quinta-feira, 26 de maio de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Introdução 4

A segunda parte das Catequeses introdutórias do Papa São João Paulo II sobre o Creio é dedicada à fé, subdividida em duas seções: origem da fé e transmissão da fé.

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
INTRODUÇÃO GERAL

O QUE É A FÉ? (nn. 7-20)

I. Origem da fé: Resposta à iniciativa de Deus (nn. 7-12)

7. O que quer dizer crer?
João Paulo II - 13 de março de 1985

1. O primeiro e fundamental ponto de referência da presente Catequese são as profissões da fé cristã universalmente conhecidas, que se chamam também “Símbolos da fé”. A palavra grega “symbolon” (σύμβολον) significava a metade de um objeto partido (por exemplo, um selo) que era apresentada como  sinal de reconhecimento. As partes quebradas eram colocadas juntas para verificar a identidade do portador. Daí provêm os ulteriores significados de “símbolo”: a prova da identidade, as cartas credenciais e mesmo um tratado ou contrato cuja prova era o “symbolon”. A passagem desse significado ao de coleção ou sumário das coisas referidas e documentadas era bastante natural. Em nosso caso, os “Símbolos” significam a coletânea das principais verdades de fé, isto é, daquilo em que a Igreja crê. A catequese sistemática contém as instruções sobre aquilo em que a Igreja crê, isto é, sobre os conteúdos da fé cristã. Daí também o fato de que os “Símbolos da fé” são o primeiro e fundamental ponto de referência para a catequese.

Os doze Apóstolos, aos quais se relacionam os doze artigos do Creio

Para acessar nossa postagem sobre a relação entre os Apóstolos e os artigos do Creio, clique aqui.

2. Entre os vários “Símbolos da fé” antigos, o que possui mais autoridade é o “Símbolo Apostólico”, de origem antiquíssima e comumente recitado nas “orações do cristão”. Ele contém as principais verdades da fé transmitidas pelos Apóstolos de Jesus Cristo. Outro Símbolo antigo e famoso é o “Niceno-Constantinopolitano”: ele contém as mesmas verdades da fé apostólica explicadas com autoridade nos dois primeiros Concílios Ecumênicos da Igreja universal: Niceia (325) e Constantinopla (381). O uso dos “Símbolos da fé” proclamados como fruto dos Concílios da Igreja se renovou também em nosso século: de fato, depois do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI pronunciou a “profissão de fé” conhecida como o Credo do Povo de Deus (1968), que contém o conjunto das verdades da fé da Igreja, com particular consideração aos conteúdos aos quais o último Concilio deu expressão, ou aqueles pontos em torno aos quais surgiram dúvidas nos últimos anos.
Os Símbolos da fé são o principal ponto de referência para a presente Catequese. Eles, porém, nos remetem ao conjunto do “depósito da Palavra de Deus”, constituído pela Sagrada Escritura e pela Tradição Apostólica, das quais são apenas uma síntese concisa. Através das profissões de fé nos propomos, portanto, remontarmos também nós a esse imutável “depósito”, guiados pela interpretação que a Igreja, assistida pelo Espírito Santo, lhe deu ao longo dos séculos.

3. Cada um dos mencionados “Símbolos” começa com a palavra “creio”. Cada um deles, de fato, serve não tanto como instrução, mas como profissão. Os conteúdos desta profissão são as verdades da fé cristã: todas estão enraizadas nesta primeira palavra, “creio”. E precisamente sobre esta expressão, “creio”, desejamos centrar-nos nesta primeira catequese.
A expressão está presente na linguagem quotidiana, independentemente de todo conteúdo religioso, e especialmente do cristão. “Creio em ti” significa: confio em ti, estou convencido de que dizes a verdade. “Creio no que tu dizes” significa: estou convencido de que o conteúdo de tuas palavras corresponde à realidade objetiva.
Neste uso comum da palavra “creio” se põem em relevo alguns elementos essenciais. “Crer” significa aceitar e reconhecer como verdadeiro e correspondente à realidade o conteúdo daquilo que é dito, isto é, das palavras de outra pessoa (ou mesmo de mais pessoas), em virtude de sua credibilidade. Esta credibilidade decide, em um determinado caso, sobre a autoridade especial da pessoa: a autoridade da verdade. Assim, ao dizer “creio”, expressamos ao mesmo tempo uma dupla referência: à pessoa e à verdade; à verdade, em consideração à pessoa que possui particulares títulos de credibilidade.

4. A palavra “creio” aparece com muita frequência nas páginas do Evangelho e de toda a Sagrada Escritura. Seria muito útil confrontar e analisar todos os pontos do Antigo e do Novo Testamento que nos permitem captar o sentido bíblico do “crer”. Ao lado do verbo “crer” encontramos também o substantivo “” como uma das expressões centrais de toda a Bíblia. Encontramos inclusive certo tipo de “definições” da fé, como por exemplo: “a fé é fundamento daquilo que se espera e prova realidades que não se veem”, da Carta aos Hebreus (Hb 11,1).
Estes dados bíblicos foram estudados, explicados e desenvolvidos pelos Padres da Igreja e pelos teólogos ao longo dos dois mil anos de Cristianismo, como atesta a enorme literatura exegética e dogmática que temos à disposição. Assim como nos “Símbolos”, também em toda a teologia o “crer”, a “fé”, é uma categoria fundamental. É também o ponto de partida da catequese, como primeiro ato pelo qual se responde à Revelação de Deus.

5. No presente encontro nos limitaremos a uma só fonte, que porém resume todas as outras. É a Constituição conciliar Dei Verbum do Vaticano II. Ali lemos o seguinte: “Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-se e dar a conhecer o mistério da sua vontade (Ef 1,9), pelo qual os homens, por Cristo, o Verbo feito carne, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (Ef 2,18; 2Pd 1,4)” (Dei Verbum, n. 2).
“‘Ao Deus revelador deve-se prestar a obediência da fé’ (Rm 16,26; 1,5; 2Cor 10,5-6), pela qual o homem se compromete total e livremente a Deus, ‘oferecendo ao Deus que se revela a plena submissão do intelecto e da vontade’ e voluntariamente assentindo à sua revelação” (Dei Verbum, n. 5).
Estas palavras do documento conciliar contêm a resposta à pergunta: O que significa crer? A explicação é concisa, mas condensa uma grande riqueza de conteúdo. Deveremos sucessivamente penetrar mais amplamente nesta explicação do Concílio, que tem um alcance equivalente ao de una definição técnica, por assim dizê-lo.
Uma coisa é antes de tudo cosa óbvia: existe um genético e orgânico vínculo entre o nosso “creio” cristão e aquela particular “iniciativa” do próprio Deus, que se chama “Revelação”.
Por isso, a catequese sobre o “creio” (a fé) deve ser levada adiante juntamente com aquela sobre a divina Revelação. Lógica e historicamente a Revelação precede a fé. A fé está condicionada pela Revelação. Ela é a resposta do homem à divina Revelação.
Digamos desde já que esta resposta é possível e necessário ser dada, porque Deus é credível. Ninguém o é como Ele. Ninguém possui como Ele a autoridade da verdade. Em nenhum lugar mais do que com a fé em Deus se realiza o valor conceitual e semântico da palavra tão usual na linguagem humana: “Creio”, “Creio em Ti”.

8. O conhecimento racional de Deus
João Paulo II - 20 de março de 1985

1. Na Catequese passada dissemos que a fé está condicionada pela Revelação e que esta precede a fé. Devemos agora buscar esclarecer a noção e verificar a realidade de Revelação, seguindo para tanto a Constituição Dei Verbum do Concílio Vaticano II. Antes disto, porém, queremos concentrar-nos ainda um pouco sobre o sujeito da fé: isto é, sobre o homem que diz “creio”, respondendo deste modo a Deus, o qual “em sua bondade e sabedoria” quis “revelar-se” ao homem (cf. Dei Verbum, n. 2).
Antes ainda de pronunciar o seu “creio”, o homem já possui algum conceito de Deus que alcança com o esforço da própria inteligência. A Constituição Dei Verbum, tratando da divina Revelação, recorda esse fato com as seguintes palavras: “O Sagrado Concílio confessa que ‘Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza a partir das coisas criadas pela luz natural da razão humana’ (cf. Rm 1,20)” (Dei Verbum, n. 6).
O Vaticano II remete aqui à doutrina apresentada amplamente pelo Concílio precedente, o Vaticano I. Essa corresponde a toda a tradição doutrinal da Igreja, que afunda suas raízes na Sagrada Escritura, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.

2. Um texto clássico sobre o tema da possibilidade de conhecer a Deus - antes de tudo a sua existência - partindo das coisas criadas o encontramos na Carta de São Paulo aos Romanos: “(...) pois o que de Deus se pode conhecer é entre eles manifesto, já que Deus o manifestou a eles. De fato, os atributos invisíveis de Deus, seu poder eterno e sua divindade, são compreendidos através das coisas feitas, desde a criação do mundo, a fim de que eles não tenham desculpa” (Rm 1,19-20) (cf. Concílio Vaticano I, Constituição  Dei Filius, cap. 3.). O Apóstolo refere-se aqui aos homens que “na injustiça impedem a verdade” (Rm 1,18). O pecado os impede de render a glória devida a Deus, a quem todo homem pode conhecer. Pode conhecer a sua existência e também, até certo ponto, a sua essência, as suas perfeições e seus atributos. Deus invisível de certa forma “se faz visível em suas obras”.
No Antigo Testamento, o Livro da Sabedoria proclama a mesma doutrina do Apóstolo sobre a possibilidade de chegar ao conhecimento da existência de Deus a partir das coisas criadas. Encontramo-la em uma passagem um pouco mais extensa, que convém ler por inteiro:

“De fato, são vãos por natureza todos os humanos nos quais não há o conhecimento de Deus. Porquanto, partindo dos bens visíveis, não foram capazes de conhecer Aquele que é; nem tampouco, pela consideração das obras, chegaram a conhecer o artífice.
Entretanto, o fogo ou o vento, ou o ar fugidio, o ciclo das estrelas, a água impetuosa, os luzeiros do dia: por deuses, por governadores do mundo os tomaram.
Se, encantados por sua beleza, tomaram essas criaturas por deuses, reconheçam quanto o seu dominador é maior do que elas: pois foi o princípio e autor da beleza quem as criou.
Se ficaram maravilhados com o poder e a energia dessas criaturas, concluam quanto mais poderoso é aquele que as fez.
De fato, partindo da grandeza e beleza das criaturas, pode-se chegar a ver, por analogia, o seu Criador.
Contudo, estes merecem menor repreensão: talvez se tenham extraviado buscando a Deus e querendo encontrá-lo.
Com efeito, vivendo entre as obras dele, põem-se a procurá-lo, mas se deixam levar pela aparência, pois são belas as coisas que se veem!
Mesmo assim, nem estes têm desculpa: porque, se chegaram a tão vasta ciência, a ponto de investigarem o mundo, como é que não encontraram mais facilmente o seu Senhor?” (Sb 13,1-9).

Encontramos o pensamento principal desta passagem também na Carta de São Paulo aos Romanos (Rm 1,18-21): Deus pode ser conhecido através das criaturas, o mundo visível constitui para o intelecto humano a base para a afirmação da existência do Criador invisível. A passagem do Livro da Sabedoria é mais ampla. O autor inspirado debate nele com o paganismo de seu tempo, que atribuía às criaturas a glória divina. Ao mesmo tempo, o autor nos oferece elementos de reflexão e de juízo que são válidos para toda época, também para a nossa. Ele fala do enorme esforço realizado para conhecer o universo visível. Fala também de homens que “buscam a Deus e querem encontrá-lo”. Interroga-se por que o saber humano, que consegue “investigar o universo”, não chega a conhecer o seu Senhor. O autor do Livro da Sabedoria - assim como São Paulo mais tarde - vê nisso certa culpa. Mas será necessário retomar esse tema separadamente.
Por ora perguntemo-nos também nós: como é possível que o imenso progresso no conhecimento do universo (do macrocosmo e do microcosmo), das suas leis e dos seus acontecimentos, das suas estruturas e das suas energias, não conduza todos a reconhecer o primeiro Princípio, sem o qual o mundo fica sem explicação? Devemos examinar as dificuldades nas quais “tropeçam” não poucos homens de hoje. Reconheçamos, porém, com alegria, que são muitos também hoje os verdadeiros cientistas que encontram em seu próprio saber científico um impulso para a fé ou, ao menos, para inclinar a fronte diante do mistério.

3. Seguindo a Tradição que, como afirmamos, tem suas raízes na Sagrada Escritura, no Antigo e no Novo Testamento, a Igreja, no século XIX, durante o Concílio Vaticano I, recordou e confirmou a doutrina sobre a possibilidade da qual está dotado o intelecto humano para conhecer a Deus a partir das criaturas. Em nosso século, o Concílio Vaticano II recordou novamente esta doutrina no contexto da Constituição sobre a Revelação Divina (Dei Verbum). Isto possui uma grande importância.
A Revelação Divina está, com efeito, na base da fé, do “creio” do homem. Ao mesmo tempo, as passagens da Sagrada Escritura nas quais esta Revelação nos foi confiada, nos ensinam que o homem é capaz de conhecer a Deus apenas com a razão: é capaz de  certa “ciência” sobre Deus, ainda que de modo indireto e não imediato. Portanto, junto ao “eu creio” se encontra certo “eu sei”. Este “eu sei” diz respeito à existência de Deus e, até certo ponto, também à sua essência. Este conhecimento intelectual de Deus é tratado de modo sistemático por uma ciência chamada “teologia natural”, que possui caráter filosófico e que surge no terreno da metafísica, ou seja, da filosofia do ser. Ela se concentra sobre o conhecimento de Deus como causa primeira e também como fim último do universo.

4. Estes problemas, assim como toda a ampla discussão filosófica a eles vinculada, não podem ser aprofundados no âmbito de uma breve instrução sobre as verdades de fé. Também não pretendemos ocupar-nos aqui de modo particularizado daquelas “vias que guiam a mente humana na busca de Deus (as “cinco vias” de Santo Tomás de Aquino). Para esta nossa catequese é suficiente ter presente o fato de que as fontes do Cristianismo falam da possibilidade do conhecimento racional de Deus. Portanto, segundo a Igreja, todo o nosso pensar sobre Deus, baseado na fé, possui também um caráter “racional” e “intelectivo”. Mesmo o ateísmo permanece no círculo de certa referência ao conceito de Deus. Pois se de fato nega a existência de Deus, também deve saber de Quem nega a existência.
Claro que o conhecimento mediante a fé é diferente do conhecimento puramente racional. Todavia, Deus não poderia ter se revelado ao homem se este não fosse já naturalmente capaz de conhecer algo de verdadeiro a seu respeito. Assim, ao lado e para além de um “eu sei”, que é próprio da inteligência do homem, se encontra um “eu creio”, próprio do cristão: com efeito, com a fé o crente tem acesso, ainda que de modo obscuro, ao mistério da vida íntima de Deus que se revela.

A fé e a razão (fides et ratio), duas asas que nos elevam à Verdade

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (13 de março e 20 de março de 1985).

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