Deus “eterno” e “Espírito infinitamente perfeito” são os temas das Catequeses nn. 8-9 do Papa São João Paulo II sobre Deus Pai.
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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI
8. Deus, eternidade que tudo compreende
João Paulo II - 04 de setembro de 1985
1. A Igreja professa incessantemente
a fé expressa no primeiro artigo dos mais antigos Símbolos cristãos: “Creio em
um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”. Nestas palavras se
reflete de modo conciso e sintético o testemunho que o Deus da
nossa fé, o Deus vivo e verdadeiro da Revelação, deu de Si mesmo,
falando, segundo a Carta aos Hebreus,
“por meio dos profetas” e, por último, “por meio do Filho” (Hb 1,1-2).
A Igreja, indo ao encontro das mutáveis exigências dos tempos, aprofunda a
verdade sobre Deus, como testemunham os diversos Concílios. Desejo fazer
referência aqui ao Concílio Vaticano I (1869-1870), cujo ensinamento foi ditado
pela necessidade de se opor, por um lado, aos erros do panteísmo do
século XIX, e, por outro, aos do
materialismo, que então começava a afirmar-se.
2. O Concílio Vaticano I ensina: “A santa Igreja crê e confessa que existe um só Deus vivo e verdadeiro, criador e Senhor do céu e da terra, onipotente, eterno, imenso, incompreensível, infinito em inteligência, vontade e toda perfeição; o qual, sendo uma única substância espiritual, totalmente simples e imutável, deve ser pregado como real e essencialmente distinto do mundo, beatíssimo em si e por si, e inefavelmente elevado sobre todas as coisas que existem fora d’Ele e que possam ser concebidas” (Constituição Dei Filius, cap. 1, can. 1-4).
Deus como o "Ancião dos Dias" (Afresco do séc. XIV, Geórgia) |
3. É fácil perceber que o texto
conciliar parte daqueles mesmos antigos Símbolos da fé que
também nós recitamos: “Creio em Deus... todo-poderoso, criador do céu e da
terra”, mas que desenvolve esta formulação fundamental segundo a doutrina
contida na Sagrada Escritura, na Tradição e no Magistério da Igreja. Graças ao
desenvolvimento realizado pelo Vaticano I, os “atributos” de Deus são
elencados de uma forma mais completa que aquela dos antigos Símbolos.
Por “atributos” entendemos as propriedades
do “Ser” divino que se manifestam na Revelação, como também na melhor reflexão
filosófica (cf., por exemplo, Tomás
de Aquino, Summa Theologiae, I, qq. 3ss.). A Sagrada Escritura
descreve Deus utilizando diversos adjetivos. Estes são expressões da linguagem
humana, que se revela sempre limitada, sobretudo quando se trata de expressar
a realidade totalmente transcendente que é Deus em Si mesmo.
4. O trecho do Concílio Vaticano I
antes citado confirma a impossibilidade de exprimir Deus de modo adequado. Ele
é incompreensível e inefável. No entanto, a fé da Igreja e seu ensinamento
sobre Deus, embora conservando a convicção de sua “incompreensibilidade” e “inefabilidade”,
não se contentam, como faz a chamada teologia apofática, em limitar-se a
constatações de caráter negativo, sustentando que a linguagem humana, e
portanto também a teológica, pode expressar exclusivamente ou quase o
que Deus não é, carecendo de expressões adequadas para explicar o
que Ele é.
5. Assim, o Vaticano I não se limita
a afirmações que falam de Deus segundo a “via negativa” [ou apofática], mas se
pronuncia também segundo a “via afirmativa” [ou catafática]. Ensina, por
exemplo, que este Deus essencialmente distinto do mundo (“a mundo distinctus re et essentia”) é um Deus eterno.
Esta verdade é expressa na Sagrada Escritura em várias passagens e de modos
diversos. Assim, por exemplo, lemos no Livro
do Eclesiástico ou Sirácida: “Aquele
que vive eternamente criou todas as coisas” (Eclo 18,1);
e, no Livro do Profeta Daniel: “Ele
é o Deus vivo, que permanece pelos séculos” (Dn 6,27).
Semelhantes são as palavras do Salmo 101/102, às quais faz eco a Carta aos Hebreus. Diz o Salmo: “No início, fundaste a terra; obra
de tuas mãos são os céus. Eles perecerão,
mas Tu permaneces; todos envelhecerão como uma veste, como uma roupa os
mudarás, e eles serão mudados. Tu, porém, és o mesmo, e os teus anos não
acabam” (Sl 101/102,26-28). Alguns séculos mais tarde o autor da Carta
aos Hebreus retomará as palavras do Salmo:
“Tu, Senhor, no início colocaste os fundamentos da terra, e os céus são a obra
de tuas mãos. Eles perecerão, mas Tu permaneces; envelhecerão todos como uma
veste, e como um manto os enrolarás; como uma veste serão trocados, mas Tu
permaneces o mesmo, e teus anos jamais terminarão” (Hb 1,10-12).
A eternidade é aqui o elemento
que distingue essencialmente Deus do mundo. Enquanto este está sujeito
às mudanças e passa, Deus permanece para além do devir do mundo: Ele é necessário
e imutável: “Tu permaneces o mesmo...”.
Consciente da fé neste Deus
eterno, São Paulo escreve: “Ao Rei dos séculos, Deus imortal, invisível,
único, honra e glória pelos séculos dos séculos. Amém!” (1Tm 1,17).
A mesma verdade se encontra no Apocalipse
com outra expressão: “Eu sou o Alfa e
o Ômega, diz o Senhor Deus, Aquele
que é, que era e que vem, o Todo-poderoso” (Ap 1,8).
6. Nesses dados da Revelação encontra
expressão também a convicção racional, à qual se chega quando se pensa que Deus
é o Ser subsistente, e, portanto, necessário e eterno,
já que não pode não ser, não pode ter nem princípio nem fim, nem sucessão de
momentos no ato único e infinito da sua existência. Sobre este ponto, a reta razão
e a Revelação encontram uma admirável coincidência. Sendo Deus absoluta
plenitude do ser (ipsum Esse subsistens), a sua eternidade,
“inscrita na terminologia do ser”, deve entender-se como “posse indivisível,
perfeita e simultânea de uma vida sem fim” e, portanto, como atributo do ser
absolutamente “além do tempo”.
A eternidade de Deus não acompanha
o tempo do mundo criado, “não corresponde a ele”; não o “precede” ou o “prolonga”
no infinito; mas está além e acima dele. A eternidade, com todo o mistério de
Deus, compreende em certo sentido “de além” e “acima” tudo o que está “dentro”,
sujeito ao tempo, à mudança, ao contingente. Vêm à mente as palavras de São
Paulo no Areópago de Atenas; “n’Ele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28).
Dizemos “de além” para afirmar, com
esta expressão metafórica ,a transcendência de Deus sobre as coisas e da
eternidade sobre o tempo, mesmo sabendo e reafirmando que Deus é o Ser que é
interior ao próprio ser das coisas, e, portanto, também ao tempo que passa como
um suceder-se de momentos, cada um dos quais não está fora do seu abraço
eterno.
O texto do Vaticano I exprime a fé da Igreja no Deus vivo,
verdadeiro e eterno. É eterno porque é absoluta
plenitude de ser que, como indicam claramente os textos bíblicos citados, não pode
ser entendida como uma soma de fragmentos ou de “partículas” do ser que mudam
com o tempo. A absoluta plenitude do ser só pode ser
entendida como eternidade, isto é, como a posse total e indivisível daquele
ser que é a própria vida de Deus. Neste sentido, Deus é eterno: um “nunc”, um “agora” subsistente e imutável,
cujo modo de ser se distingue essencialmente daquele das criaturas, que são
seres “contingentes”.
7. Assim, pois, o Deus vivo que revelou
a Si mesmo é o Deus eterno. Mais corretamente dizemos que Deus é a própria
eternidade. A perfeita simplicidade do Ser divino (“omnino simplex”) exige tal forma de expressão.
Quando, com nossa linguagem
humana, dizemos: “Deus é eterno”, indicamos um atributo do Ser divino. E, uma
vez que cada atributo não se distingue concretamente da própria essência de Deus
(enquanto os atributos humanos se distinguem do homem que os possui), ao dizer:
“Deus é eterno”, queremos afirmar: “Deus é a eternidade”.
Esta eternidade para nós, sujeitos ao espaço e ao tempo, é incompreensível,
assim como a Essência divina; porém, ela nos faz perceber, inclusive sob este
aspecto, a infinita grandeza e majestade do Ser divino, ao mesmo tempo em que nos
enche de alegria o pensamento de que este Ser-Eternidade compreende tudo aquilo
que é criado e contingente, inclusive nosso pequeno ser, cada um de nossos
atos, cada momento de nossa vida.
“N’Ele vivemos, nos movemos e
existimos”.
9. Deus, Espírito infinitamente perfeito
João Paulo II - 11 de setembro de 1985
1. “Deus é espírito” (Jo 4,24): são as palavras pronunciadas por
nosso Senhor Jesus Cristo durante o colóquio com a Samaritana junto ao poço de
Jacó, em Sicar.
À luz de tais palavras continuamos
nesta Catequese a comentar a primeira verdade do Símbolo da fé: “Creio em Deus”.
Fazemos referência em particular ao ensinamento do Concílio Vaticano I na
Constituição Dei Filius, em seu capítulo primeiro: “Deus, criador
de todas as coisas”. Este Deus que
revelou a Si mesmo, falando “pelos profetas” e ultimamente “por meio do Filho”
(Hb 1,1-2), sendo criador do mundo, se distingue de modo essencial
do mundo que criou. Ele é a eternidade, como foi explicado na Catequese anterior,
enquanto todo o criado está sujeito ao tempo e é contingente.
2. Dado que o Deus da nossa fé é a
eternidade, Ele é plenitude de vida, e como tal se distingue de tudo
o que vive no mundo visível. Trata-se de uma “vida” que deve ser entendida no sentido
mais elevado da palavra ao referir-se a Deus, que é espírito, espírito puro, tanto
que, como ensina o Vaticano I, é imenso e invisível. Não encontramos n’Ele nada
mensurável segundo os critérios do mundo criado e visível e do tempo que mede o
fluir da vida do homem, porque Deus está sobre a matéria, é absolutamente
“imaterial”. No entanto, a “espiritualidade” do Ser divino não se limita a quanto
podemos alcançar segundo a via negativa: isto é, apenas à imaterialidade.
De fato, podemos conhecer, através da via afirmativa, que a espiritualidade é
um atributo do Ser divino quando Jesus de Nazaré responde à Samaritana dizendo:
“Deus é espírito” (Jo 4,24).
3. O texto conciliar do Vaticano
I, ao qual nos referimos, afirma a doutrina sobre Deus, que a Igreja professa e
anuncia, com duas afirmações fundamentais: “Deus é uma única substância
espiritual, totalmente simples e imutável”; e também: “Deus é infinito
em inteligência, vontade e toda perfeição” (cf. Constituição Dei Filius,
1, 1-4).
A doutrina sobre a espiritualidade
do Ser divino, transmitida pela Revelação, foi claramente formulada neste texto
com a “terminologia do ser”, como o revela a formulação “substância
espiritual”. A palavra “substância” pertence, com efeito, à linguagem da
filosofia do ser. O texto conciliar pretende afirmar com esta frase que Deus, o
qual por sua própria Essência se distingue de todo o mundo criado, não só é o
Ser subsistente, mas que, enquanto tal, é também Espírito subsistente.
O Ser divino é pela própria essência absolutamente espiritual.
4. Espiritualidade significa
inteligência e vontade livre. Deus é inteligência, vontade e liberdade em
grau infinito, assim como é também toda perfeição em grau
infinito.
Esta verdade sobre Deus tem
múltiplas confirmações nos dados da Revelação, que encontramos na Sagrada Escritura
e na Tradição. Por ora nos referiremos apenas a algumas citações bíblicas,
que põem em relevo a inteligência infinitamente perfeita do Ser divino. À liberdade
e à vontade infinitamente perfeitas de Deus dedicaremos as próximas Catequeses.
Vem à mente antes de tudo a
magnífica exclamação de São Paulo na Carta aos Romanos: “Ó profundidade da riqueza, da sabedoria
e do conhecimento de Deus! Como são insondáveis os seus juízos e impenetráveis os seus
caminhos! De fato, quem conheceu o pensamento do Senhor?” (Rm 11,33-34).
As palavras do Apóstolo ressoam
como um eco potente da doutrina dos livros sapienciais do Antigo Testamento: “Imensurável
é sua sabedoria”, proclama o Salmo
146(147),5. À sabedoria de Deus se une a sua grandeza: “Grande é o Senhor e
muito digno de louvor, não se pode calcular sua grandeza” (Sl 144/145,3).
“Não há o que diminuir nem acrescentar, nem é possível inventariar as maravilhas
de Deus; ao terminar, apenas se começou, e ao parar, fica-se perplexo” (Eclo 18,5-6).
De Deus o sábio pode, pois, afirmar: “Ele é grande, acima de todas as suas
obras” (Eclo 43,28), e concluir: “Ele é tudo!” (Eclo 43,27).
Enquanto os autores “sapienciais”
falam de Deus na terceira pessoa, “Ele”, o profeta Isaías passa à primeira
pessoa: “Eu”. Ele faz dizer a Deus, que o inspira: “Quanto os céus estão acima
da terra, assim estão meus caminhos acima dos vossos caminhos, e meus pensamentos
acima dos vossos pensamentos” (Is 55,9).
5. Nos “pensamentos” de Deus e na
sua “ciência e sabedoria” se exprime a infinita perfeição do seu Ser:
mediante sua inteligência absoluta Deus supera incomparavelmente tudo aquilo
que existe fora d’Ele. Nenhuma criatura e em particular nenhum homem pode
negar esta perfeição. “Ó homem, quem és tu para contestares a Deus? Porventura vai
o vaso de barro dizer a quem o modelou: Por que me fizeste assim? Acaso o
oleiro não é dono da argila?”, pergunta São Paulo (Rm 9,20-21). Este
modo de pensar e de se expressar é herdado do Antigo Testamento: perguntas e
respostas semelhantes encontram-se em Isaías
(cf. Is 29,15; 45,9-11) e no Livro de Jó (cf. Jó 2,9-10;
1,21). O Livro do Deuteronômio, por
sua vez, proclama: “Engrandecei o nosso Deus! É o Rochedo! Suas obras são
perfeitas, todos os seus caminhos são justiça. É o Deus fiel, sem iniquidade!
Ele é justo e reto” (Dt 32,3-4). O louvor da infinita perfeição de
Deus não é apenas confissão da sabedoria, mas também da sua justiça
e retidão, isto é, da sua perfeição moral.
6. No Sermão da Montanha Jesus
Cristo exorta: “Sede, portanto, perfeitos como vosso Pai celeste é
perfeito” (Mt 5,48). Este chamado é um convite a confessar: Deus
é perfeito! É “infinitamente perfeito” (cf.
Vaticano I, Constituição Dei Filius, 1, 1-4).
A infinita perfeição de Deus está
constantemente presente no ensinamento
de Jesus Cristo. Aquele que disse à Samaritana: “Deus é espírito, e os que o
adoram devem adorá-lo em espírito e verdade” (Jo 4,23-24), expressou-se
de maneira muito significativa quando respondeu ao jovem que se dirigiu a Ele
com as palavras: “Bom Mestre...”, dizendo “Por que me chamas bom? Ninguém é bom
senão só Deus” (Mc 10,17-18).
7. Só Deus é bom e possui a perfeição
infinita da bondade. Deus é a plenitude de todo bem. Assim como Ele
“é” toda a plenitude do ser, do mesmo modo “é bom” com toda a plenitude do bem.
Esta plenitude de bem corresponde à infinita perfeição da sua vontade, assim
como à infinita perfeição do seu intelecto e da sua inteligência corresponde à absoluta
plenitude da verdade, subsistente n’Ele enquanto conhecida por seu intelecto
como idêntica ao seu conhecer e ser. Deus é espírito infinitamente perfeito, pelo
qual aqueles que o conheceram se tornaram seus verdadeiros adoradores: o adoram
em espírito e verdade.
Deus, este bem infinito que é
absoluta plenitude de verdade... “est diffusivum sui” (Tomás de Aquino, Summa
Theologiae, I, q. 5, a. 4, ad 2). Também por isto Deus revelou a Si mesmo: a Revelação é o próprio
bem que se comunica como verdade.
Este Deus que revelou a Si mesmo
deseja de modo inefável e incomparável comunicar-se, dar-se! É este o Deus da
aliança e da graça.
Deus Pai de braços abertos, como gesto de autodoação (Giovanni Francesco Barbieri, il Guercino) |
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (04 de setembro e 11 de setembro de 1985).
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