Homilia na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo
Sacramento da unidade e fonte da eternidade
Caríssimos,
Celebramos a Solenidade do
Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo e com ela celebramos o que havemos de ser
em termos de unidade e eternidade.
Assim o ouvimos há pouco ao
Apóstolo: «Embora sejamos muitos, formamos um só corpo, porque participamos do
mesmo pão» (1Cor 10,17). E depois ao próprio Cristo: «Eu sou o pão vivo
descido do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente» (Jo 6,51).
Trata-se, em qualquer dos
casos de absoluto realismo, ou seja, de realismo cristão. Um realismo bem
diverso das realidades correntes, mas tão consistente agora como quando foi
enunciado há dois milênios. Tão consistente que nos traz hoje aqui, como a
inumeráveis crentes, faça sol ou chuva, seja às descobertas seja condicionado
por limitações à liberdade religiosa, que também não faltam por esse mundo
além.
Realismo cristão que dá outro
sentido aos enunciados comuns. Vejamos o primeiro: Formamos um só corpo porque
comemos do mesmo pão. Geralmente é ao contrário, pois quando dividimos um pão
ele sustenta vários corpos, que diferentes continuam e antagônicos por vezes.
Não foi por comer o pedaço de pão que Jesus lhe deu que o Iscariotes ficou
unido a quem o dera e aos outros comensais, bem pelo contrário...
No entanto, se recebido com as
disposições devidas, este pão une de verdade os que o recebem. Não apenas nem
sobretudo pela matéria digerida, mas pela vida que a todos oferece, que é a
única vida do Ressuscitado, comungado e adorado por aqueles que a recebem.
Por isso a comunhão
eucarística é geradora da unidade da Igreja, transformada assim no corpo
eclesial de Cristo. Por isso podemos dizer também que a evangelização tem aqui
o seu término, na mesa eucarística onde todos devemos comungar, com sentimentos
e atitudes conformes aos de Cristo.
Deste modo nos uniremos
n’Aquele que nos unifica e nos tornamos n’Ele em fonte de unidade e de paz para
todos a quem chegarmos, precisamente assim. O nosso mundo precisa de vidas
eucarísticas, para com Cristo se retribuir a Deus Pai, para com Cristo
alimentar a todos. E sem esquecer que as páginas evangélicas nos dizem que tudo
isto começa por proporcionar aos outros o alimento e a saúde materiais, em que
a vida se apoia para poder ir mais acima e mais além.
No enunciado seguinte, Jesus
afirma-se como pão vivo descido do Céu, que por isso garante a quem o receber a
própria vida eterna.
Diferentemente do pão
habitual, Jesus é “pão vivo”, que ultrapassa o alimento comum e perecível. É
pão porque alimenta e vivo porque persiste, garantindo eternidade a quem o
recebe.
Mais uma vez as palavras
ganham outro alcance, como sempre acontece na gramática evangélica. É a lógica
do Verbo encarnado, em que Deus vem a nosso encontro numa vida convivida, com
os dinamismos comuns transformados pelo sopro do Espírito. É realmente “Deus conosco”,
para nos divinizar com Ele. Assim realmente unidos no que Ele é e nós havemos
de ser; assim também eternizados na caridade que jamais acabará.
Pela comunhão verdadeira do
seu Corpo e Sangue, isto é, da própria pessoa de Cristo, Ressuscitado agora
para nos ressuscitar também, acedemos ao que mais profundamente ansiamos, pois
para isso fomos feitos. Para isso fomos feitos e em Cristo também refeitos. Por
isso se entregou por nós e para nós, para chegarmos onde sozinhos nunca
iríamos. Resgatou-nos de vidas por cumprir.
Detenhamo-nos por momentos,
porque de eternidade se trata. Sondemos o coração e o entendimento, para vermos
até onde chega a nossa convicção eucarística: Damos realmente à comunhão, bem
como à sua preparação, recepção e ação de graças, o valor das coisas
definitivas, onde o sentido da vida se joga em cada um, para si e para os
outros?
E, quanto à reserva
eucarística, como se guarda nos nossos sacrários, quer para distribuição futura
quer para adoração agora, que atenção lhe damos, que reverência lhe prestamos,
que centralidade nos ocupa?
Deixai-me dizer, quanto a este
ponto, que perante passagens indiferentes, genuflexões desajeitadas e barulhos
excessivos diante da reserva eucarística, aqui ou ali, me pergunto por vezes e
sem me pôr de fora, onde anda e até que ponto vai a nossa fé no sacramento...
Modo de me perguntar também sobre o que aproveitamos ou não da presença real de
Cristo, nosso proveito absoluto.
Ecoam-me a propósito algumas
frases de Santo Afonso Maria de Ligório, nas suas Visitas a Jesus Sacramentado
e a Nossa Senhora, como estas entre muitas mais: «Jesus acha as suas
delícias em estar conosco e nós não acharemos as nossas em estar com Ele? (...)
Apareceis no meio de nós ora como menino num presépio, ora como pobre operário
numa oficina; aqui como criminoso num patíbulo, ali como pão sobre um altar.
Dizei-me, Jesus: que mais podereis inventar para que vos amem? (...) Meu Jesus,
que invenção cheia de amor a do Santíssimo Sacramento, onde vos ocultais sob a
aparência do pão, para estardes ao alcance de todos os que querem, aqui na
terra, achar-vos e amar-vos!».
Provindas dum autor da
grandeza teológica e moral de Santo Afonso, exclamações como estas são muito
mais do que manifestações duma piedade situada; são, isso sim, expressões do
realismo que as coisas alcançam quando vividas por Cristo e a partir de Cristo.
É também por isso que os
santos da grande caridade, como Santa Teresa de Calcutá, asseguraram a
fecundidade da sua ação na prolongada adoração eucarística. Como estou certo de
que, progredindo na atenção a Cristo no sacramento eucarístico, aumentará
igualmente o serviço a Cristo, que no “sacramento dos irmãos” realmente nos
espera também.
Não esqueçamos que na primeira
notícia escrita da Eucaristia, como a temos na 1ª Carta aos Coríntios, já
São Paulo exige caridade prática para fazer uma comunhão legítima: «Examine-se
cada um a si mesmo [precisamente sobre este ponto] e só então coma deste pão e
beba deste vinho» (1Cor 11,28).
Porque de bom relacionamento
se trata, coincidindo com a relação que o próprio Deus estabelece conosco no Corpo
e Sangue de Cristo.
Na linguagem bíblica, “corpo”
é o que nos permite a relação com os outros e com o mundo, a capacidade de
comunicarmos com eles. Em Cristo a relação foi total, nas suas palavras ditas e
ouvidas, como nos gestos e ações que praticou, a bem de todos. Uma vida assim
vence a morte e plenifica a relação. Foi em Cristo e será em nós, na sua Páscoa
refeitos.
Celebrarmos o “Corpo e Sangue
de Cristo” como o fazemos hoje, se estenderá nos dias que vivermos para Deus e
para os outros, na adoração mais agradecida e na caridade mais praticada. É
assim que o Corpo de Deus se alarga no mundo, numa comunhão que nunca acabará.
Na preparação e próxima
realização da Jornada Mundial da Juventude é notória a unidade que cresce em
quantos colaboram numa tarefa comum, para o bem da multidão juvenil que aqui
acorrerá. Isso mesmo lhes garante a continuação da memória viva e criativa que
levarão desses dias. Também assim serão e seremos Corpo de Cristo no mundo.
Sé de Lisboa, 08 de junho de
2023.
Manuel, Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa.
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