13
de fevereiro de 2019
No nosso espaço Memória Histórica – 50 anos do
Concílio Vaticano II, vamos continuar a falar sobre a reforma litúrgica.
Desde terça-feira, 12 de fevereiro, até a
sexta-feira, 15, está sendo realizada a Assembleia Plenária da Congregação para
o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, para tratar da "Formação
Litúrgica do Povo de Deus". Nestes dias, os membros do Dicastério vaticano
encarregados da promoção e regulamentação da sagrada liturgia - 22 Cardeais, 8 Arcebispos
e 11 Bispos, provenientes dos cinco continentes – estão reunidos no Vaticano
para discutir sobre este assunto.
Com a reforma litúrgica advinda do Concílio
Vaticano II, o latim das celebrações, por exemplo, foi substituído pela língua
falada em cada país; o celebrante passou a celebrar voltado para a
assembleia, estabelecendo assim um novo tipo de participação ativa e consciente
da comunidade, que também passou a acompanhar a celebração através dos folhetos
litúrgicos dominicais.
Ao encontrar Bispos brasileiros em 1990, o Papa
João Paulo II recordava a “alta intensidade espiritual” que viveu no Brasil
durante as celebrações litúrgicas, “que constituíam o ponto culminante” de suas
visitas. Mas ele também recordou, que “na aplicação da Sacrosanctum
Concilium , houve, certamente, deficiências, hesitações e abusos. Mas
não se pode negar – disse ele - que, onde as comunidades foram preparadas, com
a devida informação e a catequese, os resultados são positivos. Com razão se
afirmou na Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos de 1985 que ‘a
renovação litúrgica é o fruto mais visível de toda a obra conciliar’”.
No programa de hoje deste nosso espaço, padre
Gerson Schmidt - que tem nos acompanhado neste percurso da exposição dos
documentos conciliares - nos fala sobre o tema “Alguns exageros na reforma
litúrgica”:
A reforma da Missa foi uma das partes mais fundamentais
da reforma de toda a Liturgia, mas ao mesmo tempo, foi a sua parte mais
controversa [1]. A reforma suscita controvérsias até hoje [2]. Passados mais de
50 anos, até que ponto a reforma da Liturgia está caminhando corretamente, não
sabemos bem o certo.
Tal como aponta Helmut Hoping, professor liturgista
da Universidade de Friburgo: “Um movimento mais influente reconhece a reforma
litúrgica do Concilio, mas acha necessária ‘uma reforma da reforma’ para corrigir
alguns erros concretos na aplicação da reforma e do desenvolvimento litúrgico
pós-conciliar” [3].
Outros, mais conservadores, querem o retorno à Liturgia
pré-conciliar, negligenciando os avanços, riqueza e aprimoramentos de caminhada
de toda a renovação [4], que como diz o Papa Francisco, não pode retroceder [5].
O Papa Bento XVI alertava para os exageros
litúrgicos, recordando que “em muitos lugares, se celebrava não se atendo de
maneira fiel às prescrições do novo Missal, antes se consideravam como que autorizados
ou até obrigados à criatividade, o que levou frequentemente a deformações da
Liturgia no limite do suportável” [6].
Houve não poucos exageros. Em relação ao primeiro
capítulo da Lumen Gentium que utiliza a imagem da Igreja como
Povo de Deus, não poucos intérpretes sustentaram, através de uma eclesiologia
unilateral do Povo-Deus (uma eclesiologia a “partir de baixo”) de que a
Liturgia tem sentido somente pela imagem da comunidade reunida como ágape e
sujeito da Lliturgia.
“Essa opinião foi chamada de ‘horizontalismo
superficial’ na Liturgia. Além disso, o Missal de 1970, com suas amplas modificações,
deu a impressão de a Liturgia pudesse inventar-se a si mesma. esta é a posição
dos que são favoráveis à reforma da reforma” [7].
Sobre esse horizontalismo, como se a Liturgia fosse
tão somente um clamor popular, é preciso aqui dizer algo. São sem dúvida, na
América Latina, louváveis as iniciativas de unir o sofrimento dos povos mais
sofredores com o sacrifício redentor de Cristo, celebrado e atualizado na Eucaristia.
Traz presente a vida do povo e se mergulha no grande mistério eucarístico.
Mas não podemos cair em exagero de dizer que na
Santa Missa tão somente se celebra as lutas e as reinvindicações populares,
como se o sacramento fosse um espaço de um esforço puramente humano e não um
inefável dom de Deus.
Por isso, a Congregação da Doutrina da Fé, em 1984,
fazia o seguinte alerta em relação aos exageros litúrgicos nas celebrações
populares, expressões da Teologia da Libertação: “Verifica-se ainda a inversão
dos símbolos no domínio dos sacramentos. A Eucaristia não é mais entendida na
sua verdade de presença sacramental do sacrifício reconciliador e como dom do
Corpo e do Sangue de Cristo. Torna-se celebração do povo na sua luta. Por
conseguinte, a unidade da Igreja é radicalmente negada. A unidade, a
reconciliação, a comunhão no amor não mais são concebidas como um dom que
recebemos de Cristo. É a classe histórica dos pobres que, mediante o combate,
construirá a unidade. A luta de classes é o caminho desta unidade. A Eucaristia
torna-se, deste modo, Eucaristia de classe. Nega-se também, ao mesmo tempo a
força triunfante do amor de Deus que nos é dado” [8].
20
de fevereiro de 2019
No nosso espaço Memória Histórica – 50 anos do
Concílio Vaticano II, vamos falar no programa de hoje sobre “os dois extremos
do pêndulo na liturgia”.
A reforma litúrgica e o Concílio Vaticano II são
dois eventos intrinsicamente ligados. Não floresceram repentinamente, mas foram
longamente preparados, como testemunha o chamado movimento litúrgico e
as respostas dadas pelos Sumos Pontífices às dificuldades sentidas na oração
eclesial.
“O Concílio Vaticano II fez maturar, como
bom fruto da árvore da Igreja, a Constituição sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum
Concilium (SC), cujas linhas de reforma geral respondiam às
necessidades reais e à esperança concreta de uma renovação: desejava-se uma
liturgia viva para uma Igreja toda vivificada pelos mistérios celebrados”, disse
o Papa Francisco aos participantes da Semana Nacional Litúrgica em
agosto de 2017.
A reforma da Missa foi uma das partes mais
fundamentais desta reforma de toda a Liturgia, mas ao mesmo tempo, foi a sua
parte mais controvertida. A reforma suscita controvérsias até hoje, passados
mais de 50 anos.
“Um movimento mais influente reconhece a reforma
litúrgica do Concílio, mas acha necessária ‘uma reforma da reforma’ para
corrigir alguns erros concretos na aplicação da reforma e do desenvolvimento
litúrgico pós-conciliar”, aponta Helmut Hoping, professor liturgista da
Universidade de Friburgo [9]. Já outros mais conservadores, querem o retorno à Liturgia
pré-conciliar, negligenciando os avanços, riqueza e aprimoramentos de caminhada
de toda a renovação, que como diz Papa Francisco, não pode retroceder.
No programa de hoje, padre Gerson
Schmidt - incardinado na Arquidiocese de Porto Alegre – nos traz a
reflexão “Os dois extremos do pêndulo na Liturgia”:
Na renovação litúrgica, houve a necessidade de um “novo
renascer” partindo do mais íntimo da Liturgia, como o havia desejado o
movimento litúrgico quando estava no apogeu de sua verdadeira natureza, quando
não se tratava de fabricar textos ou de inventar ações e formas, mas de
descobrir o centro vivo, de penetrar no tecido da Liturgia propriamente dita,
para que seu cumprimento saísse de sua própria substância. A reforma litúrgica,
em sua realização concreta, se distanciou demais desta origem.
O resultado, em tantos lugares, não foi uma
reanimação, mas uma devastação. O Cardeal Joseph Ratzinger, depois de 20 anos
da SC, afirmava que “de um lado, tem-se
a Liturgia que se degenerou em ‘show’, onde se quis mostrar uma religião
atrativa com a ajuda de tolices da moda e de incitantes princípios morais, com
êxitos momentâneos no grupo de criadores litúrgicos e uma atitude de reprovação
tanto mais pronunciada nos que buscam na Liturgia, não tanto o ‘showmaster’ espiritual, mas o encontro
com o Deus vivo, diante do qual toda ‘ação’ é insignificante, pois somente este
encontro é capaz de nos fazer chegar à verdadeira riqueza do ser. De outro lado, existe uma
conservação de formas rituais cuja grandeza sempre impressiona, porém que
levada ao extremo cristaliza num isolamento de opinião, que ao final só se
torna tristeza. Certamente ficam entre os dois todos os sacerdotes e seus paroquianos
que celebram a nova Liturgia com solenidade; mas que se sentem inquietos pelas
contradições existentes entre os dois extremos; e a falta de unidade interna da
Igreja faz com que esta fidelidade apareça, aos olhos de muitos, como uma
simples variedade pessoal de neoconservadorismo. Uma vez que isto acontece,
necessitamos de um novo impulso espiritual para que a Liturgia seja de novo uma
atividade comunitária da Igreja e seja arrancada da arbitrariedade dos padres e
de suas equipes de liturgia” [10].
Assim apontou o Cardeal Ratzinger, antes de ser
Papa, avaliando os dois extremos, por um lado o modismo exagerado, por outro o
conservadorismo por demais enrijecido que não permitia a reforma proposta pela
SC.
J.A. Jungman, um dos liturgistas verdadeiramente
grandes de nosso século, havia definido em seu tempo a Liturgia, tal como se
entendia no Ocidente, baseando-se em investigações históricas, como uma “Liturgia
fruto de um desenvolvimento”; provavelmente em contraste com a noção oriental,
que não vê na Liturgia o devir e o crescimento histórico, mas apenas o reflexo
da eterna Liturgia, na qual a luz, através do desenrolar da ação sagrada,
ilumina nossos tempos mutáveis com sua beleza e sua grandeza imutáveis.
O que ocorreu após o Concílio é algo completamente
distinto: no lugar de uma Liturgia fruto de um desenvolvimento contínuo,
introduziu-se uma Liturgia fabricada, uma fabricação que é um produto banal do
momento. A Liturgia romana da Igreja não se inventa, não se fabrica. Quem a
criou foi Jesus Cristo e por isso precisa ser bem compreendida para não se
inventar modas de qualquer jeito, mas integrá-la na história de cada tempo, nos
seus aspectos possíveis de adaptação e mudança.
A Constituição sobre a Sagrada Liturgia, promulgada
pelo Concílio Vaticano II, corresponde às necessidades legítimas da pastoral
atual. Sem dúvida, o juízo que se tem sobre as reformas efetivamente realizadas
não é unânime de nenhuma maneira, particularmente no concernente aos novos
livros litúrgicos elaborados, como resultado do Concílio, por um grupo de
especialistas. Uns rechaçam estes novos livros, porque refletem demasiado o
espírito da nova teologia sem ter suficientemente em conta a tradição. Pensa-se
que a renovação dos ritos, em seu conjunto, foi longe demais.
Sem dúvida, outros se lamentam de que ainda não se tenha
ampliado o quadro estreito da visão rubricista e que se tenha assim fixado
definitivamente nos novos livros litúrgicos, elementos que ainda não tinham
sido provados e que por esta causa pareciam até duvidosos [11]. Frente a esses
dois extremos, precisamos encontrar o ponto de equilíbrio. “In medio stat virtus” - no meio está a
virtude – já dizia o provérbio latino.
[1] Helmut Hoping. A Constituição
Sacrosanctum Concilium. in: As
Constituições do Vaticano II, Ontem e Hoje. Geraldo B. Hackmann e Miguel de
Salis Amaral [org.]. Edições CNBB: 2015, p.120.
[2] ibid.,
p. 132.
[3] ibid.
[4] ibid.
[5] Discurso do Papa Francisco na 68ª Semana
Litúrgica Nacional, por ocasião do Aniversário de 50 anos da Constituição Sacrosanctum Concilium, ao grupo de Liturgia
da Conferência Episcopal da Itália, na Sala Paulo VI.
[6] Carta aos Bispos que acompanha o Motu Proprio Summorum Pontificum, de 7
de julho de 2007.
[7] Helmut Hoping. A Constituição Sacrosanctum Concilium. in: As Constituições do Vaticano II, Ontem e Hoje.
Geraldo B. Hackmann e Miguel de Salis Amaral [org.]. Edições CNBB: 2015, p. 134.
[8] Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Instrução
sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação, 1984, X,16.
[9] Helmut Hoping. A Constituição Sacrosanctum Concilium. in: As Constituições do Vaticano II, Ontem e Hoje.
Geraldo B. Hackmann e Miguel de Salis Amaral [org.]. Edições CNBB: 2015, p.120.
[10] Pensamentos de Joseph Ratzinger, Comentário
introdutório da obra “Reforma da Liturgia
Romana”, de Monsenhor Klaus
Gamber. Disponível em http://www.unavocesevilla.info/reformaliturgia.pdf
[11] cf. Introdução de Monsenhor Klaus Gamber, Reforma da Liturgia Romana, disponível
em http://www.unavocesevilla.info/reformaliturgia.pdf
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