quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 24

Concluindo a seção sobre a Divina Providência dentro das suas Catequeses sobre Deus Pai, o Papa São João Paulo II destacou  a contribuição do Concílio Vaticano II sobre esse tema, particularmente na Constituição Gaudium et Spes, em cuja redação ele mesmo contribuiu como Padre conciliar.

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

40. A Divina Providência e a condição histórica do homem de hoje à luz do Concílio Vaticano II
João Paulo II - 18 de junho de 1986

1. A verdade sobre a Divina Providência aparece como ponto de convergência de tantas verdades contidas na afirmação: “Creio em Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”. Por sua riqueza e contínua atualidade, essa verdade foi tratada por todo o magistério do Concílio Vaticano II, que o fez de modo excelente. Em muitos documentos conciliares, com efeito, encontramos uma referência adequada a esta verdade de fé, de modo particular na Constituição Gaudium et Spes. Destacá-lo significa fazer uma recapitulação das catequeses anteriores sobre a Divina Providência.

2. Como se sabe, a Constituição Gaudium et Spes afronta o tema: a Igreja no mundo de hoje. Desde os primeiros parágrafos, porém, se vê claramente que tratar este tema sobre a base do Magistério da Igreja não é possível sem referir-se à verdade revelada sobre a relação de Deus com o mundo, e em definitiva à verdade da Providência Divina.
Lemos, pois: “O Concílio... tem diante dos olhos o mundo dos homens... o mundo que os cristãos acreditam ser criado e conservado pelo amor do Criador, certamente posto sob a escravidão do pecado, mas que Cristo Crucificado e Ressuscitado libertou, quebrando o poder do maligno para que, segundo o desígnio de Deus, se transforme e chegue à consumação” (Gaudium et spes, n. 2).

Sessão do Concílio Vaticano II (1962-1965)

Essa “descrição” envolve toda a doutrina da Providência, entendida seja como plano eterno de Deus na criação, como realização deste plano na história, ou como sentido salvífico e escatológico do universo e especialmente do mundo humano segundo a “predestinação em Cristo”, centro e vértice de todas as coisas. Dessa maneira é retomada, com outros termos, a afirmação dogmática do Concílio Vaticano I: “Tudo o que criou, Deus o conserva e governa com sua Providência ‘alcançando com força de uma extremidade a outra, e dispondo com suavidade todas as coisas’ (cf. Sb 8,1). Pois ‘tudo está nu e descoberto aos seus olhos’ (cf. Hb 4,13), mesmo o que há de acontecer por livre ação das criaturas” (Denzinger, n. 3003). Mais especificamente, desde o ponto de partida a Gaudium et Spes enfoca uma questão tão pertinente ao nosso tema como cara ao homem de hoje: como se constituem o “crescimento” do reino de Deus e o desenvolvimento (evolução) do mundo. Sigamos agora as grandes linhas de tal exposição, apontando as afirmações principais.

3. No mundo visível o protagonista do desenvolvimento histórico e cultural é o homem. Criado à imagem e semelhança de Deus, conservado por Ele em seu ser e guiado com amor paterno na tarefa de “dominar” as outras criaturas, o homem em certo sentido é, por si mesmo, “providência”. “A atividade humana, individual e coletiva, o imenso esforço com o qual, no decorrer dos séculos, os homens procuram melhorar as condições de sua vida, corresponde ao plano de Deus. Com efeito, criado à imagem de Deus, o homem recebeu a ordem de submeter a terra com tudo o que nela existe, de governar o mundo em justiça e santidade (Gn 1,26-27; 9,2-3; Sb 9,2-3) e, reconhecendo a Deus como Criador de tudo, orientar para Ele a si mesmo e a universalidade das coisas, de maneira que, estando todas as coisas sujeitas ao homem, o nome de Deus seja glorificado em toda a terra (Sl 8,7.10)” (Gaudium et spes, n. 34).
Anteriormente, o mesmo documento conciliar havia afirmado: “O homem não se engana quando se reconhece superior às coisas materiais e não se considera somente uma partícula da natureza ou um elemento anônimo da cidade humana. Com efeito, por sua interioridade, excede a universalidade das coisas:  retorna para essa profunda interioridade quando se volta para o coração, onde o espera Deus, que perscruta os corações (1Rs 16,7; Jr 17,10) e onde ele mesmo, sob o olhar de Deus, decide a própria sorte” (ibid., n. 14).

4. O desenvolvimento do mundo rumo a bens econômicas e culturais sempre mais correspondentes às exigências integrais do homem é uma tarefa que se enquadra na vocação do mesmo homem ao domínio da terra. Por isso também os êxitos reais da atual civilização científica e técnica, assim como os da cultura humanística e da “sabedoria” de todos os séculos, se enquadram no âmbito da “providência” da qual o homem participa para a realização do desígnio de Deus no mundo. Sob esta luz o Concílio vê e reconhece o valor e a função da cultura e do trabalho do nosso tempo.
Com efeito, na Constituição Gaudium et Spes (nn. 53-54) é descrita a nova condição cultural e social da humanidade, com suas notas distintivas e suas possibilidades de avanço tão rápido que suscita espanto e esperança. O Concílio não hesita em dar testemunho das maravilhosas realizações do homem, reconduzindo-as ao quadro do desígnio e do mandamento de Deus e unindo-as além disso ao Evangelho de fraternidade pregado por Jesus Cristo: “Com efeito, quando, com o trabalho de suas mãos ou por meio da técnica, cultiva a terra para que produza fruto e se torne uma digna habitação para toda a família humana, e quando participa conscientemente  da vida dos grupos sociais, o homem realiza o plano de Deus, manifestado no início dos tempos, de dominar a terra (Gn 1,28) e completar a criação, e aperfeiçoa a si mesmo; ao mesmo tempo, observa o grande mandamento de Cristo de dedicar-se ao serviço dos irmãos” (Gaudium et spes, 57; cf. também n. 63).

5. O Concílio, todavia, não fecha os olhos para os enormes problemas concernentes ao desenvolvimento do homem de hoje, tanto em sua dimensão de pessoa como de comunidade. Seria uma ilusão crer ser possível ignorá-los, assim como seria um erro defini-los de modo impróprio ou insuficiente, na absurda pretensão de menosprezar a necessária referência à Providência e à vontade de Deus. Diz o Concílio: “Em nossos dias, arrebatada pela admiração das próprias descobertas e do próprio poder, com frequência a humanidade debate as angustiantes questões relativas à atual evolução do mundo, ao lugar e à missão do homem em todo o universo, ao sentido do esforço individual e coletivos e, por fim, ao destino último das coisas e dos homens” (Gaudium et spes, n. 3). E explica: “Como acontece em qualquer crise de crescimento, essa transformação traz consigo não pequenas dificuldades. Assim, enquanto estende tão amplamente o seu poder, nem sempre, porém, o homem consegue pô-lo a seu serviço. Esforçando-se por penetrar mais profundamente no interior de seu espírito, muitas vezes se sente mais incerto sobre si mesmo. Descobrindo pouco a pouco com maior clareza as leis da vida social, hesita quanto à direção que lhes deve imprimir” (ibid., n. 4).
O Concílio fala expressamente de “contradições e desequilíbrios” gerados por uma evolução “realizada rápida e desordenadamente” nas condições socioeconômicas, nos costumes, na cultura, assim como no pensamento e na consciência do homem, na família, nas relações sociais, nas relações entre grupos, comunidades e nações, com consequentes “desconfianças e inimizades, conflitos e sofrimentos, dos quais o próprio homem é, ao mesmo tempo, causa e vítima (cf. Gaudium et spes, n. 8). Finalmente o Concílio chega à raiz quando afirma: “Los desequilíbrios de que sofre o mundo moderno vinculam-se ao desequilíbrio mais fundamental, que tem suas raízes no coração do homem” (ibid., n. 10).

6. Diante desta situação do homem no mundo de hoje é totalmente injustificada a mentalidade segundo a qual o “domínio” que ele se atribui é absoluto e radical, e que pode ser realizado em uma total ausência de referência à Divina Providência. É uma vã e perigosa ilusão construir a própria vida e fazer do mundo o reino da própria felicidade exclusivamente com as próprias forças. É a grande tentação na qual caiu o homem moderno, esquecendo-se que as leis da natureza condicionam também a civilização industrial e pós-industrial (cf. Gaudium et spes, nn. 26-27). É fácil ceder ao deslumbramento de uma pretensa autossuficiência no progressivo “domínio” das forças da natureza até esquecer-se de Deus ou colocar-se em seu lugar.
Hoje essa pretensão atinge alguns ambientes na forma de manipulação biológica, genética, psicológica... que se não é regida pelos critérios da lei moral (e, portanto, pela orientação final ao reino de Deus) pode converter-se no predomínio do homem sobre o homem, com consequências tragicamente funestas. O Concílio, reconhecendo ao homem de hoje a sua grandeza, mas também a sua limitação, na legítima autonomia das coisas sagradas (cf. Gaudium et spes, n. 36), recorda-lhe a verdade da Divina Providência que vem ao encontro do homem para assisti-lo e ajudá-lo. Nesta relação com Deus Pai, Criador e Providente, o homem pode continuamente redescobrir o fundamento da sua salvação.

41. A Divina Providência e o crescimento do Reino de Deus
João Paulo II - 25 de junho de 1986

1. Como na catequese anterior, hoje também trataremos abundantemente as reflexões que o Concílio Vaticano II dedicou ao tema da condição histórica do homem de hoje, o qual por uma parte é enviado por Deus a dominar e submeter o criado, e por outra é ele mesmo sujeito, enquanto criatura, da amorosa presença de Deus Pai, Criador e Providente.
O homem, hoje mais do que em qualquer outro tempo, é particularmente sensível à grandeza e à autonomia da sua tarefa de investigador e dominador das forças da natureza. No entanto, cumpre notar que há um grave obstáculo no desenvolvimento e no progresso do mundo, constituído pelo pecado e pelo fechamento que este supõe, isto é, pelo mal moral. Desta situação dá amplo testemunho a Constituição conciliar Gaudium et Spes. Reflete, pois, o Concílio: “Constituído por Deus em estado de justiça, seduzido pelo maligno, desde o início da história, o homem abusou de sua liberdade, insurgindo-se contra Deus e desejando alcançar sua meta fora de Deus” (Gaudium et spes, n. 13).
Por isso, como consequência inevitável, “o progresso do homem, que para ele é um grande bem, traz consigo também uma grande tentação: perturbada a ordem dos valores e misturado o mal com o bem, os indivíduos e os grupos humanos olham somente para o que é seu e não para o que é dos outros. Isso faz que o mundo já não seja um espaço de verdadeira fraternidade e, ao mesmo tempo, o aumentado poder da humanidade ameaça destruir o próprio gênero humano” (Gaudium et spes, n. 37).
O homem moderno é certamente consciente de seu próprio papel, mas “se pelas palavras ‘autonomia das realidades terrenas’ se entender que as coisas criadas não dependem de Deus e que o homem pode usá-las como se elas não se referissem ao Criador, ninguém que reconhece a Deus deixa de perceber quão falsas sejam tais propostas. Ora, sem o Criador, a criatura se esvai. (...) E mais, pelo esquecimento de Deus, a própria criatura se obscurece” (ibid., n. 36).

2. Recordemos antes de tudo um texto que nos permite captar a “outra dimensão” da evolução histórica do mundo, à qual se refere sempre o Concílio. Diz a Constituição: “O Espírito de Deus, que dirige o curso dos tempos com admirável Providência e renova a face da terra, está presente nessa evolução” (ibid., n.26). Superar o mal é ao mesmo tempo querer o progresso moral do homem, pelo que sua dignidade é salvaguardada, e dar uma resposta às exigências essenciais de um mundo “mais humano”. Nessa perspectiva, o reino de Deus que vai se desenvolvendo na história, encontra de certo modo sua “matéria” e os sinais da sua presença eficaz.
O Concílio Vaticano II enfatizou com muita clareza o significado ético da evolução, mostrando como o ideal ético de um mundo “mais humano” é compatível com o ensinamento do Evangelho. E, embora distinguindo com precisão o desenvolvimento do mundo da história da salvação, busca ao mesmo tempo destacar em toda a sua plenitude os laços que existem entre eles: “Embora o progresso terreno deva ser cuidadosamente distinguido do Reino de Cristo, todavia, enquanto pode contribuir para organizar melhor a sociedade humana, tal progresso interessa muito ao Reino de Deus. Com efeito, depois que, no Espírito do Senhor e segundo seu mandamento, tivermos propagado na terra os valores da dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, isto é, todos esses bons frutos da natureza e do nosso trabalho, os encontraremos novamente, limpos de toda impureza, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o Reino eterno e universal: ‘reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz’ (Prefácio de Cristo Rei). Esse Reino já está misteriosamente presente na terra; mas quando o Senhor chegar, será consumado” (Gaudium et spes, n. 39).

3. O Concílio afirma o convencimento nos fiéis quando proclama que “a Igreja reconhece tudo o que existe de bom no dinamismo social de hoje, sobretudo a evolução para a unidade, o processo da sã socialização e da solidariedade civil e econômica. Com efeito, a promoção da unidade harmoniza-se com a íntima missão da Igreja, já que ela é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano. (...) Pois a energia que a Igreja pode incutir na moderna sociedade dos homens consiste na fé e na caridade levadas à prática da vida, mas não em qualquer domínio exterior, atuando com meios meramente humanos” (ibid., n. 42). Por esse motivo cria-se um vínculo profundo e até mesmo uma identidade elemental entre os principais setores da história e da evolução do “mundo” e a história da salvação. O plano da salvação aprofunda suas raízes nas aspirações e nos propósitos mais reais dos homens e da humanidade. Também a redenção está continuamente dirigida para o homem e para a humanidade “no mundo”. E a Igreja se encontra sempre com o “mundo” no âmbito dessas aspirações e finalidades do homem-humanidade. De igual modo a história da salvação realiza-se no decorrer da história do mundo, considerando-o de certo modo como próprio. E vice-versa: as verdadeiras conquistas do homem e da humanidade, autênticas vitórias na história do mundo, são também o “substrato” do reino de Deus sobre a terra (cf. Karol Wojtyla, Alle fonti del rinovamento: Studio sull'attuazione del Concílio Vaticano II. Città del Vaticano, 1981, pp. 150-160).

4. Lemos a respeito na Constituição Gaudium et spes: “Assim como procede do homem, da mesma forma a atividade humana se ordena ao homem. (...) Corretamente entendido, esse desenvolvimento vale mais do que as riquezas externas que se podem acumular. O homem vale mais pelo que é do que pelo que tem. Igualmente, tudo o que os homens fazem para conseguir maior justiça, mais ampla fraternidade e uma organização mais humana nas relações sociais tem mais valor do que os progressos técnicos. (...) Portanto, segundo o plano e a vontade divina, a norma da atividade humana é que convenha ao verdadeiro bem do gênero humano e possibilite ao homem, individualmente ou colocado na sociedade, a educação e a realização de sua vocação” (n. 35). Assim continua o mesmo documento: “Essa ordem social deve sempre ser desenvolvida, fundamentar-se na verdade, edificar-se na justiça, ser animada pelo amor e, na liberdade, encontrar um equilíbrio sempre mais humano. Mas para cumprir isso, é necessária uma renovação da mentalidade e a introdução de amplas reformas sociais. O Espírito de Deus, que dirige o curso dos tempos com admirável Providência e renova a face da terra, está presente nessa evolução” (ibid., n. 26).

5. A adequação à guia e à ação do Espírito de Deus no desenvolvimento da história acontece mediante o apelo contínuo e a resposta coerente e fiel à voz da consciência: “Pela fidelidade à consciência os cristãos se unem aos demais homens na busca da verdade e na solução de muitos problemas morais que surgem tanto na vida individual como na social. Portanto, quanto mais prevalecer a consciência reta, tanto mais as pessoas e os grupos se afastam de um arbítrio cego e se esforçam para conformar-se a normas objetivas de moralidade” (Gaudium et spes, n. 16).
O Concílio recorda com realismo a presença, na efetiva condição humana, do obstáculo mais radical ao verdadeiro progresso do homem e da humanidade: o mal moral, o pecado, em consequência do qual “o homem está dividido em si mesmo. Por essa razão, toda a vida dos homens, individual e coletiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. E até o homem descobre-se incapaz de, por si mesmo, debelar eficazmente os ataques do mal, de tal forma que cada um quase se sente amarrado por correntes” (Gaudium et spes, n. 13). Essa luta “perpassa toda a história dos homens: iniciada na origem do mundo, continuará até o último dia, segundo disse o Senhor (cf. Mt 24,13; 13,24-30.36-43). Inserido nesta batalha, para aderir ao bem o homem deve combater constantemente e não consegue alcançar sua própria unidade senão com grandes labutas e a ajuda da graça de Deus” (ibid., n. 37).

6. Em conclusão, podemos dizer que, se o crescimento do Reino de Deus não se identifica com a evolução do mundo, é, porém, verdade que o Reino de Deus está no mundo e antes de tudo no homem, o qual vive e trabalha no mundo. O cristão sabe que, com o seu compromisso pelo progresso da história e com a ajuda da graça de Deus, coopera para o crescimento do Reino, até o cumprimento histórico e escatológico do desígnio da Divina Providência.

Vitral representando o "Reino de Deus"
(A coroa e a cruz remetem ao Mistério Pascal da Morte e Ressurreição de Cristo)

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (18 de junho e 25 de junho de 1986).

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