quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 6

Dando continuidade às reflexões sobre “Deus Pai todo-poderoso”, trazemos aqui as Catequeses nn. 10-11 do Papa São João Paulo II sobre Deus Pai, .

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

10. Deus, Pai todo-poderoso
João Paulo II - 18 de setembro de 1985

1. “Creio em Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra...”.
Deus que revelou a Si mesmo, o Deus da nossa fé, é espírito infinitamente perfeito. Disto falamos na Catequese anterior. Enquanto espírito infinitamente perfeito, Ele é plenitude absoluta de verdade e de bem, e deseja doar-se. Efetivamente, o bem se difunde: “Bonum est diffusivum sui” (Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, q. 5, a. 4, ad. 2).
Esta verdade sobre Deus visto como infinita plenitude é acolhida, em certo sentido, nos Símbolos da fé mediante a afirmação de que Deus é o Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis. Ainda que sobre a verdade da criação nos ocuparemos um pouco mais adiante, é oportuno que aprofundemos, à luz da Revelação, aquilo que em Deus corresponde ao mistério da criação.

2. Deus, que a Igreja professa todo-poderoso (“Creio em Deus, Pai todo-poderoso”), enquanto espírito infinitamente perfeito, é também onisciente, isto é, que tudo penetra com seu conhecimento.
Este Deus onipotente e onisciente tem o poder de criar, de chamar do não-ser, do nada, ao ser. “Existe algo impossível para o Senhor?”, lemos em Gênesis 18,14.
“Tu somente podes desdobrar sempre teu grande poder: quem, pois, poderia resistir à força do teu braço?”, anuncia o Livro da Sabedoria (Sb 11,21). O Livro de Ester professa a mesma fé com as palavras “Senhor, Rei todo-poderoso, em teu poder estão todas as coisas, e não há quem possa resistir à tua vontade” (Est 4,17c). “Para Deus nada é impossível” (Lc 1,37), dirá o Arcanjo Gabriel a Maria de Nazaré na Anunciação.

Deus, Pai todo-poderoso
(Artus Quellinus II - Catedral de Bruges, Bélgica)

3. O Deus, que revela a Si mesmo pela boca dos profetas, é onipotente. Esta verdade impregna profundamente toda a Revelação, desde as primeiras palavras do Livro do Gênesis: “Deus disse: ‘Haja...’” (Gn 1,3). O ato criador se manifesta como a onipotente Palavra de Deus: “Ele falou e tudo se fez” (Sl 32/33,9). Criando tudo do nada, o ser do não-ser, Deus se revela como infinita plenitude de bem, que se difunde. Aquele que é, o Ser subsistente, o Ser infinitamente perfeito, em certo sentido se dá naquele  “é”,  chamando à existência fora de si o cosmos visível e invisível: os seres criados. Criando as coisas dá início à história do universo, criando o ser humano como homem e mulher dá início à história da humanidade. Como Criador é, pois, o Senhor da história. “Há diferentes atividades, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos” (1Cor 12,6).

4. O Deus que revela a Si mesmo como Criador e, portanto, como Senhor da história do mundo e do homem, é o Deus onipotente, o Deus vivo... “A Igreja crê e confessa que há um único Deus vivo e verdadeiro, criador e Senhor do céu e da terra, onipotente”, afirma o Vaticano I (Constituição Dei Filius, 1, 1-4). Este Deus, espírito infinitamente perfeito e onisciente, é absolutamente livre e soberano também em relação ao próprio ato da criação. Se Ele é o Senhor de tudo aquilo que cria, antes de tudo é Senhor da própria vontade na obra da criação. Cria porque quer criar. Cria porque isto corresponde à sua infinita sabedoria. Criando age com a inescrutável plenitude de sua liberdade, por impulso de amor eterno.

5. O texto da Constituição Dei Filius do Vaticano I, tantas vezes citado, sublinha a absoluta liberdade de Deus na criação e em todas as suas ações. Deus é “beatíssimo em si e por si mesmo”: tem em si mesmo e por si a total plenitude do bem e da felicidade. Se chama à existência o mundo, o faz não para completar ou integrar o bem que Ele é, mas única e exclusivamente com o propósito de dar o bem de uma existência multiforme ao mundo das criaturas visíveis e invisíveis. É uma participação múltipla e variada do único, infinito, eterno bem, que coincide com o próprio Ser de Deus.
Deste modo, Deus, absolutamente livre e soberano na obra da criação, permanece fundamentalmente independente do universo criado. Isto de forma alguma significa que Ele permaneça indiferente em relação às criaturas; ao contrário, Ele as guia como eterna sabedoria, amor e providência onipotente.

6. A Sagrada Escritura põe em relevo o fato de que nesta obra Deus está sozinho. Eis aqui as palavras do profeta Isaías: “Eu sou o Senhor, que faço todas as coisas: sozinho estendi os céus e expandi a terra. Quem estava comigo?” (Is 44,24). A “solidão” de Deus na obra da criação ressalta sua soberana liberdade e sua paterna onipotência.
“O Senhor, que criou os céus, Ele é Deus, Aquele que formou a terra, que a fez e firmou suas bases. Não foi para ficar vazia que Ele a criou, mas para ser habitada Ele a modelou” (Is 45,18).
À luz da autorrevelação de Deus, que “falou pelos profetas” e por último “por meio do Filho” (Hb 1,1-2), a Igreja confessa desde o princípio sua fé no “Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”. Este Deus onipotente é também onisciente e onipresente. Ou melhor, podemos dizer que, enquanto espírito infinitamente perfeito, Deus é ao mesmo tempo a própria onipotência, onisciência e onipresença.

7. Deus está antes de tudo presente em Si: em sua divindade una e trina. Ele está  também presente  no universo que criou; está, em consequência, na obra da criação mediante o poder criador (“per potentiam”), na qual se faz presente sua própria essência transcendente (“per essentiam”). Esta presença supera o mundo, o penetra e o mantém na existência. O mesmo pode repetir-se da presença de Deus mediante o seu conhecimento, como olhar infinito que tudo vê, penetra e perscruta (“per visionem” ou “per scientiam”). Por fim, Deus está presente de modo particular na história da humanidade, que é também a história da salvação. Esta é (se podemos expressar assim) a presença mais “pessoal” de Deus: sua presença mediante a graça, cuja plenitude a humanidade recebeu em Jesus Cristo (cf. Jo 1,16-17). Deste último mistério da fé falaremos em uma Catequese futura.

8. “Senhor, tu me sondas e me conheces...” (Sl 138/139,1).
Enquanto repetimos as palavras inspiradas deste Salmo, confessemos juntamente com todo o povo de Deus, presente em todas as partes do mundo, a fé na onipotência, onisciência e onipresença de Deus, que é nosso Criador, Pai e Providência!
“N’Ele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28).

11. O Deus da Aliança
João Paulo II - 25 de setembro de 1985

1. Em nossas Catequeses buscamos responder de modo progressivo à pergunta: “Quem é Deus?”. Trata-se de uma resposta autêntica, porque fundada na palavra da autorrevelação divina. Esta resposta se caracteriza pela certeza da fé, mas também pela convicção do intelecto humano iluminado pela fé. Fazemos referência, com efeito, à Sagrada Escritura, à Tradição e ao Magistério da Igreja, isto é, ao seu ensinamento, extraordinário e ordinário.

2. Voltemos mais uma vez aos pés do monte Horeb, onde Moisés, que apascentava o rebanho, ouviu do meio da sarça ardente a voz que dizia: “Tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar onde estás é solo sagrado” (Ex 3,5). A voz continuou: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó” (v. 6). É, portanto, o Deus dos pais quem envia Moisés para libertar o seu povo da escravidão egípcia.
Sabemos que, depois de ter recebido esta missão, Moisés perguntou a Deus o seu nome. E recebeu a resposta: “Eu Sou Aquele que Sou” (Ex 3,14). Na tradição exegética, teológica e magisterial da Igreja, que foi retomada também por Paulo VI no “Credo do Povo de Deus” (1968), esta resposta é interpretada como revelação de Deus como o “ser”.
Na resposta dada por Deus: “Eu Sou Aquele que Sou”, se pode ler à luz da história da salvação uma ideia de Deus mais rica e mais precisa. Enviando Moisés na força deste nome, Deus - Yahweh - se revela sobretudo como o Deus da aliança: “Eu sou Aquele que é para vós”; estou aqui como Deus desejoso da aliança e da salvação, como o Deus que vos ama e vos salva. Esta chave de leitura apresenta Deus como um ser que é pessoa e se autorrevela a pessoas, que trata como tais. Deus, já ao criar o mundo, em certo sentido saiu da própria “solidão”, para comunicar a Si mesmo, abrindo-se ao mundo e especialmente aos homens, criados à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1,26). A revelação do nome “Eu Sou Aquele que Sou” (Yahweh) parece ressaltar sobretudo a verdade de que Deus é o ser-pessoa que conhece, ama, atrai a Si os homens, o Deus da aliança.

Para saber mais sobre o tetragrama sagrado YHWH e suas interpretações, confira nossa postagem sobre a devoção ao Santíssimo Nome de Jesus.

3. No colóquio com Moisés, Deus prepara uma nova etapa da aliança com os homens, uma nova etapa da história da salvação. A iniciativa do Deus da aliança, com efeito, marca o ritmo da história da salvação através de numerosos acontecimentos, como revela a Oração Eucarística IV com as palavras: “Oferecestes muitas vezes aliança aos homens e às mulheres” [1].
Conversando com Moisés aos pés do monte Horeb, Deus - Yahweh - se apresenta como “o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó”, isto é, o Deus que já havia feito uma aliança com Abraão (cf. Gn 17,1-14) e com os seus descendentes, os patriarcas, fundadores do povo eleito, que se tornou o povo de Deus.

4. As iniciativas do Deus da aliança, no entanto, remontam a antes mesmo de Abraão. O Livro do Gênesis registra a aliança com Noé depois do dilúvio (cf. Gn 9,1-17). Se pode mesmo falar da aliança originária antes do pecado original (cf. Gn 2,15-17). Podemos afirmar que a iniciativa do Deus da aliança situa a história do homem desde o princípio na perspectiva da salvação. A salvação é comunhão de vida sem fim com Deus, cujo símbolo era representado no paraíso terrestre pela “árvore da vida” (cf. Gn 2,9). Todas as alianças feitas depois do pecado original confirmam, da parte de Deus, a mesma vontade de salvação. O Deus da aliança é o Deus “que se doa” ao homem de modo misterioso: o Deus da Revelação e o Deus da graça. Ele não só se dá a conhecer ao homem, mas o torna participante da sua natureza divina (2Pd 1,4).

5. A aliança atinge sua etapa definitiva em Jesus Cristo: a “nova” e “eterna aliança” (Hb 12,24; 13,20). Ela testemunha a total originalidade daquela verdade sobre Deus que nós professamos no “Creio” cristã. Na antiguidade pagã a divindade era antes o objeto da aspiração do homem. A Revelação do Antigo e sobretudo do Novo Testamento mostra Deus que busca o homem, que se aproxima dele. É Deus que quer fazer aliança com o homem: “Serei vosso Deus, e vós sereis meu povo” (Lv 26,12); “Serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (2Cor 6,16).

6. A aliança é, como a criação, uma iniciativa divina completamente livre e soberana. Ela revela de modo ainda mais eminente a importância e o sentido da criação na profundidade da liberdade de Deus. A sabedoria e o amor que guiam a liberdade transcendente do Deus-Criador sobressaem ainda mais na transcendente liberdade do Deus da aliança.

7. É preciso acrescentar também que, se mediante a aliança, especialmente aquela plena e definitiva em Jesus Cristo, Deus se faz de certa forma imanente em relação ao mundo, Ele conserva totalmente a própria transcendência. O Deus encarnado, e ainda mais o Deus crucificado, não só permanece um Deus incompreensível e inefável, mas se torna ainda mais incompreensível e inefável para nós precisamente porque se manifesta como Deus de um infinito e imperscrutável amor.

8. Não quero antecipar temas que constituirão o objeto de futuras Catequeses. Voltemos novamente a Moisés. A revelação do nome de Deus aos pés do monte Horeb preparava a etapa da aliança que o Deus dos pais faria com o seu povo no Sinai. Nela é destacado de modo forte e expressivo o sentido monoteísta do “Creio” baseado na aliança: “Creio em um só Deus!”. Deus é uno, é único.
Eis as palavras do Livro do Êxodo: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim” (Ex 20,2-3). No Deuteronômio encontramos a fórmula fundamental do “Credo” veterotestamentário, expresso com as palavras: “Escuta, Israel: o Senhor é nosso Deus, o Senhor é um” (Dt 6,4; cf. 4,39-40).
Isaías dará a este “Credo” monoteísta do Antigo Testamento uma magnífica expressão profética: “Vós sois as minhas testemunhas - diz o Senhor - vós e o meu servo, a quem escolhi, para que saibais e acrediteis em mim, e compreendais que Eu sou. Antes de mim nenhum deus se formou, e nenhum haverá depois de mim. Eu, Eu sou o Senhor, e não há salvador além de mim... Vós sois as minhas testemunhas - diz o Senhor - e Deus sou Eu! Desde sempre Eu sou” (Is 43,10-13). “Voltai-vos para mim, e sereis salvos, todos os confins da terra, pois Eu é que sou Deus e não há outro” (Is 45,22).

9. Esta verdade sobre o único Deus constitui o depósito fundamental dos dois Testamentos. Na nova aliança o expressa, por exemplo, São Paulo com as palavras: “Um só Deus e Pai de todos, acima de todos, no meio de todos e em todos” (Ef 4,6). E é sempre Paulo, o qual combatia o politeísmo pagão (cf. Rm 1,23; Gl 3,8), com não menor ardor do que aquele presente no Antigo Testamento, quem com igual firmeza proclama que este único verdadeiro Deus é Deus de todos, tanto dos circuncisos como dos incircuncisos, tanto dos judeus como dos pagãos (cf. Rm 3,29-30). A revelação de um só verdadeiro Deus, dada na antiga aliança ao povo eleito de Israel, era destinada a toda a humanidade, que no monoteísmo encontraria a expressão da convicção à qual o homem pode chegar também com a luz da razão: porque se Deus é o ser perfeito, infinito, subsistente, não pode ser senão uno. Na nova aliança, por obra de Jesus Cristo, a verdade revelada no Antigo Testamento tornou-se a fé da Igreja universal, que confessa: “Creio em um só Deus”.

Deus se revela a Moisés na sarça ardente (Rafael Sanzio)

Notas:
[1] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 489.

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (18 de setembro e 25 de setembro de 1985).

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