sábado, 9 de dezembro de 2017

O Advento e o início do Ano Litúrgico

Como a estrada que serpenteia ao redor da montanha e assim lentamente a escala em ziguezague até atingir o cume escarpado, assim nós, voltando a cada ano, devemos recomeçar o mesmo caminho, atingindo sempre uma altitude mais elevada até que alcancemos finalmente o objetivo: o Cristo” [1]

Para os fiéis de Rito Romano, com o início do Advento começa igualmente um novo ano litúrgico. Contudo, nem sempre foi assim. Com este  artigo, gostaríamos de traçar uma breve história do início do ano litúrgico.

É importante partir do princípio que nos primeiros séculos não havia a noção de um “ano litúrgico”. Os cristãos celebravam o mistério do Senhor, isto é, seu Mistério Pascal, em um ritmo semanal (domingo) e anual (Páscoa).

A partir do século IV, começam a organizar-se as várias festas litúrgicas e o tempo passa a ser contado ao redor delas. Por isso, o “ano litúrgico” era chamado anni circulus (ciclo anual): ele circundava as grandes festas, tendo sempre como referência central o Mistério Pascal.


Porém, “o ano litúrgico não se formou historicamente a partir de um plano concebido de maneira orgânica e sistemática. Por isso, não se pode falar de organização, mas de desenvolvimento e expansão do ano litúrgico” [2].

O início do ano primeiramente era colocado no dia 25 de março, que segundo uma antiga tradição teria sido o dia da criação do mundo, da Encarnação do Verbo (Anunciação do Senhor) e da Paixão. Assim o atesta um calendário hispano-mozárabe do período:

Octavo kalendas Aprilis: Equinoxis verni et dies mundi primus, in qua die Dominus et conceptus et passus est” – “Oito dias antes de abril: Equinócio da primavera e primeiro dia do mundo; neste dia o Senhor foi concebido e padeceu” [23].

O início do ano litúrgico a 25 de março é atestado por Tertuliano e Ambrósio, que falam da Páscoa no “primeiro mês”, bem como pela ordenação das Quatro Têmporas neste período, designadas como os jejuns do primeiro, quarto, sétimo e décimo meses (respectivamente: março, junho, setembro e dezembro).

Interessante notar como esta forma de calcular o tempo está ligada à tradição judaica, que igualmente relaciona a Páscoa ao início do seu ano litúrgico: “Este mês será para vós o princípio dos meses; será o primeiro mês do ano” (Ex 12,2) [4].

Da mesma forma, há aqui uma relação com o calendário agrícola, regido pelas estações. O ano inicia junto ao equinócio de primavera no hemisfério norte, estação que marca um renascimento da natureza após o inverno. Uma imagem forte, sempre ligada à Ressurreição de Cristo.


Apesar deste rico simbolismo, restam poucas referências a esta forma de contar o tempo. Uma delas é o mais antigo lecionário conhecido, o Lecionário de Wolfenbüttel (séc. VI, Gália), que apresenta um ciclo de leituras que inicia na Vigília Pascal e conclui-se na manhã do Sábado Santo.

À medida que a festa do Natal cresce em importância nos séculos VI-VII, e para seguir de maneira mais “didática” o ciclo dos mistérios da vida do Senhor, os livros litúrgicos desse período passam a iniciar a contagem do ano com o Natal. Assim o testemunham os Sacramentários gelasiano e gregoriano, o Missale gothicum e os Lecionários de Luxeuil e de Würzburg.

Com a organização do Advento nos séculos VIII-IX como período de preparação para o Natal, os livros litúrgicos desde então passam a contar o ano litúrgico a partir do I Domingo do Advento, cômputo que permanece até hoje para os ritos ocidentais (romano, ambrosiano e hispano-mozárabe) [5].

Para concluir, é mister voltarmos à imagem que apresentamos no início do texto: o ano litúrgico é uma estrada que sobe em espiral rumo ao monte que é Cristo. Mais importante do que cada etapa individual do processo é a realidade fundamental que elas circundam, isto é, o mistério de Cristo.

É preciso voltar, como indica Raniero Cantalamessa, ao “predomínio do critério místico da concentração sobre o critério cronológico da distribuição” [6]. Ou seja, cada ação litúrgica celebra o mistério do Cristo em sua totalidade, como expressamos na aclamação memorial da Celebração Eucarística:

Anunciamos, Senhor, a vossa morte, e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!” [7]


Notas:
[1] CASEL, Odo. O mistério do culto no cristianismo. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2011, p. 85.
[2] BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O ano litúrgico. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 109.
[3] RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, p. 676. Tradução nossa. Os dados históricos são todos tomados desta obra (pp. 675-677).
[4] Diferentemente do calendário civil judaico, no qual o ano começa com a festa de Rosh Hashaná, primeiro dia do mês de Tishri (entre setembro e outubro). Na tradição judaica, este dia é compreendido como a data da criação do mundo.
[5] Sobre o início do ano litúrgico nos ritos orientais, trataremos no futuro em texto próprio.
[6] BERGAMINI, op. cit., p. 106.
[7] MISSAL ROMANO, Tradução brasileira da 2ª edição típica, p. 473.

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