“Como a estrada que
serpenteia ao redor da montanha e assim lentamente a escala em ziguezague até
atingir o cume escarpado, assim nós, voltando a cada ano, devemos recomeçar o
mesmo caminho, atingindo sempre uma altitude mais elevada até que alcancemos
finalmente o objetivo: o Cristo” [1]
Para os fiéis de Rito Romano, com o início do Advento começa
igualmente um novo ano litúrgico. Contudo, nem sempre foi assim. Com este artigo, gostaríamos de traçar uma breve história do início do ano litúrgico.
É importante partir do princípio que nos primeiros séculos
não havia a noção de um “ano litúrgico”. Os cristãos celebravam o mistério do
Senhor, isto é, seu Mistério Pascal, em um ritmo semanal (domingo) e anual
(Páscoa).
A partir do século IV, começam a organizar-se as várias
festas litúrgicas e o tempo passa a ser contado ao redor delas. Por isso, o
“ano litúrgico” era chamado anni circulus
(ciclo anual): ele circundava as grandes festas, tendo sempre como referência central
o Mistério Pascal.
Porém, “o ano litúrgico não se formou historicamente a
partir de um plano concebido de maneira orgânica e sistemática. Por isso, não
se pode falar de organização, mas de desenvolvimento e expansão do ano
litúrgico” [2].
O início do ano primeiramente era colocado no dia 25 de
março, que segundo uma antiga tradição teria sido o dia da criação do mundo, da
Encarnação do Verbo (Anunciação do Senhor) e da Paixão. Assim o atesta um
calendário hispano-mozárabe do período:
“Octavo kalendas
Aprilis: Equinoxis verni et dies mundi primus, in qua die Dominus et conceptus
et passus est” – “Oito dias antes de abril: Equinócio da primavera e
primeiro dia do mundo; neste dia o Senhor foi concebido e padeceu” [23].
O início do ano litúrgico a 25 de março é atestado por Tertuliano
e Ambrósio, que falam da Páscoa no “primeiro mês”, bem como pela ordenação das
Quatro Têmporas neste período, designadas como os jejuns do primeiro, quarto,
sétimo e décimo meses (respectivamente: março, junho, setembro e dezembro).
Interessante notar como esta forma de calcular o tempo está
ligada à tradição judaica, que igualmente relaciona a Páscoa ao início do seu ano
litúrgico: “Este mês será para vós o princípio dos meses; será o primeiro mês
do ano” (Ex 12,2) [4].
Da mesma forma, há aqui uma relação com o calendário agrícola,
regido pelas estações. O ano inicia junto ao equinócio de primavera no
hemisfério norte, estação que marca um renascimento da natureza após o inverno.
Uma imagem forte, sempre ligada à Ressurreição de Cristo.
Apesar deste rico simbolismo, restam poucas referências a
esta forma de contar o tempo. Uma delas é o mais antigo lecionário conhecido, o
Lecionário de Wolfenbüttel (séc. VI, Gália), que apresenta um ciclo de leituras
que inicia na Vigília Pascal e conclui-se na manhã do Sábado Santo.
À medida que a festa do Natal cresce em importância nos
séculos VI-VII, e para seguir de maneira mais “didática” o ciclo dos mistérios
da vida do Senhor, os livros litúrgicos desse período passam a iniciar a
contagem do ano com o Natal. Assim o testemunham os Sacramentários gelasiano e
gregoriano, o Missale gothicum e os
Lecionários de Luxeuil e de Würzburg.
Com a organização do Advento nos séculos VIII-IX como
período de preparação para o Natal, os livros litúrgicos desde então passam a
contar o ano litúrgico a partir do I Domingo do Advento, cômputo que permanece
até hoje para os ritos ocidentais (romano, ambrosiano e hispano-mozárabe) [5].
Para concluir, é mister voltarmos à imagem que apresentamos
no início do texto: o ano litúrgico é uma estrada que sobe em espiral rumo ao
monte que é Cristo. Mais importante do que cada etapa individual do processo é
a realidade fundamental que elas circundam, isto é, o mistério de Cristo.
É preciso voltar, como indica Raniero Cantalamessa, ao
“predomínio do critério místico da concentração sobre o critério cronológico da
distribuição” [6]. Ou seja, cada ação litúrgica celebra o mistério do
Cristo em sua totalidade, como expressamos na aclamação memorial da Celebração
Eucarística:
“Anunciamos, Senhor, a
vossa morte, e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!” [7]
Notas:
[1] CASEL, Odo. O
mistério do culto no cristianismo. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2011, p. 85.
[2] BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: O ano litúrgico. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 109.
[3] RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1945, p. 676. Tradução nossa. Os dados históricos são todos tomados
desta obra (pp. 675-677).
[4] Diferentemente do calendário civil judaico, no qual o
ano começa com a festa de Rosh Hashaná, primeiro dia do mês de Tishri (entre
setembro e outubro). Na tradição judaica, este dia é compreendido como a data
da criação do mundo.
[5] Sobre o início do ano litúrgico nos ritos orientais,
trataremos no futuro em texto próprio.
[6] BERGAMINI, op.
cit., p. 106.
[7] MISSAL ROMANO, Tradução brasileira da 2ª edição típica, p. 473.
[7] MISSAL ROMANO, Tradução brasileira da 2ª edição típica, p. 473.
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