, dando graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu Corpo, entregue por vós. Fazei isto em memória de mim”. Do mesmo modo tomou o cálice e disse: “Este cálice é a nova aliança no meu sangue. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em memória de mim”». É o mandamento que cumprimos em cada celebração eucarística.
O segundo mandamento, ouvimo-lo no Evangelho de São João, quando disse aos discípulos: «Se eu, que sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como eu fiz, vós façais também». Importa cumpri-lo igualmente.
Bem recebidos e compreendidos, estes dois mandatos aproximam-se na intenção. Na verdade, o corpo e o cálice oferecidos são a vida de Cristo entregue a Deus Pai em favor de todos; e a todos entregue, da parte de Deus Pai. Como dissera: «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16).
E isto mesmo realizado à maneira de Deus, ou seja, do modo mais humilde e até serviçal. Num gesto próprio dos servos, lavando os pés dos comensais. Num gesto de absoluta entrega, sem reserva alguma.

O que em Jesus foi gesto torna-se para nós mandato, celebrando a Eucaristia numa vida eucarística, unindo o serviço de Deus com o serviço dos irmãos. Melhor dizendo, incluindo-nos no movimento divino em que Deus nos serve a nós. Deus que em todos nos espera também. Ouvimos Jesus a insistir com Pedro para que o deixasse lavar-lhe os pés, condição necessária para participar na vida que lhe oferecia. Pedro e os outros acabaram por perceber. Connosco agora, é disso mesmo que se trata.
Não é fácil, não é nada fácil. Não condiz com a ideia espontânea que faríamos de Deus, projetando nele o que afinal é só nosso, exageradamente nosso. Bem pelo contrário, o que o Evangelho tem de próprio e autêntico é convencer-nos precisamente do que temos tanta dificuldade em aceitar, tão diferente é dos nossos cálculos e das boas intenções que não chegam.
Mesmo na esplêndida liturgia deste Tríduo poderíamos ficar só pelo cerimonial, se não atentássemos seriamente no significado das palavras proclamadas e dos gestos nunca por demais repetidos.
Não será assim, não pode ser assim. Estamos aqui para assimilar profundamente, por ação do Espírito, a Ceia e a oferta do Senhor Jesus; ao Pai e por todos, do Pai para todos. Ou, como pedimos na coleta, para recebermos «a plenitude da caridade e da vida».
É este o mandato e esta a salvação. Pelas mãos de Cristo, multiplicadas nas mãos dos ministros da Nova Aliança, os daquele momento e os que se seguiram e seguem. E nos gestos humildes e serviçais com que todos quantos O comungam lhe prolongam a atitude. E assim mesmo se salvam, porque já vivem a vida de Deus, como ela é realmente, generosa e humilde. Como ela pode e deve acontecer também conosco e através de nós.

Não faltam locais, ocasiões e urgências para transportarmos para a vida a caridade eucarística, traduzindo o sacramento em serviço. Não faltam nas famílias, não faltam nas comunidades, não faltam nas mil e uma articulações da sociedade que integramos.
Não faltam nas famílias que, sendo cristãs, viverão da caridade de Cristo na atenção permanente a cada um dos seus membros, dos mais novos aos mais idosos, dos saudáveis aos enfermos, dos presentes aos ausentes. Quando o dia-a-dia não parta tanto da agenda de cada um, ainda que importe, como do que mais requeira ajuda, previsível ou não.
Não faltam nas comunidades, que tendo a fonte e o cume na Eucaristia a que se ordenam, dela haurem a vida e a missão. Comunga cada um o Pão de todos, mesmo para quem não o possa por alguma razão receber, e sem privatização possível. – Como tudo seria melhor e mais perfeito se cada Missa redundasse em missão, juntando plenamente a Santa Ceia ao não menos Santo Lava Pés!   
Não faltam expetativas eucarísticas na própria sociedade que integramos. Saibam ou não saibam do que se trata, todos aguardam aquela salvação que só o serviço mútuo traduz e opera. Sabendo-o nós, devemo-lo aos outros.
Nos primeiros séculos cristãos tudo isto era novo e interrogava quem ouvia. Reuniam-se em local discreto, naquele primeiro dia de cada semana, para experienciar mais fortemente a vitória do Ressuscitado e viverem entre si a comunhão com Ele e entre todos. Era-lhes evidente e indispensável a promessa de Cristo: «Onde estiverem reunidos, em meu nome, dois ou três, eu estou no meio deles!» (Mt 18,20). Também o repetimos no diálogo litúrgico: «O Senhor esteja convosco! Ele está no meio de nós!» - Como há de ser grande a consequência, não faltando à Eucaristia e manifestando-a na vida!
Mostravam depois um modo diferente de ser e servir, tão conforme com o que fora de Cristo, de quem ganharam o nome… Servindo por isso mesmo a vida, no seu arco completo, como Ele a servira e restaurara em tantos passos evangélicos. Criando uma nova cultura de proximidade, de perdão e de paz… Tudo isto foi plenamente eucarístico, quando foi assim e tantas vezes foi. Como ainda hoje, em muitos lugares onde os cristãos continuam a ser mártires, testemunhas, da sua fé – da nossa fé.
Como agora pode e deve ser, conosco também e através de nós. O Espírito ultrapassa-nos e trabalha em todo o mundo, antes e depois de lá chegarmos. Mas para nós, que sabemos estas coisas, a responsabilidade eucarística é prioritária e maior.
Temos nos gestos eucarísticos de Cristo, como hoje os evocamos e celebramos, o modelo e o estímulo do que tudo deve ser. Para que tudo se ofereça e partilhe, como em Cristo se assume a criação inteira para a restaurar em Deus, comunhão absoluta.
Vivamos eucaristicamente o tempo inteiro!      

Sé Patriarcal, 18 de abril de 2019
+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
Deixemo-nos surpreender pela Paixão de Cristo

Deixemo-nos surpreender uma vez mais pelo que acabamos de ouvir. Retenhamos as palavras que nos narraram a paixão de Cristo. Deixemos que a sua figura nos ressalte delas, com a espessura que dois milênios de meditação nunca esgotam.
Esta soleníssima tarde não tem outro objetivo, como aliás o sagrado tríduo, que graças a Deus celebramos. Graças a Deus, digo bem, pois nenhum de nós se concentraria em Cristo sem a luz com que Deus Pai nos abre os olhos para O ver. E para vermos nele toda a paixão da humanidade, como a assume e redime. Como nos assume e redime a cada um de nós, assim assintamos, correspondendo à mesma graça. Não é por acaso, mas por graça, que a Cruz ganhou e mantém tal poder de atração. Sabemos que ela se impôs aos próprios e primeiros cristãos, vencendo a natural resistência e até repugnância que provocaria, como sinal do crudelíssimo suplício. Suplício e maldição, como era morrer numa cruz.
Acontecera porém a ressurreição, que fez da Cruz um “trono da graça”, para usarmos a expressão que escutamos na Carta aos Hebreus. Retomaram por isso, como retomamos agora nós, com pleno realismo cristão, as palavras do cântico de Isaías, tão antigas como novíssimas: «Vede como vai prosperar o meu servo: subirá, elevar-se-á, será exaltado. Assim como, à sua vista, muitos se encheram de espanto – tão desfigurado estava o seu rosto que tinha perdido toda a aparência de um ser humano -, assim se hão de encher de assombro muitas nações e, diante dele, os reis ficarão calados, porque hão de ver o que nunca lhes tinham contado e observar o que nunca tinham ouvido».
Tal e qual assim, como decerto sentirá cada um dos que aqui estamos, como as multidões que por esse mundo além se voltam hoje, gratas e contritas, para a Cruz de Jesus Cristo. Nela se revela a glória de Deus, ou seja, a vida divina como oferta. E nela se revela a nossa glória, a nossa vida como graça. Por isso São Paulo disse que toda a sua glória estava na Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, e o dizemos e cantamos nós também.
Não a reduzamos a ornamento ou a símbolo religioso entre os demais. É o nosso sinal de cristãos, como o recebemos no batismo, para que toda a vida ganhe também a sua forma: continuamente para o alto e para o Pai e igualmente para todo o lado em que os outros nos esperam.


Mas tudo isto acontecerá apenas se for a vida de Cristo em nós, como o seu Espírito permite acontecer. E não em abstrato, mas no mais concreto dos sentimentos compartilhados. Sentimentos que a paixão que escutamos tão bem ilustra.
Fixemo-nos nalguns. E antes de mais, no modo como Jesus se mantém a si mesmo, quando tudo a seu lado se agita e desfaz. A começar no círculo dos discípulos: Judas Iscariotes trai-o e vende-o, talvez num misto de desilusão e ganância, por Jesus não ser o líder político-religioso que ele esperava e mais valesse ganhar alguma coisa com a sua entrega… Pedro tem um assomo de violência, que Jesus logo reprime, pois se defende por dentro da intenção de ir até ao fim, igual a si próprio e viesse o que viesse… Os outros discípulos aproveitam a cobertura que Jesus lhes dá e fogem, sobrando apenas um ao pé da Cruz. Da Cruz que ele aceita para si, carregando afinal a todos – a eles e a nós, discípulos recuperados, ou opositores ainda.
Sabemos e confessamos que assim é, e por isso estamos aqui, com sentimentos e evidências que só a luz divina proporciona. E revemos Jesus diante de Anás, antes e depois daquela bofetada que o atingiu na face, mas não na segurança interior que mantinha. E depois diante de Pilatos, nas respostas que dava e sobressaiam da gritaria da multidão que lhe pedia a morte. Morreram eles depois, como é sorte comum dos mortais, mas não as palavras que disse e vivamente ecoam. E estas, muito especialmente: «Sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz».
Somos da verdade de Cristo, somos da verdade da Cruz. Sabemos que a verdade essencial da vida é a verdade total da entrega, pois só ganhamos o que oferecemos. Jesus percorreu o nosso caminho humano, sublimando-o com sentimentos divinos.
Sentimentos que se consubstanciam e traduzem nisso mesmo de viver inteiramente uns para os outros, como entre Jesus e o Pai a entrega é mútua e total, no Espírito em que mutuamente se doam. Jesus “expirou”, devolvendo ao Pai o Espírito que o habitava, na sua vida humana também. O mesmo Espírito que nos doou na água que lhe saiu do lado, com o sangue da vida que nos concede agora. Para assim vivermos e convivermos em todas as dimensões da nossa existência, eternizando-nos no amor que vence a morte e nunca acabará.
Esta é a verdade pessoal de Jesus, como se apresentava diante de Pilatos, que não a compreendeu, e de todos quantos lhe pediram a morte. Esta é a verdade essencial de nós todos, como a confessamos e celebramos aqui. Irradia da Cruz para o mundo inteiro, para nós e através de nós onde estivermos, como devemos realmente estar.

Se fazemos tanta vez o sinal da Cruz, sejamo-lo nós próprios para os outros, nos gestos e atitudes de cada dia e situação: Recebemos no batismo o sinal da Cruz. Pois que ela marque a nossa vida com a sua forma, inteiramente para Deus Pai em louvor e inteiramente para os outros em serviço. Os outros, nos quais nos espera Deus Filho. Para os outros, como nos impele Deus Espírito. Benzemo-nos antes das refeições. Pois que a Cruz nos faça partilhar o pão com quem tem fome e a atenção com todos os comensais de hoje e amanhã, na mesa larga da caridade de Cristo, como se lhe alargam os braços da Cruz.
Usamos uma Cruz no fio que trazemos ao peito. Pois que ela nos toque profundamente o coração, fazendo-nos ouvir o brado que Cristo lança no Calvário do mundo. Brado onde ressoam os gritos mal sufocados de quem sofre de privações e violências, de quem pena em solidões e esquecimentos, de quem quase desiste, velho ou novo.
Na coincidência profunda da nossa vida com a Cruz de Cristo está a verdade que nos salva e a atração que nos chama. Essas mesmas que marcarão de novo a Páscoa de agora. Assim a desejemos convictos, assim a recebamos deveras.

Sé Patriarcal, 19 de abril de 2019
+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Homilia na Vigília Pascal
Surpreende-nos uma vida triunfante

Podemos perguntar-nos pela razão de estar aqui esta noite, de ouvirmos o que ouvimos e vermos o que vemos… Podemos e talvez devamos, para que tudo fique mais claro na nossa consciência e definido na nossa vida.
No antigo Israel era assim que os mais novos perguntavam pela Páscoa, ouvindo a resposta do que Deus fizera pelos seus antepassados e estava disposto a fazer com eles, em gestos libertadores. Agora e conosco, tudo nos fala da mesma disposição divina e tudo nos pede inteira adesão humana.
Como acontecerá decerto. Os próprios ritos de iniciação, que faremos com alguns e retomamos para todos os que aqui estamos, significam tal adesão, vivendo intimamente a Páscoa, passando na verdade com Jesus para o Pai. Por um caminho certo, como o que o Evangelho nos acaba de anunciar.
«Porque buscais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui, ressuscitou!» O que aquelas mulheres, tão fiéis a Jesus, ouviram então, ouvimo-lo nós também, tendo realmente ouvidos para ouvir.
Eram fiéis, voltaram ao sepulcro, encontraram-no vazio, ouviram o anúncio. É conosco agora: Acompanhamos o Senhor no Sagrado Tríduo, não esquecemos a sua sepultura, voltámos esta noite e ouvimos o Evangelho da ressurreição.
Fidelidade, persistência e reencontro, ultrapassando este as expetativas. Já não velamos um morto, surpreende-nos uma vida triunfante. Cada um dos momentos importa e também a sequência. Aquelas mulheres eram fiéis desde a Galileia e assim permaneceram até ao Calvário, mesmo quando quase todos fugiram. Voltaram logo que puderam, para concluir os ritos da sepultura, que tão apressada fora. Sendo fiéis, ouviram antes dos outros o que nunca ninguém ouvira: Jesus vencera a morte, o seu cadáver sepultado era agora corpo glorioso, infinita presença em qualquer espaço e tempo. Como o celebramos aqui, como muitos o celebram por esse mundo fora, mesmo onde arriscam a vida para o fazerem também.
Dando todo o lugar às surpresas de Deus, é normalmente assim que acontece. Por isso Jesus dissera que «quem procura, encontra» (Lc 11,10). A persistência das mulheres deu-lhes antecedência na descoberta. Estou certo de que quem mais seguiu Jesus nesta Quaresma de oração, jejum e esmola, também melhor distingue, sente e saboreia a sua presença ressuscitada.
Assim também os que vieram, não trocando esta Vigília por outra coisa qualquer, porventura mais cômoda ou distrativa… Também não foi cômodo para aquelas mulheres saírem de madrugada e irem ao sepulcro. Não foi cômodo nem seguro, mas redundou numa surpresa absoluta. Esta mesma que nos atinge agora.

Sigamos-lhes então os passos. Tinham vindo com Jesus da Galileia até Jerusalém. Não era assim tanta a distância, com alguns dias de marcha. Mas algum fora o risco e séria a decisão. Não o seguiram apenas, porque o serviam também e aos discípulos.
Pela Galileia de toda a gente, podemos tomar a terra de cada um de nós, onde encontrámos Jesus e começámos a segui-lo. Porque ouvimos falar dele em nossas casas ou paróquias, porque o conhecemos mais tarde nalgum contacto ou exemplo, porque desta ou outra maneira fomos vislumbrando a sua presença aqui ou ali.
E fomo-lo seguindo nos lugares onde mais se encontra. Aqui no culto cristão, ali no gesto caritativo, neste ou naquele diálogo, leitura, ou momento mais forte, inesperado até. Pouco a pouco, fomo-lo reconhecendo. A voz evangélica ressoou-nos, mais clara e distinta; as suas parábolas traduziram perfeitamente as nossas vidas, no que elas hão de ser; os sinais da sua presença marcaram os nossos dias.
Tanto assim quanto mais o seu caminho conosco se tornou no nosso caminho. Caminhamos com Ele, servindo Aquele que tão absolutamente nos serve a nós. Como aquelas mulheres fizeram, também com o que tinham, para receberem afinal muito mais.
Depois chegaram a Jerusalém e assistiram à paixão e morte de Jesus. Terão sido as únicas, ou quase únicas, a assistir a tudo, arriscando-se também. Menciono-as as elas, mas gostaria de mencionar igualmente a todos quantos seguimos Jesus até ao fim, ou até onde o fim começa, onde a fidelidade se joga inteiramente.
Como elas então, estando nós agora onde o Evangelho se afirma com inteira coerência em qualquer situação e espaço, em qualquer momento e altura. Tem muitas traduções esta atitude. Como seja não calar o que deve ser dito, não dissimular o que deve ser patente, não esbater o que deve ser claro.
Quando Jesus foi preso e depois julgado e por fim condenado, onde estavam os que apareciam antes a seu lado, onde soavam os hosanas e se levantavam os ramos de há poucos dias? Pouco ou nada se notava já, voz nenhuma o defendia ainda. No Calvário estavam tão poucos, como aquelas mulheres – ou como a Mãe e o discípulo que o quarto Evangelho não esquece.

Tão poucos, ainda que indispensáveis. Mas agora mesmo, quando algum constrangimento social quer inibir o protagonismo cristão propriamente dito. Ou quando um certo reducionismo cultural normaliza por baixo as convicções, afastando-as daqueles espaços que, exatamente por serem públicos, deviam ser de todos. Como legitimamente são e não de nenhuns, como acabariam por ser… Com respeito pelos outros, certamente, mas sendo o próprio respeito a exigir-nos a partilha.
Seguir Jesus até o fim, como tão poucos fizeram, é o que importa e o caminho certo para o que aconteceu depois. Depois, quando aquelas mulheres voltaram ao sepulcro, sem medo da noite que desaparecia. Era o que restava ainda do seu Jesus de sempre, bastando isso mesmo para irem lá.
E assim mesmo foram e assim mesmo souberam da sua vitória e presença nova. Esta mesmo que nos tem aqui, certos e seguros da ressurreição de Cristo. Da ressurreição que nos ressuscita também, como ouvíamos a São Paulo: «… uma vez ressuscitado dos mortos, Cristo já não pode morrer; a morte já não tem domínio sobre ele. […] Assim vós também considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Cristo Jesus».
Seguindo este caminho, tão estreito como vitorioso, teremos a resposta sobre o estarmos aqui, nesta santa noite que se fará claro dia. Saberemos dum “saber de experiência feito”. Experiência nossa e anúncio para todos.
A vós, que a seguir celebrareis o início sacramental das vossas vidas, dirige-se o apelo e garante-se a certeza. O apelo angélico a reconhecer Cristo vivo, como o sentis agora; a testemunhá-lo sempre, seja aonde for. E a garantia do seu Espírito, que fará de vós um Evangelho vivo! 

Sé Patriarcal, 20-21 de abril de 2019
+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Homilia no Domingo de Páscoa
“Um mundo novo a acontecer entre nós”

Retenhamos o trecho que acabamos de ouvir. Retenhamo-lo muito especialmente, pois nos explica aqui nesta manhã renascida: «…Simão Pedro entrou no sepulcro e viu as ligaduras no chão e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus, não com as ligaduras, mas enrolado à parte. Entrou o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro: viu e acreditou».
Um sepulcro vazio, mortalhas dispostas de modo intrigante… Nada mais do que isto, mas precisamente o bastante para o discípulo acreditar. O bastante para nós acreditarmos também, acolhendo o que o Ressuscitado dirá a Tomé, depois de lhe aparecer: «Porque me viste, acreditaste. Felizes os que creem sem terem visto» (Jo 20,29).
Ou seja, os que dispensam o simples olhar físico, por já verem com os olhos da alma, infinitamente certeiros. Felizes nós, que, mesmo não beneficiando de aparições particulares, cremos na ressurreição de Cristo e entrevemos a sua presença universal, que preenche tantos vazios deste mundo.
Porque a ressurreição de Cristo o torna presente em todo o espaço e tempo, manifestando a sua vitória sobre a morte, hoje como então. O que o discípulo soube diante do túmulo vazio é o que nós sabemos aqui e onde for. Um lugar de morte tornou-se sinal de vida.

Estamos aqui a afirmá-la, numa bela e vetusta catedral, em esplendente liturgia. Graças a Deus que assim é. Mas neste mesmo momento, em muitos lugares por esse mundo, como esta madrugada no Sri Lanka, outros cristãos celebram igualmente a Páscoa, escondidos ou entre escombros, maltratados e mal curados de feridas e desastres graves.
Quando não faltam atentados e ofensas que os vitimam, sendo o cristianismo uma religião tão perseguida no mundo atual; quando, mesmo na nossa Europa, se sucedem profanações de igrejas – centenas em França no ano passado; quando estas e outras tristíssimas realidades os poderiam desanimar e tolher: os cristãos continuam a entrever por entre os sinais de morte a presença de Cristo que a venceu e a celebrá-la como podem – tudo podendo n’Aquele que lhes dá força, como São Paulo dizia de si próprio.     
Quando dizemos e repetimos tantas vezes “Ele está no meio de nós!”, é também isso que expressamos, porque o experimentamos e sabemos. Sabemo-lo porventura melhor quando tudo o mais soçobra, como garantia que tivéssemos.
Depois da morte e sepultura de Cristo, tudo era desolação entre os discípulos em fuga, ou mal escondidos. Veio a Madalena ao sepulcro, viu a pedra retirada, correu a avisar… Veio Pedro, veio o outro discípulo que viu e acreditou. Acreditou que daquele inesperado vazio ressaltava uma ainda mais inesperada presença.
A presença de Cristo ressuscitado, esta mesma que aqui nos chama e reúne, para daqui nos enviar em anúncio jubiloso: A morte está vencida, sabemos Quem a venceu e como a venceu. Este é também o Evangelho todo.
Somos cristãos porque nos transfiguramos nesta luz. Fixemo-nos no que entrevemos, como ao Ressuscitado ainda. O que já cremos antecipa-nos a visão clara.

Como escreveu São Paulo – ele, que aliás beneficiara duma aparição tão particular naquela estrada de Damasco: «Agora, vemos como num espelho, de maneira confusa; depois veremos face a face» (1Cor 13,12).
Sim, num espelho que se desembacia sempre que nos fixamos onde o Ressuscitado mais nos fixa. Na meditação do Evangelho, concentrando-nos nas passagens, nos gestos e nas expressões de Jesus, que são outras tantas “palavras da salvação”.
Pouco a pouco, mais e mais, é com Ele mesmo que deparamos, mais intenso hoje, mais irresistível sempre. É a proposta da lectio divina, lendo atentamente, meditando profundamente, orando sentidamente e adorando por fim, como Tomé se rendeu ao Ressuscitado: «Meu Senhor e meu Deus!»     
Espelho que se desembacia quando adoramos a Cristo nos sinais sacramentais da sua presença, sobretudo nas “espécies” eucarísticas que isso mesmo significam: o que se pode ver dum esplêndido infinito.
Espelho que se desembacia nos olhos que nos fixam com a verdade e a caridade de Cristo, que por eles nos chegam. Foram e são certamente muitos os que assim nos beneficiaram, como hão de ser os nossos, para quem olharmos. Como tão bem os cantou uma grande poetisa portuguesa, desenganada doutros sinais mas certíssima deste: «Só o olhar daqueles que escolheste / Nos dá o Teu sinal entre os fantasmas» (Sophia, Não darei o teu nome). 
Espelho desembaciado sempre que O vislumbramos no irmão que sofre – e que sofre por não ser visto, ouvido e atendido. Nisto precisamente, como o testemunham tantos episódios da santidade cristã, em que o serviço ao irmão foi serviço a Cristo, assim mesmo revelado e certeiro.
Porque a visão do Ressuscitado é mútua e reflexa, uma troca de olhares em convivência perfeita. Acontece na atmosfera nova daquele “primeiro dia” duma semana infinda, como a caridade que nunca acabará.
Aqui, em celebração esplêndida e festiva, como felizmente estamos. E depois, onde tudo continuará forte e luminoso, se nos mantivermos com Cristo nos lugares onde nos espera e donde já nos vê. Os que atrás mencionámos em geral, se agora os vivermos no nosso particular, na relação com os outros, ao modo evangélico dos ressuscitados e até que Cristo seja tudo em todos.
A ressurreição de Cristo não é um espetáculo para ver de fora, é um mundo novo a acontecer entre nós. Como transbordou do túmulo vazio, preencherá também os vazios existenciais que aí estão agora, que aí estão urgentes.

Sé Patriarcal, 21 de abril de 2019
+ Manuel, Cardeal-Patriarca


Fonte: Patriarcado de Lisboa

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