“Ó Pedro, rochedo da
fé, e Paulo, glória do universo, vinde juntos confirmar-nos!” [1].
Como vimos em nossa postagem anterior, são quatro os hinos
próprios para a Solenidade de São Pedro e São Paulo (29 de junho)
na Liturgia das Horas (LH):
I Vésperas: Aurea luce (Ó áurea luz);
Ofício das Leituras: Felix per omnes festum (A festa
dos Apóstolos);
Laudes: Apostolórum pássio (A paixão dos Apóstolos);
II Vésperas: O Roma felix (Roma feliz).
São Pedro e São Paulo (Fra Bartolomeo e Rafael Sanzio) |
Após dedicarmos uma postagem ao hino das I Vésperas, gostaríamos
de apresentar brevemente o hino do Ofício das Leituras da Solenidade: Felix
per omnes festum (A festa dos Apóstolos).
Este foi composto entre os séculos VIII e IX,
sendo atribuído a São Paulino de Aquileia (†802). Paulino foi mestre na corte
de Carlos Magno (†814), até ser eleito Patriarca de Aquileia em 787.
Paulino II de Aquileia (assim referido para distingui-lo do
seu antecessor de mesmo nome, que foi Patriarca durante o séc. VI) participou de
diversos Sínodos, combatendo sobretudo a heresia do adocionismo, e foi um grande
promotor da evangelização na vizinha Eslovênia.
O hino completo possui oito estrofes, além da doxologia
final em louvor à Trindade. Para o Ofício das Leituras são entoadas as
primeiras duas estrofes (Felix per omnes festum; Hi sunt
olívae duae) unidas à doxologia.
Como recorda Felix Arocena em sua obra Los himnos de la Liturgia de las Horas, outras estrofes do nosso
hino são entoadas nas II Vésperas da Solenidade de São Pedro e São Paulo (O
Roma felix...), como veremos na respectiva postagem, e nas Laudes da Festa da Cátedra de São Pedro (22 de fevereiro), Petrus beátus catenárum láqueos.
Vale dizer que este hino foi resgatado pela Comissão encarregada
da revisão dos hinos da LH durante a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II,
encabeçada pelo Padre Anselmo Lentini (†1989).
No antigo Breviarium Romanum não havia
um hino próprio para as Matinas de São Pedro e São Paulo, sendo entoado o hino do
Comum dos Apóstolos “Aetérna Christi múnera” (originalmente uma composição
em honra aos Mártires, resgatada como tal pela reforma litúrgica).
São Paulo II de Aquileia (†802), autor do hino |
Assim, como já fizemos com outros hinos da LH aqui no blog, reproduzimos a seguir o texto original de Felix per omnes festum (em latim), e sua tradução oficial para o português do Brasil, seguidos de breves comentários sobre sua teologia.
Note-se que enquanto o texto latino é composto por três
estrofes de cinco versos, na tradução brasileira há seis estrofes de quatro
versos, com rimas alternadas nos versos pares.
Sancti Petri et Pauli, Apostolorum (Solemnitas)
Officium Lectionis: Felix per omnes festum
1. Felix per omnes festum mundi cárdines
apostolórum praepóllet alácriter,
Petri beáti, Pauli sacratíssimi,
quos Christus almo consecrávit sánguine,
ecclesiárum deputávit príncipes.
2. Hi sunt olívae duae coram Dómino
et candelábra luce radiántia,
praeclára caeli duo luminária;
fórtia
solvunt peccatórum víncula
portásque caeli réserant fidélibus.
3. Glória Patri per imménsa saecula,
sit tibi, Nate, decus et impérium,
honor, potéstas Sanctóque Spirítui;
sit
Trinitáti salus indivídua
per infiníta saeculórum saecula. Amen [2].
São Pedro e São Paulo, Apóstolos (Solenidade)
Ofício das Leituras: A festa dos Apóstolos
1. A festa dos Apóstolos / alegra todo o mundo
até os seus extremos, / com júbilo profundo.
Louvamos Pedro e Paulo, / por Cristo consagrados
colunas das Igrejas / no sangue derramado.
2. São duas oliveiras / diante do Senhor,
brilhantes candelabros / de esplêndido fulgor.
Do céu luzeiros claros, / desatam todo laço
de culpa, abrindo aos santos / de Deus o eterno Paço.
3. Ao Pai louvor e glória / nos tempos sem fronteiras.
Império a vós, ó Filho, / beleza verdadeira.
Poder ao Santo Espírito, / Amor e Sumo Bem.
Louvores à Trindade / nos séculos. Amém [3].
Comentário:
a) 1ª estrofe: Felix per omnes festum
A 1ª estrofe do nosso hino, embora não de forma imperativa, serve
como “convite ao louvor”, declarando que toda a terra se alegra com a festa
dos Apóstolos. Esta alegria, com efeito, se estende a “todos os cantos do mundo”
(“mundi cárdines”, em alusão aos quatro pontos cardeais).
Nessa mesma estrofe Paulino de Aquileia começa a apresentar
os “motivos do louvor”: o “bem-aventurado Pedro” e o “sacratíssimo Paulo” foram
consagrados por Cristo através do seu sangue precioso, vivificante.
A expressão
pode referir-se aqui ao próprio sangue dos Apóstolos, derramado no martírio, e
ao Sangue de Cristo, ao qual estes se configuram através da oblação da própria
vida: “Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as
suas vestes no Sangue do Cordeiro” (Ap 7, 14).
A estrofe conclui indicando o “prêmio” pelo seu testemunho (lembremos que a palavra grega martyria significa literalmente “testemunho”): tornaram-se “príncipes das Igrejas” (cf. Sl 44,17), “colunas das Igrejas” na tradução brasileira (cf. Gl 2,9; Ap 3,12).
É por ter acolhido o martírio desses dois Apóstolos, com efeito, que Roma é “omnium urbis ecclesiarum mater et caput” (mãe e cabeça de todas as igrejas do mundo).
b) 2ª estrofe: Hi sunt olívae duae
A segunda estrofe retoma o simbolismo da “dupla oliveira”,
já presente no hino das I Vésperas, como vimos em sua respectiva postagem.
As imagens da “dupla oliveira” e dos “dois candelabros de luz
radiante” têm sua origem em uma visão do Profeta Zacarias (Zc 4,14), sendo
aplicadas no Apocalipse às duas testemunhas “que estão diante do Senhor”
(Ap 11,4).
As “duas testemunhas” foram tradicionalmente interpretadas
como dois profetas (Moisés e Elias, Enoc e Elias); contudo, sobretudo no final
da Idade Média, alguns teólogos as associaram a Pedro e Paulo, considerando
sobretudo os vv. 7-8: as duas testemunhas são mortas pela Besta e seus cadáveres
permanecem na “Grande Cidade”.
Além disso, as “duas testemunhas” têm o poder de “fechar o
céu” (Ap 11,6), autoridade dada por Jesus a Pedro no Evangelho: “Eu te
darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado
nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus” (Mt
16,19).
Este texto é recordado pela nossa estrofe, que atribui a
Pedro e Paulo, lâmpadas que irradiam a luz de Cristo (cf. Mt 5,14-16),
a autoridade para “desatar os fortes laços que prendem os pecadores” e “abrir as
portas do céu aos fiéis”.
É significativo que o hino use o termo “vincula” (laços,
correntes), uma vez que tanto Pedro quanto Paulo foram presos por causa do Evangelho
em mais de uma ocasião, como narram os Atos dos Apóstolos e as Cartas.
Além disso, em Roma veneram-se as correntes que teriam prendido os
Apóstolos, conservadas respectivamente na igreja de São Pedro in Vincoli
[4] e na Basílica de São Paulo fora-dos-muros.
c) 3ª estrofe: Glória Patri per imménsa saecula
Por fim, como na maioria dos hinos da LH, a composição
conclui com uma doxologia (breve fórmula de louvor) dirigida à cada uma das
Pessoas da “Trindade indivisa”: ao Pai, ao Filho (“o Nascido”, referido como “a
Beleza verdadeira” na tradução brasileira) e ao Espírito Santo (que é “o Amor e
o Sumo Bem”), aos quais se atribui honra, glória e poder e a honra pelos
séculos infinitos.
Notas:
[1] Trecho do Hipakoi da Festa dos Santos Pedro e
Paulo, Príncipes dos Apóstolos (29 de junho). in: SPERANDIO, João
Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto [org.]. Liturgikon: Próprio das Festas no
Rito Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015,
p. 49.
[2] CATTOLICI ROMANI: Thesaurus
Liturgiae: Inni della «Liturgia Horarum» - 2. Proprium de Sanctis &
Communia.
[3] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, vol. III, pp. 1389-1390.
[4] Antes da reforma litúrgica se celebrava o aniversário
da dedicação dessa igreja no dia 01 de agosto com a festa de São Pedro “em
cadeias” (Sancti Petri “ad vincula”). Nas Vésperas da festa se
entoavam as estrofes 4-5 do nosso hino (Petrus beátus catenárum láqueos),
atualmente previstas para as Laudes da Festa da Cátedra de São Pedro (22 de
fevereiro).
Referências:
AROCENA, Félix. Los
himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid: Ediciones Palabra, 1992, pp. 243-244.
Imagens: Wikimedia Commons.
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