quinta-feira, 4 de abril de 2019

Alguns exageros na renovação litúrgica

Alguns exageros na renovação litúrgica
13 de fevereiro de 2019

No nosso espaço Memória Histórica – 50 anos do Concílio Vaticano II, vamos continuar a falar sobre a reforma litúrgica.
Desde terça-feira, 12 de fevereiro, até a sexta-feira, 15, está sendo realizada a Assembleia Plenária da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, para tratar da "Formação Litúrgica do Povo de Deus". Nestes dias, os membros do Dicastério vaticano encarregados da promoção e regulamentação da sagrada liturgia - 22 Cardeais, 8 Arcebispos e 11 Bispos, provenientes dos cinco continentes – estão reunidos no Vaticano para discutir sobre este assunto.
Com a reforma litúrgica advinda do Concílio Vaticano II, o latim das celebrações, por exemplo, foi substituído pela língua falada em cada país; o celebrante passou a celebrar voltado para a assembleia, estabelecendo assim um novo tipo de participação ativa e consciente da comunidade, que também passou a acompanhar a celebração através dos folhetos litúrgicos dominicais.
Ao encontrar Bispos brasileiros em 1990, o Papa João Paulo II recordava a “alta intensidade espiritual” que viveu no Brasil durante as celebrações litúrgicas, “que constituíam o ponto culminante” de suas visitas. Mas ele também recordou, que “na aplicação da Sacrosanctum Concilium , houve, certamente, deficiências, hesitações e abusos. Mas não se pode negar – disse ele - que, onde as comunidades foram preparadas, com a devida informação e a catequese, os resultados são positivos. Com razão se afirmou na Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos de 1985 que ‘a renovação litúrgica é o fruto mais visível de toda a obra conciliar’”.
No programa de hoje deste nosso espaço, padre Gerson Schmidt - que tem nos acompanhado neste percurso da exposição dos documentos conciliares - nos fala sobre o tema “Alguns exageros na reforma litúrgica”:
A reforma da Missa foi uma das partes mais fundamentais da reforma de toda a Liturgia, mas ao mesmo tempo, foi a sua parte mais controversa [1]. A reforma suscita controvérsias até hoje [2]. Passados mais de 50 anos, até que ponto a reforma da Liturgia está caminhando corretamente, não sabemos bem o certo.
Tal como aponta Helmut Hoping, professor liturgista da Universidade de Friburgo: “Um movimento mais influente reconhece a reforma litúrgica do Concilio, mas acha necessária ‘uma reforma da reforma’ para corrigir alguns erros concretos na aplicação da reforma e do desenvolvimento litúrgico pós-conciliar” [3].
Outros, mais conservadores, querem o retorno à Liturgia pré-conciliar, negligenciando os avanços, riqueza e aprimoramentos de caminhada de toda a renovação [4], que como diz o Papa Francisco, não pode retroceder [5].
O Papa Bento XVI alertava para os exageros litúrgicos, recordando que “em muitos lugares, se celebrava não se atendo de maneira fiel às prescrições do novo Missal, antes se consideravam como que autorizados ou até obrigados à criatividade, o que levou frequentemente a deformações da Liturgia no limite do suportável” [6].
Houve não poucos exageros. Em relação ao primeiro capítulo da Lumen Gentium que utiliza a imagem da Igreja como Povo de Deus, não poucos intérpretes sustentaram, através de uma eclesiologia unilateral do Povo-Deus (uma eclesiologia a “partir de baixo”) de que a Liturgia tem sentido somente pela imagem da comunidade reunida como ágape e sujeito da Lliturgia.
“Essa opinião foi chamada de ‘horizontalismo superficial’ na Liturgia. Além disso, o Missal de 1970, com suas amplas modificações, deu a impressão de a Liturgia pudesse inventar-se a si mesma. esta é a posição dos que são favoráveis à reforma da reforma” [7].
Sobre esse horizontalismo, como se a Liturgia fosse tão somente um clamor popular, é preciso aqui dizer algo. São sem dúvida, na América Latina, louváveis as iniciativas de unir o sofrimento dos povos mais sofredores com o sacrifício redentor de Cristo, celebrado e atualizado na Eucaristia. Traz presente a vida do povo e se mergulha no grande mistério eucarístico.
Mas não podemos cair em exagero de dizer que na Santa Missa tão somente se celebra as lutas e as reinvindicações populares, como se o sacramento fosse um espaço de um esforço puramente humano e não um inefável dom de Deus.
Por isso, a Congregação da Doutrina da Fé, em 1984, fazia o seguinte alerta em relação aos exageros litúrgicos nas celebrações populares, expressões da Teologia da Libertação: “Verifica-se ainda a inversão dos símbolos no domínio dos sacramentos. A Eucaristia não é mais entendida na sua verdade de presença sacramental do sacrifício reconciliador e como dom do Corpo e do Sangue de Cristo. Torna-se celebração do povo na sua luta. Por conseguinte, a unidade da Igreja é radicalmente negada. A unidade, a reconciliação, a comunhão no amor não mais são concebidas como um dom que recebemos de Cristo. É a classe histórica dos pobres que, mediante o combate, construirá a unidade. A luta de classes é o caminho desta unidade. A Eucaristia torna-se, deste modo, Eucaristia de classe. Nega-se também, ao mesmo tempo a força triunfante do amor de Deus que nos é dado” [8].


20 de fevereiro de 2019

No nosso espaço Memória Histórica – 50 anos do Concílio Vaticano II, vamos falar no programa de hoje sobre “os dois extremos do pêndulo na liturgia”.
A reforma litúrgica e o Concílio Vaticano II são dois eventos intrinsicamente ligados. Não floresceram repentinamente, mas foram longamente preparados, como testemunha o chamado movimento litúrgico e as respostas dadas pelos Sumos Pontífices às dificuldades sentidas na oração eclesial. 
“O Concílio Vaticano II fez maturar, como bom fruto da árvore da Igreja, a Constituição sobre a sagrada liturgia Sacrosanctum Concilium (SC), cujas linhas de reforma geral respondiam às necessidades reais e à esperança concreta de uma renovação: desejava-se uma liturgia viva para uma Igreja toda vivificada pelos mistérios celebrados”, disse o Papa Francisco aos participantes da Semana Nacional Litúrgica em agosto de 2017.
A reforma da Missa foi uma das partes mais fundamentais desta reforma de toda a Liturgia, mas ao mesmo tempo, foi a sua parte mais controvertida. A reforma suscita controvérsias até hoje, passados mais de 50 anos.
“Um movimento mais influente reconhece a reforma litúrgica do Concílio, mas acha necessária ‘uma reforma da reforma’ para corrigir alguns erros concretos na aplicação da reforma e do desenvolvimento litúrgico pós-conciliar”, aponta Helmut Hoping, professor liturgista da Universidade de Friburgo [9]. Já outros mais conservadores, querem o retorno à Liturgia pré-conciliar, negligenciando os avanços, riqueza e aprimoramentos de caminhada de toda a renovação, que como diz Papa Francisco, não pode retroceder.
No programa de hoje, padre Gerson Schmidt - incardinado na Arquidiocese de Porto Alegre – nos traz a reflexão “Os dois extremos do pêndulo na Liturgia”:
Na renovação litúrgica, houve a necessidade de um “novo renascer” partindo do mais íntimo da Liturgia, como o havia desejado o movimento litúrgico quando estava no apogeu de sua verdadeira natureza, quando não se tratava de fabricar textos ou de inventar ações e formas, mas de descobrir o centro vivo, de penetrar no tecido da Liturgia propriamente dita, para que seu cumprimento saísse de sua própria substância. A reforma litúrgica, em sua realização concreta, se distanciou demais desta origem.
O resultado, em tantos lugares, não foi uma reanimação, mas uma devastação. O Cardeal Joseph Ratzinger, depois de 20 anos da SC, afirmava que “de um lado, tem-se a Liturgia que se degenerou em ‘show’, onde se quis mostrar uma religião atrativa com a ajuda de tolices da moda e de incitantes princípios morais, com êxitos momentâneos no grupo de criadores litúrgicos e uma atitude de reprovação tanto mais pronunciada nos que buscam na Liturgia, não tanto o ‘showmaster’ espiritual, mas o encontro com o Deus vivo, diante do qual toda ‘ação’ é insignificante, pois somente este encontro é capaz de nos fazer chegar à verdadeira riqueza do ser. De outro lado, existe uma conservação de formas rituais cuja grandeza sempre impressiona, porém que levada ao extremo cristaliza num isolamento de opinião, que ao final só se torna tristeza. Certamente ficam entre os dois todos os sacerdotes e seus paroquianos que celebram a nova Liturgia com solenidade; mas que se sentem inquietos pelas contradições existentes entre os dois extremos; e a falta de unidade interna da Igreja faz com que esta fidelidade apareça, aos olhos de muitos, como uma simples variedade pessoal de neoconservadorismo. Uma vez que isto acontece, necessitamos de um novo impulso espiritual para que a Liturgia seja de novo uma atividade comunitária da Igreja e seja arrancada da arbitrariedade dos padres e de suas equipes de liturgia” [10]. 
Assim apontou o Cardeal Ratzinger, antes de ser Papa, avaliando os dois extremos, por um lado o modismo exagerado, por outro o conservadorismo por demais enrijecido que não permitia a reforma proposta pela SC. 
J.A. Jungman, um dos liturgistas verdadeiramente grandes de nosso século, havia definido em seu tempo a Liturgia, tal como se entendia no Ocidente, baseando-se em investigações históricas, como uma “Liturgia fruto de um desenvolvimento”; provavelmente em contraste com a noção oriental, que não vê na Liturgia o devir e o crescimento histórico, mas apenas o reflexo da eterna Liturgia, na qual a luz, através do desenrolar da ação sagrada, ilumina nossos tempos mutáveis com sua beleza e sua grandeza imutáveis.
O que ocorreu após o Concílio é algo completamente distinto: no lugar de uma Liturgia fruto de um desenvolvimento contínuo, introduziu-se uma Liturgia fabricada, uma fabricação que é um produto banal do momento. A Liturgia romana da Igreja não se inventa, não se fabrica. Quem a criou foi Jesus Cristo e por isso precisa ser bem compreendida para não se inventar modas de qualquer jeito, mas integrá-la na história de cada tempo, nos seus aspectos possíveis de adaptação e mudança.
A Constituição sobre a Sagrada Liturgia, promulgada pelo Concílio Vaticano II, corresponde às necessidades legítimas da pastoral atual. Sem dúvida, o juízo que se tem sobre as reformas efetivamente realizadas não é unânime de nenhuma maneira, particularmente no concernente aos novos livros litúrgicos elaborados, como resultado do Concílio, por um grupo de especialistas. Uns rechaçam estes novos livros, porque refletem demasiado o espírito da nova teologia sem ter suficientemente em conta a tradição. Pensa-se que a renovação dos ritos, em seu conjunto, foi longe demais.
Sem dúvida, outros se lamentam de que ainda não se tenha ampliado o quadro estreito da visão rubricista e que se tenha assim fixado definitivamente nos novos livros litúrgicos, elementos que ainda não tinham sido provados e que por esta causa pareciam até duvidosos [11]. Frente a esses dois extremos, precisamos encontrar o ponto de equilíbrio. “In medio stat virtus” - no meio está a virtude – já dizia o provérbio latino.



[1] Helmut Hoping. A Constituição Sacrosanctum Concilium. in: As Constituições do Vaticano II, Ontem e Hoje. Geraldo B. Hackmann e Miguel de Salis Amaral [org.]. Edições CNBB: 2015, p.120.
[2] ibid., p. 132.
[3] ibid.
[4] ibid.
[5] Discurso do Papa Francisco na 68ª Semana Litúrgica Nacional, por ocasião do Aniversário de 50 anos da Constituição Sacrosanctum Concilium, ao grupo de Liturgia da Conferência Episcopal da Itália, na Sala Paulo VI.
[6] Carta aos Bispos que acompanha o Motu Proprio Summorum Pontificum, de 7 de julho de 2007.
[7] Helmut Hoping. A Constituição Sacrosanctum Concilium. in: As Constituições do Vaticano II, Ontem e Hoje. Geraldo B. Hackmann e Miguel de Salis Amaral [org.]. Edições CNBB: 2015, p. 134.
[8] Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação, 1984, X,16.
[9] Helmut Hoping. A Constituição Sacrosanctum Concilium. in: As Constituições do Vaticano II, Ontem e Hoje. Geraldo B. Hackmann e Miguel de Salis Amaral [org.]. Edições CNBB: 2015, p.120.
[10] Pensamentos de Joseph Ratzinger, Comentário introdutório da obra “Reforma da Liturgia Romana, de Monsenhor Klaus Gamber. Disponível em http://www.unavocesevilla.info/reformaliturgia.pdf
[11] cf. Introdução de Monsenhor Klaus Gamber, Reforma da Liturgia Romana, disponível em http://www.unavocesevilla.info/reformaliturgia.pdf 

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