Pe. Raniero Cantalamessa, OFMCap
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
19 de abril de 2018
“Desprezado e rejeitado pelos homens”
“Era desprezado,
era o refugo da humanidade, homem das dores e habituado à enfermidade; era como
pessoa de quem se desvia o rosto, tão desprezível que não fizemos caso dele”.
Estas são as
palavras proféticas de Isaías, com as quais começa a Liturgia da Palavra de
hoje. A história da Paixão que se seguiu deu um nome e um rosto a este
misterioso homem das dores, desprezado e rejeitado pelos homens: o nome e o
rosto de Jesus de Nazaré. Hoje queremos contemplar o Crucificado sob este mesmo
aspecto: como protótipo e representante de todos os rejeitados, deserdados e os
“descartados” da terra, aqueles diante dos quais se vira o rosto para outro
lugar para não os ver.
Jesus não começou
a sê-lo só agora, na paixão. Durante toda a sua vida ele tem sido um deles.
Nasceu em um estábulo porque “não havia lugar para eles na hospedaria” (Lc
2,7). Ao apresentá-lo ao templo, os pais ofereceram "duas rolas ou dois
pombinhos", a oferta prescrita pela lei para os pobres que não podiam
dar-se ao luxo de oferecer um cordeiro (cf. Lv 12,8). Um verdadeiro certificado
de pobreza no Israel da época. Durante a sua vida pública, não tinha lugar para
descansar a cabeça (Mt 8,20): é um sem-teto.
E chegamos à
paixão. No relato, há um momento em que não nos detemos com frequência, mas que
é cheio de significado: Jesus no pretório de Pilatos (cf. Mc 15,16-20). Os
soldados notaram um arbusto de silvas na praça adjacente; pegaram um feixe e o
colocaram em sua cabeça; sobre seus ombros, ainda sangrando da flagelação,
colocaram um manto de escárnio sobre ele; suas mãos estão atadas com uma corda
áspera; em uma mão colocaram uma cana, símbolo irrisório de sua realeza. É o
protótipo das pessoas algemadas, sozinhas, à mercê de soldados e bandidos que
descarregam sobre os pobres infelizes a raiva e a crueldade que acumularam na
vida. Torturado!
“Ecce homo!”, “Eis o homem!”, exclama
Pilatos, ao apresentá-lo pouco depois ao povo (Jo 19,5). Palavra que, depois de
Cristo, se pode dizer das intermináveis fileiras de homens e mulheres
humilhados, reduzidos a objetos, privados de toda dignidade humana. “Se isto é
um homem”: o escritor Primo Levi intitulou assim o relato da sua vida no campo
de extermínio de Auschwitz. Na cruz, Jesus de Nazaré torna-se o emblema de toda
esta humanidade “humilhada e ofendida”. Deveria se exclamar: “Rejeitados,
desprezados, párias de toda a terra: o maior homem de toda a história foi um de
vocês! Independente do povo, raça ou religião a que pertençais, tendes o
direito de reivindica-lo como seu”.
Um escritor e
teólogo afro-americano que Martin Luther King considerava seu mestre e
inspirador da luta não-violenta pelos direitos civis escreveu um livro
intitulado “Jesus and the Disinherited” [1], Jesus e os Deserdados. Neste, ele
mostra o que a figura de Jesus havia representado para os escravos do Sul, dos
quais ele próprio era um descendente direto. Na privação de todo direito e na
mais total abjeção, as palavras do Evangelho que o ministro do culto negro
repetia, na única reunião que lhes era permitida, devolvia aos escravos o
sentido da sua dignidade de filhos de Deus.
Neste clima,
nasceu a maioria dos cantos negro-espirituais que ainda hoje comovem o mundo [2].
No momento do leilão público, estes tinham experimentado o tormento de ver as
suas esposas muitas vezes separadas dos seus maridos e os pais dos filhos,
vendidos a diferentes proprietários. É fácil ver com que espírito eles cantavam
sob o sol ou em suas cabanas: “Nobody
knows the trouble I have seen. Nobody knows, but Jesus”: “Ninguém sabe a
dor que experimentei; ninguém, senão Jesus”.
Este não é o
único significado da paixão e morte de Cristo, nem é o mais importante. O
significado mais profundo não é o social, mas o espiritual. Aquela morte
redimiu o mundo do pecado, levou o amor de Deus ao ponto mais distante e mais
obscuro para o qual a humanidade se havia colocado na sua fuga d'Ele, isto é,
na morte. Não é, como eu disse, o significado mais importante da cruz, mas é o
que todos, crentes e não crentes, podem reconhecer e aceitar.
Todos, repito,
não apenas os crentes. Se, pelo fato da sua encarnação, o Filho de Deus se fez
homem e se uniu a toda a humanidade, pelo modo como se realizou a sua
encarnação, ele tornou-se um dos pobres e rejeitados, casou-se com a causa
deles. Tomou a seu cargo assegurar-nos, quando afirmou solenemente: “O que
fizeste aos famintos, aos nus, aos prisioneiros, aos exilados, a mim o fizeste;
o que não fizeste a eles, a mim não me fizeste” (cf. Mt 25,31-46).
Mas não podemos
parar por aí. Se Jesus tivesse apenas isso a dizer aos desprivilegiados do
mundo, seria apenas mais um entre eles, um exemplo de dignidade na desgraça e
nada mais. De fato, seria mais uma prova a favor de que Deus permite tudo isso.
É conhecida a reação indignada de Ivan, o irmão rebelde dos Irmãos Karamazov de
Dostoievski, quando o piedoso irmão mais novo Aliocha nomeia Jesus: “Ah,
trata-se do ‘Único sem Pecado’ e do Seu sangue, não é? Não, não me tinha
esquecido d'Ele: e fiquei admirado, de fato, enquanto se discutia isso, por que
demoraste tanto em sair com Ele, dado que comumente, nas discussões, todos os
que estão do teu lado o colocam antes de qualquer outra coisa” [3].
O Evangelho não
para por aí; diz também outra coisa, diz que o crucificado ressuscitou! Nele
houve uma inversão total das partes: o conquistado tornou-se o vencedor, o
julgado tornou-se o juiz, “a pedra descartada pelos construtores tornou-se a
pedra angular” (cf. At 4,11). A última palavra não foi, e nunca será, da
injustiça e da opressão. Jesus não só restituiu uma dignidade aos
desfavorecidos do mundo; deu-lhes uma esperança!
Nos primeiros
três séculos da Igreja, a celebração da Páscoa não era distribuída como agora
em vários dias: Sexta-feira Santa, Sábado Santo e Domingo de Páscoa. Tudo
estava concentrado num só dia. Na Vigília Pascal se comemorava tanto a morte
quanto a ressurreição. Mais precisamente: não se comemorava nem a morte nem a
ressurreição como fatos distintos e separados; se comemorava, pelo contrário, a
passagem de Cristo de uma para a outra, da morte para a vida. A palavra “páscoa”
(pessach) significa passagem:
passagem do povo judeu da escravidão à liberdade, passagem de Cristo deste mundo
para o Pai (cf. Jo 13,1) e passagem dos que creem n'Ele do pecado para a graça.
É a festa da
reviravolta feita por Deus e realizada em Cristo; é o início e a promessa da
única reviravolta totalmente justa e irreversível no destino da humanidade.
Pobres, excluídos, pertencentes às diversas formas de escravidão que ainda se
verificam na nossa sociedade: a Páscoa é a vossa festa!
A cruz também
contém uma mensagem para aqueles que estão do outro lado: para os poderosos, os
fortes, aqueles que se sentem tranquilos no seu papel de “vencedores”. E é uma
mensagem, como sempre, de amor e de salvação, não de ódio ou de vingança. Lembra-lhes que, no final, eles estão ligados
ao mesmo destino que todos; que fracos e poderosos, indefesos e tiranos, todos
estão sujeitos à mesma lei e aos mesmos limites humanos. A morte, como a espada
de Dâmocles, paira sobre a cabeça de todos, pendurada por uma crina de cavalo.
Adverte contra o pior mal para o homem, que é a ilusão da onipotência. Não é
necessário recuar muito no tempo, basta repensar a história recente para
perceber o quanto este perigo é frequente e leva pessoas e povos à catástrofe.
A Escritura tem
palavras de sabedoria eterna dirigidas aos dominadores da cena deste mundo:
“Aprendei, vós,
que governais o universo... os poderosos serão examinados sem piedade” (Sb 6,1.6);
“O homem que vive
na opulência e não reflete é semelhante ao gado que se abate” (Sl 48,21);
“Que aproveita
ao homem ganhar o mundo inteiro, se ele se perder ou arruinar a si mesmo?” (Lc
9,25).
A Igreja recebeu
o mandato do seu fundador para estar ao lado dos pobres e dos fracos, para ser
a voz dos que não têm voz e, graças a Deus, é isso que ela faz, especialmente
no seu pastor supremo.
A segunda tarefa
histórica que as religiões devem, em conjunto, assumir hoje, para além da de
promover a paz, é a de não ficar em silêncio perante o espetáculo que está
diante dos olhos de todos. Poucos privilegiados possuem bens que não poderiam
consumir, ainda que vivessem por séculos, e massas intermináveis de pobres que
não têm um pedaço de pão e um gole de água para dar a seus filhos. Nenhuma
religião pode ficar indiferente, porque o Deus de todas as religiões não é
indiferente a tudo isso.
Voltemos à
profecia de Isaías, da qual começamos. Começa com a descrição da humilhação do
Servo de Deus, mas termina com a descrição da sua exaltação final. É Deus quem
fala:
“Depois dos
profundos sofrimentos, ele verá a luz [...] Por isso lhe darei uma parte entre
os grandes, e com os poderosos ele partilhará os despojos; é que entregou sua
vida à morte e se deixou contar entre os rebeldes, quando na realidade carregava
o pecado de muitos e intercedia em favor dos rebeldes”.
Dentro de dois
dias, com o anúncio da Ressurreição de Cristo, a Liturgia dará também um nome e
um rosto a este homem triunfante. Vigiemos e meditemos esperando.
[1] Howard Thurman.
Jesus and the Disinherited. Beacon Press, 1949, rist.
2012.
[2] Howard
Thurman. Deep River and The Negro Spiritual
Speaks of Life and Death. Richmond, Indiana, 1975.
[3] F. Dostoievski.
Os Irmãos Karamazov. Livro V, cap. 4.
Fonte: Vatican News
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