Concluindo a seção sobre a Divina Providência dentro das suas Catequeses sobre Deus Pai, o Papa São João Paulo II destacou a contribuição do Concílio Vaticano II sobre esse tema, particularmente na Constituição Gaudium et Spes, em cuja redação ele mesmo contribuiu como Padre conciliar.
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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI
40.
A Divina Providência e a condição histórica do homem de hoje à luz do Concílio
Vaticano II
João Paulo II - 18 de junho de
1986
1. A verdade sobre a Divina Providência
aparece como ponto de convergência de tantas verdades contidas na afirmação: “Creio
em Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”. Por sua riqueza e contínua
atualidade, essa verdade foi tratada por todo o magistério do Concílio Vaticano
II, que o fez de modo excelente. Em muitos documentos conciliares, com efeito,
encontramos uma referência adequada a esta verdade de fé, de modo particular na
Constituição Gaudium et Spes. Destacá-lo significa fazer uma
recapitulação das catequeses anteriores sobre a Divina Providência.
2. Como se sabe, a Constituição Gaudium
et Spes afronta o tema: a Igreja no mundo de hoje. Desde os primeiros
parágrafos, porém, se vê claramente que tratar este tema sobre a base do Magistério
da Igreja não é possível sem referir-se à verdade revelada sobre a relação
de Deus com o mundo, e em definitiva à verdade da Providência Divina.
Lemos, pois: “O Concílio... tem diante
dos olhos o mundo dos homens... o mundo que os cristãos acreditam ser criado e
conservado pelo amor do Criador, certamente posto sob a escravidão do pecado, mas
que Cristo Crucificado e Ressuscitado libertou, quebrando o poder do maligno para
que, segundo o desígnio de Deus, se transforme e chegue à consumação” (Gaudium
et spes, n. 2).
Sessão do Concílio Vaticano II (1962-1965) |
Essa “descrição” envolve toda
a doutrina da Providência, entendida seja como plano eterno de Deus na criação,
como realização deste plano na história, ou como sentido salvífico e
escatológico do universo e especialmente do mundo humano segundo a “predestinação
em Cristo”, centro e vértice de todas as coisas. Dessa maneira é retomada, com
outros termos, a afirmação dogmática do Concílio Vaticano I: “Tudo o que criou,
Deus o conserva e governa com sua Providência ‘alcançando com força de uma
extremidade a outra, e dispondo com suavidade todas as coisas’ (cf. Sb 8,1).
Pois ‘tudo está nu e descoberto aos seus olhos’ (cf. Hb 4,13),
mesmo o que há de acontecer por livre ação das criaturas” (Denzinger, n. 3003).
Mais especificamente, desde o ponto de partida a Gaudium et Spes enfoca
uma questão tão pertinente ao nosso tema como cara ao homem de hoje: como se constituem
o “crescimento” do reino de Deus e o desenvolvimento (evolução) do mundo.
Sigamos agora as grandes linhas de tal exposição, apontando as afirmações principais.
3. No mundo visível o protagonista do
desenvolvimento histórico e cultural é o homem. Criado à imagem e semelhança de
Deus, conservado por Ele em seu ser e guiado com amor paterno na tarefa de “dominar”
as outras criaturas, o homem em certo sentido é, por si mesmo, “providência”. “A
atividade humana, individual e coletiva, o imenso esforço com o qual, no
decorrer dos séculos, os homens procuram melhorar as condições de sua vida, corresponde
ao plano de Deus. Com efeito, criado à imagem de Deus, o homem recebeu a ordem
de submeter a terra com tudo o que nela existe, de governar o mundo em justiça
e santidade (Gn 1,26-27; 9,2-3; Sb 9,2-3) e, reconhecendo a Deus
como Criador de tudo, orientar para Ele a si mesmo e a universalidade das
coisas, de maneira que, estando todas as coisas sujeitas ao homem, o nome de
Deus seja glorificado em toda a terra (Sl 8,7.10)” (Gaudium et spes, n.
34).
Anteriormente, o mesmo documento
conciliar havia afirmado: “O homem não se engana quando se reconhece superior às
coisas materiais e não se considera somente uma partícula da natureza ou um
elemento anônimo da cidade humana. Com efeito, por sua interioridade, excede a
universalidade das coisas: retorna para essa profunda interioridade
quando se volta para o coração, onde o espera Deus, que perscruta os corações (1Rs
16,7; Jr 17,10) e onde ele mesmo, sob o olhar de Deus, decide a própria
sorte” (ibid., n. 14).
4. O desenvolvimento do mundo rumo
a bens econômicas e culturais sempre mais correspondentes às exigências integrais
do homem é uma tarefa que se enquadra na vocação do mesmo homem ao domínio da terra.
Por isso também os êxitos reais da atual civilização científica e técnica, assim
como os da cultura humanística e da “sabedoria” de todos os séculos, se
enquadram no âmbito da “providência” da qual o homem participa para a
realização do desígnio de Deus no mundo. Sob esta luz o Concílio vê e reconhece
o valor e a função da cultura e do trabalho do nosso tempo.
Com efeito, na Constituição Gaudium
et Spes (nn. 53-54) é descrita a nova condição cultural e social da
humanidade, com suas notas distintivas e suas possibilidades de avanço tão
rápido que suscita espanto e esperança. O Concílio não hesita em dar testemunho
das maravilhosas realizações do homem, reconduzindo-as ao quadro do desígnio e do
mandamento de Deus e unindo-as além disso ao Evangelho de fraternidade pregado
por Jesus Cristo: “Com efeito, quando, com o trabalho de suas mãos ou por meio
da técnica, cultiva a terra para que produza fruto e se torne uma digna habitação
para toda a família humana, e quando participa conscientemente da vida dos
grupos sociais, o homem realiza o plano de Deus, manifestado no início dos tempos,
de dominar a terra (Gn 1,28) e completar a criação, e aperfeiçoa a si
mesmo; ao mesmo tempo, observa o grande mandamento de Cristo de dedicar-se ao
serviço dos irmãos” (Gaudium et spes, 57; cf. também n. 63).
5. O Concílio, todavia, não fecha os
olhos para os enormes problemas concernentes ao desenvolvimento do
homem de hoje, tanto em sua dimensão de pessoa como de comunidade.
Seria uma ilusão crer ser possível ignorá-los, assim como seria um erro defini-los
de modo impróprio ou insuficiente, na absurda pretensão de menosprezar a necessária
referência à Providência e à vontade de Deus. Diz o Concílio: “Em nossos dias, arrebatada
pela admiração das próprias descobertas e do próprio poder, com frequência
a humanidade debate as angustiantes questões relativas à atual evolução do
mundo, ao lugar e à missão do homem em todo o universo, ao sentido do esforço
individual e coletivos e, por fim, ao destino último das coisas e dos
homens” (Gaudium et spes, n. 3). E explica: “Como acontece em qualquer
crise de crescimento, essa transformação traz consigo não pequenas dificuldades.
Assim, enquanto estende tão amplamente o seu poder, nem sempre, porém, o homem
consegue pô-lo a seu serviço. Esforçando-se por penetrar mais profundamente no interior
de seu espírito, muitas vezes se sente mais incerto sobre si mesmo. Descobrindo
pouco a pouco com maior clareza as leis da vida social, hesita quanto à direção
que lhes deve imprimir” (ibid., n. 4).
O Concílio fala expressamente de “contradições
e desequilíbrios” gerados por uma evolução “realizada rápida e desordenadamente”
nas condições socioeconômicas, nos costumes, na cultura, assim como no pensamento
e na consciência do homem, na família, nas relações sociais, nas relações entre
grupos, comunidades e nações, com consequentes “desconfianças e inimizades,
conflitos e sofrimentos, dos quais o próprio homem é, ao mesmo tempo, causa e
vítima (cf. Gaudium et spes, n. 8). Finalmente o Concílio chega à
raiz quando afirma: “Los desequilíbrios de que sofre o mundo moderno vinculam-se ao
desequilíbrio mais fundamental, que tem suas raízes no coração do homem” (ibid.,
n. 10).
6. Diante desta situação do homem no
mundo de hoje é totalmente injustificada a mentalidade segundo a qual o “domínio”
que ele se atribui é absoluto e radical, e que pode ser realizado em uma total ausência
de referência à Divina Providência. É uma vã e perigosa ilusão construir a própria
vida e fazer do mundo o reino da própria felicidade exclusivamente com as próprias
forças. É a grande tentação na qual caiu o homem moderno, esquecendo-se que as
leis da natureza condicionam também a civilização industrial e pós-industrial (cf. Gaudium
et spes, nn. 26-27). É fácil ceder ao deslumbramento de uma
pretensa autossuficiência no progressivo “domínio” das forças da natureza até esquecer-se
de Deus ou colocar-se em seu lugar.
Hoje essa pretensão atinge alguns
ambientes na forma de manipulação biológica, genética, psicológica... que se não
é regida pelos critérios da lei moral (e, portanto, pela orientação final ao
reino de Deus) pode converter-se no predomínio do homem sobre o homem, com consequências
tragicamente funestas. O Concílio, reconhecendo ao homem de hoje a sua
grandeza, mas também a sua limitação, na legítima autonomia das coisas sagradas
(cf. Gaudium et spes, n. 36), recorda-lhe a verdade da
Divina Providência que vem ao encontro do homem para assisti-lo e ajudá-lo. Nesta
relação com Deus Pai, Criador e Providente, o homem pode continuamente redescobrir
o fundamento da sua salvação.
41.
A Divina Providência e o crescimento do Reino de Deus
João Paulo II - 25 de junho de
1986
1. Como na catequese anterior, hoje
também trataremos abundantemente as reflexões que o Concílio Vaticano II dedicou
ao tema da condição histórica do homem de hoje, o qual por uma parte é enviado
por Deus a dominar e submeter o criado, e por outra é ele mesmo sujeito, enquanto
criatura, da amorosa presença de Deus Pai, Criador e Providente.
O homem, hoje mais do que em qualquer
outro tempo, é particularmente sensível à grandeza e à autonomia da sua tarefa
de investigador e dominador das forças da natureza. No entanto, cumpre notar
que há um grave obstáculo no desenvolvimento e no progresso do mundo, constituído
pelo pecado e pelo fechamento que este supõe, isto é, pelo mal moral. Desta
situação dá amplo testemunho a Constituição conciliar Gaudium et Spes. Reflete,
pois, o Concílio: “Constituído por Deus em estado de justiça, seduzido pelo
maligno, desde o início da história, o homem abusou de sua liberdade, insurgindo-se
contra Deus e desejando alcançar sua meta fora de Deus” (Gaudium et spes, n.
13).
Por isso, como consequência inevitável,
“o progresso do homem, que para ele é um grande bem, traz consigo também uma
grande tentação: perturbada a ordem dos valores e misturado o mal com o bem, os
indivíduos e os grupos humanos olham somente para o que é seu e não para o que
é dos outros. Isso faz que o mundo já não seja um espaço de verdadeira
fraternidade e, ao mesmo tempo, o aumentado poder da humanidade ameaça destruir
o próprio gênero humano” (Gaudium et spes, n. 37).
O homem moderno é certamente
consciente de seu próprio papel, mas “se pelas palavras ‘autonomia das
realidades terrenas’ se entender que as coisas criadas não dependem de Deus e
que o homem pode usá-las como se elas não se referissem ao Criador, ninguém que
reconhece a Deus deixa de perceber quão falsas sejam tais propostas. Ora, sem o
Criador, a criatura se esvai. (...) E mais, pelo esquecimento de Deus, a
própria criatura se obscurece” (ibid., n. 36).
2. Recordemos antes de tudo um
texto que nos permite captar a “outra dimensão” da evolução histórica do mundo,
à qual se refere sempre o Concílio. Diz a Constituição: “O Espírito de Deus,
que dirige o curso dos tempos com admirável Providência e renova a face
da terra, está presente nessa evolução” (ibid., n.26). Superar o mal é ao
mesmo tempo querer o progresso moral do homem, pelo que sua dignidade é
salvaguardada, e dar uma resposta às exigências essenciais de um mundo “mais
humano”. Nessa perspectiva, o reino de Deus que vai se desenvolvendo na história,
encontra de certo modo sua “matéria” e os sinais da sua presença eficaz.
O Concílio Vaticano II enfatizou
com muita clareza o significado ético da evolução, mostrando como o ideal ético
de um mundo “mais humano” é compatível com o ensinamento do Evangelho. E, embora
distinguindo com precisão o desenvolvimento do mundo da história da salvação, busca
ao mesmo tempo destacar em toda a sua plenitude os laços que existem entre eles:
“Embora o progresso terreno deva ser cuidadosamente distinguido do Reino de
Cristo, todavia, enquanto pode contribuir para organizar melhor a sociedade
humana, tal progresso interessa muito ao Reino de Deus. Com efeito, depois que,
no Espírito do Senhor e segundo seu mandamento, tivermos propagado na terra os
valores da dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, isto é, todos
esses bons frutos da natureza e do nosso trabalho, os encontraremos novamente, limpos
de toda impureza, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o
Reino eterno e universal: ‘reino de verdade e de vida, reino de santidade e de
graça, reino de justiça, de amor e de paz’ (Prefácio de Cristo Rei). Esse Reino
já está misteriosamente presente na terra; mas quando o Senhor chegar, será consumado”
(Gaudium et spes, n. 39).
3. O Concílio afirma o convencimento
nos fiéis quando proclama que “a Igreja reconhece tudo o que existe de bom no
dinamismo social de hoje, sobretudo a evolução para a unidade, o processo da sã
socialização e da solidariedade civil e econômica. Com efeito, a promoção da
unidade harmoniza-se com a íntima missão da Igreja, já que ela é em Cristo como
que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade
de todo o gênero humano. (...) Pois a energia que a Igreja pode incutir na
moderna sociedade dos homens consiste na fé e na caridade levadas à prática da
vida, mas não em qualquer domínio exterior, atuando com meios meramente humanos”
(ibid., n. 42). Por esse motivo cria-se um vínculo profundo e até
mesmo uma identidade elemental entre os principais setores da história e da
evolução do “mundo” e a história da salvação. O plano da salvação aprofunda suas
raízes nas aspirações e nos propósitos mais reais dos homens e da humanidade. Também
a redenção está continuamente dirigida para o homem e para a humanidade “no
mundo”. E a Igreja se encontra sempre com o “mundo” no âmbito dessas aspirações
e finalidades do homem-humanidade. De igual modo a história da salvação realiza-se
no decorrer da história do mundo, considerando-o de certo modo como próprio. E vice-versa: as
verdadeiras conquistas do homem e da humanidade, autênticas vitórias na história
do mundo, são também o “substrato” do reino de Deus sobre a terra (cf. Karol
Wojtyla, Alle fonti del rinovamento: Studio sull'attuazione del Concílio
Vaticano II. Città del Vaticano, 1981, pp. 150-160).
4. Lemos a respeito na Constituição Gaudium
et spes: “Assim como procede do homem, da mesma forma a atividade humana se
ordena ao homem. (...) Corretamente entendido, esse desenvolvimento vale mais do
que as riquezas externas que se podem acumular. O homem vale mais pelo que
é do que pelo que tem. Igualmente, tudo o que os homens fazem para conseguir
maior justiça, mais ampla fraternidade e uma organização mais humana nas relações
sociais tem mais valor do que os progressos técnicos. (...) Portanto,
segundo o plano e a vontade divina, a norma da atividade humana é que convenha
ao verdadeiro bem do gênero humano e possibilite ao homem, individualmente
ou colocado na sociedade, a educação e a realização de sua vocação” (n. 35). Assim
continua o mesmo documento: “Essa ordem social deve sempre ser desenvolvida,
fundamentar-se na verdade, edificar-se na justiça, ser animada pelo amor e, na
liberdade, encontrar um equilíbrio sempre mais humano. Mas para cumprir isso, é
necessária uma renovação da mentalidade e a introdução de amplas reformas sociais.
O Espírito de Deus, que dirige o curso dos tempos com admirável Providência e
renova a face da terra, está presente nessa evolução” (ibid., n.
26).
5. A adequação à guia e à ação do
Espírito de Deus no desenvolvimento da história acontece mediante o apelo contínuo
e a resposta coerente e fiel à voz da consciência: “Pela fidelidade à consciência
os cristãos se unem aos demais homens na busca da verdade e na solução de
muitos problemas morais que surgem tanto na vida individual como na social. Portanto,
quanto mais prevalecer a consciência reta, tanto mais as pessoas e os grupos se
afastam de um arbítrio cego e se esforçam para conformar-se a normas objetivas
de moralidade” (Gaudium et spes, n. 16).
O Concílio recorda com realismo a
presença, na efetiva condição humana, do obstáculo mais radical ao verdadeiro
progresso do homem e da humanidade: o mal moral, o pecado, em consequência do qual
“o homem está dividido em si mesmo. Por essa razão, toda a vida dos homens,
individual e coletiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o
mal, entre a luz e as trevas. E até o homem descobre-se incapaz de,
por si mesmo, debelar eficazmente os ataques do mal, de tal forma que cada um
quase se sente amarrado por correntes” (Gaudium et spes, n. 13).
Essa luta “perpassa toda a história dos homens: iniciada na origem do mundo, continuará
até o último dia, segundo disse o Senhor (cf. Mt 24,13;
13,24-30.36-43). Inserido nesta batalha, para aderir ao bem o homem deve combater
constantemente e não consegue alcançar sua própria unidade senão com grandes labutas
e a ajuda da graça de Deus” (ibid., n. 37).
6. Em conclusão, podemos dizer
que, se o crescimento do Reino de Deus não se identifica com a evolução do
mundo, é, porém, verdade que o Reino de Deus está no mundo e antes de
tudo no homem, o qual vive e trabalha no mundo. O cristão sabe que, com o
seu compromisso pelo progresso da história e com a ajuda da graça de Deus,
coopera para o crescimento do Reino, até o cumprimento histórico e escatológico
do desígnio da Divina Providência.
Vitral representando o "Reino de Deus" (A coroa e a cruz remetem ao Mistério Pascal da Morte e Ressurreição de Cristo) |
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (18 de junho e 25 de junho de 1986).
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