“Eis os santos que, vivendo neste mundo, plantaram a
Igreja, regando-a com seu sangue” [1].
A Solenidade de São Pedro e São Paulo, celebrada pelas
Igrejas do Oriente e do Ocidente no dia 29 de junho, é enriquecida com
quatro hinos próprios na Liturgia das Horas (LH):
I Vésperas: Aurea luce (Ó áurea luz);
Ofício das Leituras: Felix per omnes festum (A festa
dos Apóstolos);
Laudes: Apostolórum pássio (A paixão dos Apóstolos);
II Vésperas: O Roma felix (Roma feliz).
São Pedro e São Paulo diante da cidade de Roma [2]: Notem-se os instrumentos do martírio (a cruz e a espada) |
Em nossas postagens anteriores analisamos os hinos das I Vésperas e do Ofício das Leituras. Agora, portanto, cabe considerar o hino das Laudes:
Apostolórum pássio (A paixão dos
Apóstolos).
Este hino foi composto por Santo Ambrósio de Milão (†397),
Bispo e Doutor da Igreja, no século IV. Possuía originalmente oito
estrofes, seis das quais são entoadas aqui, unidas a uma súplica final dirigida
a Cristo Redentor, adaptada do hino “Aetérna Christi múnera”, do Comum dos
Mártires, igualmente obra de Ambrósio, totalizando sete estrofes.
Essa composição é outra das obras resgatadas pela Comissão encarregada
da revisão dos hinos da LH durante a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II,
encabeçada pelo Padre Anselmo Lentini (†1989).
No antigo Breviarium Romanum, por sua vez, entoava-se
nas Laudes dessa Solenidade o hino “Iam,
bone pastor” que, como vimos em
sua respectiva postagem, atualmente é prescrito para as Festas da Cátedra de São Pedro (22 de fevereiro) e da Conversão de São Paulo (25 de janeiro) e para
a Memória da Dedicação das suas Basílicas (18 de novembro).
Segue, pois, o texto original de Apostolórum pássio (em
latim) e sua tradução oficial para o português do Brasil, além de alguns
comentários sobre sua teologia, esquema que adotamos neste blog para a análise dos hinos da LH.
Note-se que as estrofes de quatro versos do texto original
foram transformadas em estrofes de seis versos na tradução brasileira, com
rimas alternadas nos versos pares.
Santo Ambrósio de Milão (†397): autor do hino |
Sancti Petri et Pauli, Apostolorum (Solemnitas)
Laudes matutinae: Apostolórum pássio
1. Apostolórum pássio
diem sacrávit saeculi,
Petri triúmphum nóbilem,
Pauli corónam praeferens.
2. Coniúnxit aequáles viros
cruor triumphális necis;
Deum secútos praesulem
Christi coronávit fides.
3. Primus Petrus apóstolus;
nec Paulus impar grátia,
electiónis vas sacrae
Petri adaequávit fidem.
4. Verso crucis vestígio
Simon, honórem dans Deo,
suspénsus ascéndit, dati
non ímmemor oráculi.
5. Hinc Roma celsum vérticem
devotiónis éxtulit,
fundáta tali sánguine
et vate tanto nóbilis.
6. Huc ire quis mundum putet,
concúrrere plebem poli:
elécta géntium caput
sedes magístri géntium.
7. Horum, Redémptor, quaesumus,
ut príncipum consórtio
iungas precántes sérvulos
in
sempitérna saecula. Amen [3].
São Pedro e São Paulo, Apóstolos (Solenidade)
Laudes: A paixão dos Apóstolos
1. A paixão dos Apóstolos / este dia sagrou,
o triunfo de Pedro / para nós revelou,
e a coroa de Paulo / até aos céus exaltou.
2. A vitória da morte / os uniu, como irmãos
consagrados no sangue, / verdadeira oblação;
pela fé coroados, / ao Senhor louvarão.
3. Pedro foi o primeiro / por Jesus consagrado;
Paulo, arauto por graça, / vaso eleito chamado,
pela fé se igualava / ao que tem o Primado.
4. Com os pés para o alto / foi Simão levantado
sobre a cruz do martírio, / como o Mestre, elevado,
recordando a Palavra / que Ele tinha falado.
5. Em tão nobre triunfo, / Roma foi elevada
ao mais alto dos cumes, / em tal sangue fundada;
por tão nobres profetas / a Jesus consagrada.
6. Para cá vem o mundo, / e se encontram os crentes,
feita centro dos povos, / nova mãe dos viventes,
como sede escolhida / pelo Mestre das gentes.
7. Redentor, vos pedimos / que possamos também
conviver com tais santos, / junto a vós, Sumo Bem,
e cantar vossa glória / pelos séculos. Amém [4].
Comentário:
a) 1ª estrofe: Apostolórum pássio
O hino começa diretamente apresentando o “motivo do louvor”,
que é também o “conteúdo” da celebração deste “dia sagrado”: a “paixão”, isto
é, o “martírio” dos Apóstolos: o “nobre triunfo” de Pedro e a “coroa” de Paulo (cf.
2Tm 4,8).
Decapitação de São Paulo (São Lourenço in Palatio - Sancta Sanctorum, Roma) |
b) 2ª estrofe: Coniúnxit aequáles viros
A igual veneração tributada aos dois Apóstolos, recordada em
seu Prefácio próprio, é fundamentada na 2ª estrofe do nosso hino através do “sangue
de uma morte triunfal” (cruor triumphális necis), referida na tradução
brasileira como “verdadeira oblação” que “os uniu como irmãos”.
A mesma estrofe atesta que os Apóstolos “seguiram a Deus
como guia” e foram “coroados” por causa da sua fé (por sua fidelidade), como o
próprio Cristo prometera: “Sê fiel até à morte e Eu te darei a coroa da vida” (Ap
2,10).
c) 3ª estrofe: Primus Petrus apóstolus
A 3ª estrofe prossegue atestando a igual honra devida aos dois,
irmanados na mesma fé: Pedro, como “o primeiro entre os Apóstolos” (cf. Mt
16,15-19; Jo 21,15-17), e Paulo, pela graça de Deus (cf. 1Cor
15,10), “vaso de santa eleição” (vas electiónis; cf. At 9,15)
d) 4ª estrofe: Verso crucis vestígio
A seguinte estrofe está centrada no martírio de Simão Pedro,
que “dá honra a Deus” seguindo os passos do Mestre, sendo elevado em uma cruz
invertida.
Os primeiros testemunhos a respeito do martírio de São Pedro
em Roma, crucificado na colina Vaticana durante a perseguição do Imperador
Nero, entre os anos de 64 e 68, remontam a meados do século II.
A referência à cruz invertida nos é dada pelos Atos de
Pedro, escrito apócrifo do final do mesmo século, tradição retomada posteriormente
pelos Padres da Igreja, como Orígenes (séc. III). Segundo essa tradição, Pedro
julgara-se indigno de morrer como o Mestre, pedindo aos seus executores que o
crucificassem de cabeça para baixo [5].
Crucificação de São Pedro (São Lourenço in Palatio - Sancta Sanctorum, Roma) |
A estrofe atesta ainda que, ao ser crucificado, Pedro “não esqueceu
o oráculo”, isto é, a “profecia” que lhe fora anunciada pelo Senhor: “‘Quando
fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te levará para onde não
queres ir’. Jesus disse isso, significando com que morte Pedro iria glorificar
a Deus” (Jo 21,18-19).
Infelizmente falta aqui uma referência ao martírio de Paulo,
que também teria sido morto em Roma durante a perseguição de Nero. Segundo a
tradição, sendo cidadão romano (cf. At 22,25-29), o Apóstolo foi decapitado
junto à via Ostiense (a estrada que liga Roma ao porto de Óstia).
e) 5ª estrofe: Hinc Roma celsum
Assim como o hino das II Vésperas, que veremos em nossa próxima postagem (com uma estrofe adaptada também para o hino das I Vésperas),
a 5ª estrofe da composição celebra a cidade de Roma.
Roma foi “elevada ao vértice da devoção”, não por seus
próprios méritos, mas por ter sido “fundada” (poderíamos dizer também “fecundada”)
pelo sangue dos Apóstolos, conforme a “nobre profecia”.
Esta “profecia” pode ser tanto aquela sobre o martírio de
Pedro, citada acima (Jo 21,18-19), quanto o “mandato missionário” que
Jesus faz aos seus Apóstolos: “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda
a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8; cf. Lc
24,47-48). Como já indicamos nas postagens anteriores, a palavra “martyr”
significa literalmente “testemunha”.
A tradução brasileira destaca ainda que, ao acolher o
martírio dos Apóstolos, Roma “foi elevada ao mais alto dos cumes”. A cidade,
com efeito, fora fundada originalmente sobre sete colinas: Aventino, Capitólio,
Célio, Esquilino, Palatino, Quirinal e Viminal [6].
f) 6ª estrofe: Huc ire quis mundum
A 6ª estrofe do nosso hino prossegue o louvor de Roma,
eleita “cabeça dos povos” e “sede do mestre das nações”. Esta, com efeito, é tradicionalmente
referida como “omnium urbis ecclesiarum mater et caput” (mãe e cabeça de
todas as igrejas do mundo), como canta a tradução brasileira, referindo-se a
ela como “nova mãe dos viventes”. Já Santo Inácio de Antioquia (†108) afirmava
que a comunidade de Roma era chamada a presidir “na caridade” [7].
Não está claro, porém, se o título de “mestre das nações” se
refere aqui a Paulo, o “doutor das nações” (cf. 1Tm 2,7; At 9,15),
ou ao próprio Cristo (algumas traduções, como a brasileira, adotam última
interpretação, referindo-se ao “Mestre” com letra maiúscula).
A estrofe celebra ainda as peregrinações a Roma, à qual acorre
todo o mundo e a multidão dos fiéis. Ao ser a sede do Império Romano, esta já era
o “centro dos povos” da época; contudo, ao abrigar os túmulos dos “protocorifeus
do coro dos Apóstolos”, a cidade se torna também a “capital espiritual” do
Cristianismo.
Alguém poderia perguntar: por que Roma e não Jerusalém? Porque
esta última foi destruída durante as Guerras Judaico-Romanas a partir do ano
70, sendo posteriormente reconstruída como Élia Capitolina (Aelia Capitolina)
pelo Imperador Adriano.
Assim, a cidade de Roma, que abrigava os túmulos de Pedro e
Paulo, tornou-se a principal referência para os cristãos já a partir do século
II, seguida pelas outras sedes principais do Cristianismo (Constantinopla,
Alexandria, Antioquia). As peregrinações a Jerusalém só seriam retomadas no
século IV, após a Paz de Constantino.
g) 7ª estrofe: Horum, Redémptor, quaesumus
A 7ª estrofe, uma súplica final dirigida a Cristo, não
pertencia originalmente a “Apostolórum pássio”, sendo adaptada do hino “Aetérna
Christi múnera” (De Cristo o dom eterno), das Laudes do Comum dos Mártires,
igualmente obra de Ambrósio. Antes da reforma litúrgica, com efeito, esse hino
era entoado nas Matinas do Comum dos Apóstolos.
Nessa estrofe pedimos ao Cristo Redentor que conceda a nós,
seus servos, unirmo-nos a estes “Príncipes” dos Apóstolos (cf. Sl 44,17)
- isto é, Pedro e Paulo - pelos séculos eternos.
São Pedro e São Paulo |
“A vós, ó Deus, louvamos, a vós, Senhor, cantamos!
A vós celebra o coro glorioso dos Apóstolos!”
(Do hino Te Deum laudamus).
Notas:
[1] cf. Missa da Solenidade de São Pedro e São Paulo,
Apóstolos (29 de junho), Antífona de entrada. in: MISSAL ROMANO. Tradução
portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p.
608.
[2] O célebre Coliseu romano, representado no mosaico, só foi construído após a morte de São Pedro e São Paulo, pelos Imperadores da Dinastia Flávia (ou Flaviana): Vespasiano (69-79) e seus filhos Tito (79-81) e Domiciano (81-96), donde o seu nome original: Anfiteatro Flávio (Amphitheatrum Flavium). São Pedro e os demais Protomártires da Igreja de Roma foram martirizados no Circo de Nero, junto à Colina Vaticana.
Para saber mais sobre o Coliseu, confira nossa postagem sobre a história da Via Sacra presidida pelo Papa na Sexta-feira Santa.
[3] CATTOLICI ROMANI: Thesaurus
Liturgiae: Inni della «Liturgia Horarum» - 2. Proprium de Sanctis &
Communia.
[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, vol. III, pp. 1394-1395.
[5] cf. Atos de Pedro, cap. 37-40. in: PROENÇA,
Eduardo de [org.]. Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia, vol. I. São
Paulo: Fonte Editorial, 2005, pp. 455-458.
[6] Por isso no Livro do Apocalipse Roma é representada
como uma prostituta sentada sobre sete colinas (Ap 17), pois na época da
sua redação (final do séc. I), o Império Romano estava perseguindo os cristãos
(provavelmente sob o Imperador Domiciano).
[7] cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA. Carta aos Romanos, Saudação.
in: Padres Apostólicos. São Paulo: Paulus, 1995, p. 103. Coleção: Patrística,
vol. 1.
Referências:
AROCENA, Félix. Los
himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid: Ediciones Palabra, 1992, pp. 245-246.
Imagens: Wikimedia Commons.
Nenhum comentário:
Postar um comentário