sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Homilias do Patriarca de Lisboa: Natal do Senhor

Publicamos aqui as homilias de Natal (Missa da Noite e Missa do Dia) do Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente:

Homilia na Noite de Natal
Sé de Lisboa, 24 de dezembro de 2017
"É a sua luz que unicamente nos deslumbra"

Irmãos caríssimos: Nesta noite de grande contraste entre o negrume exterior e a intensa luz do presépio os trechos bíblicos são de tal densidade que o passar dos anos e dos séculos nunca lhes tira a surpresa. Bem pelo contrário, no rodar dos tempos litúrgicos, o Natal guarda sempre uma especial fecundidade meditativa.
Impressionou-me particularmente agora a grande desproporção que o texto assinala. Vistas bem as coisas, torna-se numa ainda maior advertência. São duas frases quase seguidas, com enorme contraste. Assim: «Naqueles dias, saiu um decreto de César Augusto, para ser recenseada toda a terra». E, mais à frente: «[Maria] envolveu-O em panos e deitou-O numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria».
Os agentes são dois: César Augusto que manda recensear toda a terra e Maria – certamente com a ajuda de José – que envolve o Menino em panos e o deita na manjedoura. Abissal diferença esta, na verdade. Augusto no auge do seu império sobre todos e Maria na humildade que a define em tudo.
Em termos históricos e mundiais, nunca houvera um império assim. Os antigos impérios tinham forte preponderância étnica, religiosa e cultural da parte dos seus protagonistas e mandantes. O Império de Otávio César Augusto, sem esquecer a base romana em que nascera, ganhou nessa altura uma dimensão geográfica e cultural inédita e desenvolveu uma civilização larga e duradoura. Herdamos-lhe, além do mais, o direito e a língua.
Integrava três continentes, da Europa meridional à Ásia Menor e ao Norte de África. Quando a notícia daquele Menino que nascera e depois dera a vida pela fé que trazia se tornou em Evangelho, o Império Romano tanto se opôs ao novo culto como predispôs a sua expansão. Não por acaso Jesus mandará «dar a César o que é de César» e Paulo insistirá no respeito pela autoridade, conquanto que não se divinizasse a si própria. Mas este era já o problema do Império, que redundaria em perseguição aos discípulos de Cristo.
Não foi problema só então. Nesta mesma noite, em que passados dois milênios, celebramos entre nós e em paz o Natal de Cristo, muitos irmãos nossos arriscam a vida para o fazerem noutras latitudes, publicamente, ou mesmo discretamente. Não há grande intervalo nas notícias de perseguições e atentados, de igrejas destruídas, de prisões, maus tratos e humilhações vitimando cristãos - sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos e famílias. E quase sempre em consequência de poderes que exorbitam da sua esfera, desrespeitam consciências e discriminam por motivos religiosos. Naquele tempo não demorou muito até que os sucessores de Augusto fizessem o mesmo, de Nero a Diocleciano. E, mesmo depois e até hoje, o mal pode persistir ou voltar, apesar da crescente afirmação dos direitos humanos. Direitos que o Cristianismo também inspirou e dos quais os cristãos deveriam ter sido sempre, como devemos ser nós agora, os primeiros defensores e promotores. Porque o contraste persiste e deve persistir entre a grandeza do Império e a humildade do Natal. E deve existir em tensão criativa e humanizante. Antigas ideologias políticas, que alguma vez podem regressar, e outras mais recentes, ditas culturais mas na verdade políticas também, porque assim mesmo se pretendem impor, atuam geralmente a partir do todo que alcançam ou pretendem alcançar. Tomam o poder e põem-no ao seu serviço, reduzindo drástica ou disfarçadamente o campo dos que lhes resistem. Tão convictas de si próprias, ignoram ou desclassificam tudo o mais: tradições que persistem pela verdade, bondade e beleza que transportam; legítimas crenças religiosas que libertam o espírito e criam comunhão: tudo isto sofre e com isto sofreremos realmente todos.
As democracias desenvolveram-se como resistência a tais “impérios”. E trechos como este do nascimento de Cristo e nas condições em que aconteceu demonstram desde o início o modo imprescindível delas se sustentarem. Formulemos assim: Diante de tudo o que se queira impor de fora, servindo-se dalguma autoridade materialmente entendida e apanhada, o modo divino de intervir é como uma criança que nasce, acolhida numa família que a protege, alargando-se depois numa familiaridade nova que tem em cada um o seu polo irredutível, para respeitar, ajudar a crescer e criar verdadeira comunhão.
Ao Império de Augusto e sucessores sujeitaram-se muitos, por melhores ou piores razões. Com o tempo foram-se rarefazendo a força e a convicção, até tudo ruir sob os bárbaros. Por seu lado, àquele Menino acorreram pastores, chegaram Magos, e chegamos nós todos nesta celebração festiva. Com Ele queremos coincidir na humildade do coração, que dá todo o espaço a Deus e em Deus a cada um, novo ou idoso, saudável ou doente, forte ou fragilizado, no arco inteiro da existência, da concepção à morte natural, como ela se define. É o Presépio que congrega o mundo, não qualquer império que ultrapassasse os seus limites e se esquecesse do primeiríssimo dever de respeitar e promover a dignidade de cada pessoa humana.
Formulo ainda: Se partirmos do Império de qualquer “Augusto” que seja, corremos o risco de o contrafazer a ele próprio, num totalitarismo desumanizador. Se partimos de cada pessoa, como naquele Menino o próprio Deus quis recomeçar conosco, faremos do poder um serviço autêntico e capaz para o bem comum de todos.
Em Roma o esplendor de Augusto podia deslumbrar. Em Jerusalém, Herodes juntava grandes obras a grandes prepotências. Nestes todos reparavam e tinham forçosamente de reparar. Duraram o que duraram e, do fórum de Roma ao Muro das Lamentações, o que sobra hoje são ruínas. Em contraste, num estábulo de Belém nasceu aquele Menino, que pouco depois um mago do Oriente reconheceria como rei, oferecendo-lhe o sinal do ouro (cf. Mt 2,11).
E, de fato, Jesus anunciou e inaugurou um Reino. Trinta anos depois do seu nascimento, «começou a pregar, dizendo: “Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu”» (Mt 4,17). Mas, reparemos no contraste, este Reino é dom de Deus e exige conversão ao modo divino de ser como em Jesus inteiramente se revela. Não se impõe, senão pela verdade que transporta. Não impera, serve, com atenção prioritária aos mais pobres e frágeis. 
Não cresce por qualquer estratégia ou logística comum, pois a sua finalidade as ultrapassa em muito. Nada menos do que isto, como lemos na 2ª Carta de Pedro: «O divino poder, ao dar-nos a conhecer aquele que nos chamou pela sua glória e pelo seu poder, concedeu-nos todas as coisas que contribuem para a vida e a piedade. Com elas, teve a bondade de nos dar também os mais preciosos e sublimes bens prometidos, a fim de que – por meio deles – vos torneis participantes da natureza divina, depois de vos livrardes da corrução que a concupiscência gerou no mundo» (2Pd 1,3-4).  Reparemos, a finalidade é participarmos da natureza divina; a conversão é o contrário da concupiscência, sendo esta a vontade de captar para si tudo e todos.
Assim começa o Reino e o seu primeiro trono é o Presépio, como depois será a Cruz. Assim crescerá, como o mesmo Rei ensina: «O Reino do Céu é semelhante a um grão de mostarda que um homem tomou e semeou no seu campo. É a mais pequena de todas as sementes; mas depois de crescer, torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore, a ponto de virem as aves do céu abrigar-se nos seus ramos» (Mt 13,31-32).
Irmãos caríssimos, voltemos ao presépio desta noite, recolhamos a lição, vivamos o contraste. Na companhia de Maria e José, no círculo alargado de anjos e pastores, acolhamos a Deus no Menino assim nascido. Mantenhamo-nos com Ele, no crescimento do seu Reino, garantido por uma ressurreição que não lhe desfaz, antes reforça, o modo simples e prestável de acontecer. Em cada momento de serviço aos irmãos, um por um, lugar por lugar, com verdadeiro acolhimento e resposta, garante-se o tempo todo, pois «o amor jamais passará» (1 Cor 13,8).
É o Natal deste Reino que hoje celebramos. É a sua luz que unicamente nos deslumbra!

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Homilia do Dia de Natal
Sé de Lisboa, 25 de dezembro de 2017
"Sejamos Natal como Deus nasceu no mundo"

Em dia de Natal, caríssimos irmãos, podemos e devemos alcançar o nosso próprio “dia”, com a claridade plena e a intensidade única que assim mesmo desponta.
Os que lá foram, ao presépio de Belém, como acorreram os pastores, chamados pelos anjos, quando «foram apressadamente e encontraram Maria, José e o menino deitado na manjedoura» (Lc 2,16); os que vieram a seguir, como os magos, guiados por uma estrela, que «entrando em casa, viram o menino, com Maria, sua mãe» (Mt 2,11); o velho Simeão que, «impelido pelo Espírito, veio ao templo e, quando os pais trouxeram o menino Jesus, a fim de cumprirem o que ordenava a Lei a seu respeito, tomou nos braços o menino e bendisse a Deus» (Lc 2,27-28); logo seguido por Ana, também de idade avançada, «que não se afastava do templo» e igualmente «se pôs a louvar a Deus e a falar do menino a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém» (Lc 2,38); os que depois, com Maria e José, viram crescer Jesus, «em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens» (Lc 2,52)… Todos e cada um deles teve em tal encontro o seu dia pleno, mais ou menos conscientemente esperado, certamente assim acontecido. 
Facto especialmente retomado no Quarto Evangelho, onde cada verdadeiro encontro com Jesus marca um dia. Os primeiros discípulos «ficaram com Ele nesse dia» (Jo 1,39), jamais esquecido nem ultrapassado. O encontro com a samaritana, em que Jesus se revela como Cristo, dá-se «por volta do meio-dia» (Jo 4,6), no máximo esplendor solar.
Deixai-me adiantar e até dizer por todos os que aqui nos encontramos, que algo de semelhante certamente aconteceu conosco, que celebramos o Natal de Jesus. Também nós tivemos anjos, estrelas e sobretudo o Espírito que nos trouxe a Cristo, como, agora ressuscitado, plenifica a sua presença no mundo, em múltiplos sinais de palavra, gesto e encontro. Dizer anjos é dizer mensageiros, dizer estrela é dizer luz, dizer Espírito é reconhecer que só Deus nos atrai a Deus, que Se manifesta em Jesus Cristo. Como ele mesmo disse: «Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não atrair; e Eu hei de ressuscita-lo no último dia» (Jo 6,44). Sim, no último dia em que já começamos a amanhecer, cumprindo-se finalmente tudo o que se havia de cumprir. Ouvimo-lo há pouco no admirável trecho da Epístola aos Hebreus, onde quase se enuncia toda a teologia cristã, propriamente dita: «Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo».
Agradeçamos, irmãos, agradeçamos hoje e sempre, a quem para nós foi e continua a ser anjo e estrela, que nos chamam ao encontro de Jesus e nos iluminam o caminho e o local. Agradeçamos a Deus Pai, que nos envolve no Amor com que ama o Filho - e o Filho plenamente Lhe retribui, numa única Vida que assim mesmo circula, se expande e nos inclui a nós. 
“A nós”, repito e deixai-me insistir. O Deus comunhão revela-se como comunhão – Jesus e o Pai na união do Espírito –, celebra-se em comunhão e vive-se em comunhão. Importa relembrar a advertência final do prólogo do Quarto Evangelho, que acabamos de escutar: «A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigênito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer». 
Desistamos de vez de imaginar a Deus, pois nunca sairíamos de nós próprios, das nossas ilusões ou dos nossos fantasmas. Com grande desperdício de tempo e com grande prejuízo dos outros. O Natal de Cristo dá-nos o «Emanuel, que quer dizer “Deus conosco”» (Mt 1,23). Nasce de Maria e é adotado por José; logo reúne céu e terra, anjos e pastores; gente de perto e gente de longe, como os magos. Cresce em Nazaré, entre familiares e vizinhos; e vai à sinagoga cada sábado, «segundo o seu costume» (Lc 4,16). Ensina-nos a rezar ao Pai, que é precisamente “nosso” e não só de cada um, como o pão e o perdão são para todos e de todos para todos. E a própria oração comunitária, da família à Igreja, é momento por excelência de sentirmos a sua presença, assim prometida: «Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt 18,20).
Sim, irmãos, como ouvimos: «O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós». Mantenhamos o sentimento, a convicção e a prática neste “dia” definitivo. Tão eterno como «o eterno nascido de ainda agora» (Padre Manuel Bernardes) no constante presépio do mundo, onde não estaremos sós à sua volta. Teremos nas nossas casas e nas nossas ruas, nas nossas ocupações e visitas, nas nossas comunidades e grupos, ocasiões constantes de Natal a sério. E não apenas com o que naturalmente nos agrada e afinal aprisiona. Mas com o mais carente de companhia e apoio, com o mais diverso de proveniência ou condição, mesmo com o mais inesperado ou incômodo. Como Deus se encontrou conosco em Cristo, do presépio à cruz, e só por este caminho estreito se alargou em Páscoa.  
Assim permaneçamos uns com os outros e uns para os outros. Não esqueçamos outra advertência, como é feita na 1ª Carta de João, quase ecoando o prólogo do seu Evangelho: «Amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor» (1Jo 4,7-8).
Conhece e experiencia Deus quem sai de si para bem dos outros, como Jesus veio ao nosso encontro, para bem de todos. Aí encontramos o nosso “dia” de Natal, no nascimento recíproco que com Cristo nos oferece ao mundo. E o segredo, que é também a essência divina, é como revelou a Nicodemos: «Tanto amou Deus o mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigênito, a fim de que todo o que crê nele não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16).
Na verdade, irmãos caríssimos, este dia é santo de mais para o reduzirmos a exterioridades ou consumos. Sejamos Natal como Deus nasceu no mundo. Façamos Natal como o mundo O espera.

+ Manuel, Cardeal-Patriarca


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