quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Jesus Cristo 16

Com suas Catequeses nn. 25-26 sobre Jesus Cristo, o Papa São João Paulo II deu início à seção sobre o Filho como “verdadeiro Deus”.

Para acessar a postagem introdutória, com os links para todas as Catequeses, clique aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO

III. Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem

B. Jesus Cristo, verdadeiro Deus

25. Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem
João Paulo II - 26 de agosto de 1987

1. “Creio... em Jesus Cristo, seu único Filho (de Deus Pai), nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, nasceu da Virgem Maria”. O ciclo de Catequeses sobre Jesus Cristo, que aqui desenvolvemos, faz constante referência à verdade expressa nas palavras do Símbolo Apostólico que acabamos de citar. Essas nos apresentam Cristo como verdadeiro Deus, Filho do Pai, e, ao mesmo tempo, como verdadeiro Homem, Filho da Virgem Maria. As Catequeses anteriores já nos permitiram aproximar-nos a esta verdade fundamental da fé. Agora, porém, devemos buscar aprofundar seu conteúdo essencial: devemos perguntar-nos o que significa “verdadeiro Deus e verdadeiro Homem”. Esta é uma realidade que se desvela diante dos olhos da nossa fé mediante a autorrevelação de Deus em Jesus Cristo. E dado que esta - como qualquer outra verdade revelada - só pode ser retamente acolhida mediante a fé, entra aqui em jogo o “rationabile obsequium fidei”, o obséquio racional da fé. As próximas Catequeses, centradas no mistério do Deus-Homem, querem favorecer uma fé assim.

Jesus Cristo (Bertel Thorvaldsen)

2. Já vimos anteriormente que Jesus falava muitas vezes de si mesmo utilizando o apelativo de “Filho do homem” (cf. Mt 16,28; Mc 2,28). Tal título estava vinculado à tradição messiânica do Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, respondia àquela “pedagogia da fé” à qual Jesus recorria deliberadamente. Ele, com efeito, desejava que os seus discípulos e os seus ouvintes descobrissem por si mesmos que o “Filho do homem era ao mesmo tempo o verdadeiro Filho de Deus. Temos uma demonstração particularmente significativa disso na profissão de fé de Simão Pedro próximo a Cesareia de Filipe, à qual já nos referimos nas Catequeses anteriores. Jesus provoca os Apóstolos com perguntas, e quando Pedro atinge o reconhecimento explícito da sua identidade divina, confirma seu testemunho chamando-o “bem-aventurado”, “porque não foi carne nem sangue que te revelaram isso, mas meu Pai” (Mt 16,17). É o Pai que dá testemunho do Filho, porque só Ele conhece o Filho (cf. Mt 11,27).

3. No entanto, apesar da discrição à qual Jesus se atinha, aplicando aquele princípio pedagógico do qual falamos, a verdade da sua filiação divina se tornava cada vez mais evidente, a partir do que El dizia e, particularmente, do que fazia. Mas, enquanto para uns isso constituía objeto de fé, para outros era causa de contradição e de acusação. Isto se manifestou de forma definitiva durante o processo diante do Sinédrio. Narra o Evangelho de Marcos: “O sumo sacerdote tornou a perguntar: ‘És tu o Cristo, o Filho do Deus Bendito?’. Jesus respondeu: ‘Eu sou. E vereis o Filho do homem sentado à direita do Poderoso, vindo sobre as nuvens do céu’” (Mc 14,61-62). No Evangelho de Lucas a pergunta é formulada assim: “‘Tu és, portanto, o Filho de Deus?’. Jesus respondeu: ‘Vós mesmos estais dizendo que Eu o sou’” (Lc 22,70).

4. A reação dos presentes é unânime: “Blasfemou! (...) Ouvistes agora a blasfêmia. (...) É réu de morte!” (Mt 26,65-66). Esta acusação é, por dizer assim, fruto de uma interpretação material da lei antiga.
Lemos, com efeito, no Livro do Levítico: “Quem blasfemar contra o nome do Senhor, será morto. A comunidade toda o apedrejará” (Lv 24,16). Jesus de Nazaré, que diante dos representantes oficiais do Antigo Testamento declara ser o verdadeiro Filho de Deus, pronuncia - segundo a convicção deles - uma blasfêmia. Por isso “é réu de morte”, e a condenação é executada, embora não com o apedrejamento, segundo a disciplina veterotestamentária, mas com a crucificação, segundo a legislação romana. Chamar-se “Filho de Deus” significava “fazer-se Deus” (cf. Jo 10,33), o que suscitava um protesto radical por parte dos guardiões do monoteísmo do Antigo Testamento.

5. O que ao final se cumpriu no processo instaurado contra Jesus na realidade já havia sido objeto de ameaça, como referem os Evangelhos, particularmente o de João. Lemos que em mais de uma ocasião os ouvintes queriam apedrejar Jesus, quando o que ouviam de sua boca lhes parecia uma blasfêmia. Identificaram tal blasfêmia, por exemplo, em suas palavras sobre o tema do Bom Pastor (cf. Jo 10,27.29), e na conclusão a que Ele chegou nessa ocasião: “Eu e o Pai somos um” (v. 30). O relato evangélico prossegue assim: “De novo, os judeus apanharam pedras para apedrejá-lo. Jesus, porém, lhes disse: ‘Eu vos mostrei muitas boas obras da parte do Pai. Por qual delas quereis me apedrejar?’. Os judeus responderam: ‘Não queremos apedrejar-te por uma boa obra, mas por causa da blasfêmia, pois tu, sendo apenas homem, te fazes Deus” (vv. 31-33).

6. Análoga foi a reação a estas outras palavras de Jesus: “Antes que Abraão existisse, Eu sou” (Jo 8,58). Também aqui Jesus se encontrava diante de uma pergunta e uma acusação idênticas: “Quem pretendes ser?” (v. 53), e a resposta a tal pergunta teve como consequência a ameaça de apedrejamento (cf. v. 59).

Está claro, pois, que embora Jesus falasse de si mesmo sobretudo como “Filho do homem”, todo o conjunto do que fazia e ensinava dava testemunho de que Ele era o Filho de Deus no sentido literal da palavra: isto é, que era um só com o Pai e, portanto, como o Pai, também Ele era Deus. O conteúdo unívoco deste testemunho é comprovado tanto pelo fato de que Ele foi reconhecido e escutado por uns: “muitos creram n’Ele” (cf., por exemplo, Jo 8,30); como, ainda mais, pelo fato de ter encontrado em outros uma oposição radical, e mesmo a acusação de blasfêmia, unida à disposição de lhe infligir a pena prevista para os blasfemos segundo a Lei do Antigo Testamento.

7. Entre as afirmações de Cristo relativas a este tema, é particularmente significativa a expressão Eu sou. O contexto em que é pronunciada indica que Jesus remete aqui à resposta dada pelo próprio Deus a Moisés, quando interrogado a respeito do seu nome: “Eu sou aquele que sou... Assim responderás aos israelitas: ‘Eu sou enviou-me a vós” (Ex 3,14). Cristo usa a mesma expressão - “Eu sou” - em contextos muito significativos, como aquele do qual falamos, a respeito de Abraão (“Antes que Abraão existisse, Eu sou”), mas não só este. Assim, por exemplo: “Se não crerdes que Eu sou, morrereis nos vossos pecados (Jo 8,24); e também: “Quando tiverdes levantado o Filho do homem, então sabereis que ‘Eu sou’” (v. 28); e ainda: “Desde agora, antes que aconteça, Eu vo-lo digo, para que, quando acontecer, creiais que Eu sou’” (Jo 13,19).

Este “Eu sou” se encontra também em outros lugares, presentes nos Evangelhos Sinóticos (por exemplo: Mt 28,20; Lc 24,39); mas nas afirmações citadas sobre o uso do Nome de Deus, próprio do Livro do Êxodo, aparece particularmente límpido e firme. Cristo fala da sua “elevação” pascal mediante a Cruz e a sucessiva Ressurreição: “Então sabereis que ‘Eu sou’”; o que quer dizer: então se manifestará plenamente que Eu sou aquele ao qual corresponde o Nome de Deus. Com tal expressão, portanto, Jesus indica que é o verdadeiro Deus. E antes ainda da sua Paixão Ele roga ao Pai assim: “Tudo o que é meu é teu; e tudo o que é teu, é meu” (Jo 17,10), que é outro modo de afirmar: “Eu e o Pai somos um” (Jo 10,30).
Diante de Cristo, Verbo de Deus encarnado, unamo-nos também nós a Pedro e repitamos com a mesma elevação de fé: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16).

26. Jesus Cristo, Verbo eterno de Deus
João Paulo II - 02 de setembro de 1987

1. Na Catequese anterior dedicamos particular atenção às afirmações nas quais Cristo fala de si mesmo utilizando a expressão “Eu sou”. O contexto no qual tais afirmações aparecem, sobretudo no Evangelho de João, nos permite pensar que, ao recorrer a essa expressão, Jesus faz referência ao Nome com o qual o Deus da antiga aliança qualifica a si mesmo diante de Moisés, no momento de confiar-lhe a missão à qual era chamado: “Eu sou aquele que sou... Assim responderás aos israelitas: ‘Eu sou’ enviou-me a vós” (Ex 3,14).

Jesus fala de si mesmo desse modo, por exemplo, no âmbito da discussão sobre Abraão: “Antes que Abraão existisse, Eu sou” (Jo 8,58). Esta expressão nos permite compreender que o “Filho do Homem” dá testemunho da sua divina preexistência. E tal afirmação não é isolada.

2. Mais de uma vez Cristo fala do mistério da sua Pessoa, e a expressão mais sintética parece ser esta: “Saí do Pai e vim ao mundo. De novo, deixo o mundo e vou para o Pai” (Jo 16,28). Jesus dirige estas palavras aos Apóstolos no discurso de despedida, na véspera dos acontecimentos pascais. Elas indicam claramente que, antes de vir ao mundo, Cristo “estava” junto ao Pai como Filho; indicam, pois, sua preexistência em Deus. Jesus dá a entender claramente que a sua existência terrena não pode ser separada de tal preexistência em Deus. Sem ela a sua realidade pessoal não pode ser corretamente entendida.

3. Expressões semelhantes são numerosas. Quando Jesus alude à sua vinda do Pai ao mundo, suas palavras geralmente fazem referência à sua preexistência divina. Isto é particularmente claro no Evangelho de João. Jesus diz diante de Pilatos: “Eu nasci e vim ao mundo para isto: para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37); e talvez não seja sem importância o fato de que Pilatos lhe pergunte mais tarde: “De onde és tu?” (Jo 19,9). Antes ainda lemos: “Meu testemunho é verdadeiro, porque sei de onde venho e para onde vou” (Jo 8,14). A propósito desse “De onde és tu?”, no diálogo noturno com Nicodemos podemos ouvir uma significativa declaração: “Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu: o Filho do homem” (Jo 3,13). Esta “vinda” do céu, do Pai, indica a “preexistência” divina de Cristo também em relação com a sua “partida”: “Que será, então, quando virdes o Filho do homem subir para onde estava antes?” (Jo 6,62), pergunta Jesus no contexto do “discurso eucarístico” próximo a Cafarnaum.

4. Toda a existência terrena de Jesus como Messias deriva-se daquele “antes” e a ele se reconecta como a uma “dimensão” fundamental, segundo a qual o Filho é “um só” com o Pai. Quão eloquentes são, desse ponto de vista, as palavras da “oração sacerdotal” no Cenáculo: “Eu te glorifiquei na terra levando a termo a obra que me deste a fazer. E agora, Pai, glorifica-me junto de ti mesmo, com a glória que Eu tinha, junto de ti, antes que o mundo existisse” (Jo 17,4-5).

Também nos Evangelhos Sinóticos se fala em muitas passagens da “vinda” do Filho do homem para a salvação do mundo (cf., por exemplo, Lc 19,10; Mc 10,45; Mt 20,28); no entanto, os textos de João contêm uma referência particularmente clara à preexistência de Cristo.

5. A síntese mais plena desta verdade está contida no Prólogo do Quarto Evangelho. Podemos dizer que nesse texto a verdade sobre a preexistência divina do Filho do homem adquire uma ulterior explicitação, em certo sentido definitiva: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Tudo foi feito por meio d’Ele... N’Ele havia vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz brilha nas trevas, e as trevas não a dominaram” (Jo 1,1-5).

Nestas frases o evangelista confirma aquilo que Jesus dizia de si mesmo quando declarava: “Saí do Pai e vim ao mundo” (Jo 16,28), ou então quando rogava que o Pai o glorificasse com a glória que tinha junto a Ele antes que o mundo existisse (cf. Jo 17,5). Ao mesmo tempo, a preexistência do Filho no Pai está estreitamente vinculada com a revelação do mistério trinitário de Deus: o Filho é o Verbo eterno, é “Deus de Deus”, da mesma natureza do Pai (como expressará o Concílio de Niceia no Símbolo da fé). A fórmula conciliar reflete precisamente o Prólogo de João: “O Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Afirmar a preexistência de Cristo no Pai equivale a reconhecer sua divindade. À sua natureza (substância), assim como à natureza do Pai, pertence a eternidade. Isto é indicado com a referência à preexistência eterna no Pai.

6. O Prólogo de João, mediante a revelação da verdade sobre o Verbo, constitui como que o definitivo complemento daquilo que já o Antigo Testamento havia dito sobre a Sabedoria. Vejam-se, por exemplo, as seguintes afirmações: “Desde o princípio, antes de todos os séculos, fui criada e até o mundo futuro não deixarei de existir” (Eclo 24,14); “Aquele que me criou marcou o lugar de repouso na minha tenda e me disse: ‘Habita em Jacó...’” (vv. 12-13). A Sabedoria sobre a qual fala o Antigo Testamento, é uma criatura e, ao mesmo tempo, possui atributos que a colocam acima de todo o criado”: “Embora sendo uma só, tudo pode; permanecendo imutável, tudo renova” (Sb 7,27).

A verdade sobre o Verbo contida no Prólogo de João em certo sentido confirma a revelação acerca da sabedoria presente no Antigo Testamento e, ao mesmo tempo, a transcende de modo definitivo. O Verbo não só “está com Deus”, mas “é Deus”. Ao vir a este mundo na pessoa de Jesus Cristo, o Verbo “vem para o que era seu”, uma vez que “o mundo foi feito por meio d’Ele” (cf. Jo 1,10-11). Veio “aos seus” porque é “a luz verdadeira que a todos ilumina” (cf. v. 9). A autorrevelação de Deus em Jesus Cristo consiste nesta “vinda” ao mundo do Verbo, que é o Filho eterno.

7. “O Verbo se fez carne e veio morar entre nós, e nós contemplamos a sua glória, glória como do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade” (Jo 1,14). Digamo-lo mais uma vez: o Prólogo de João é o eco eterno das palavras que Jesus diz: “Saí do Pai e vim ao mundo” (Jo 16,28), e daquelas com as quais roga que o Pai o glorifique com a glória que tinha junto a Ele antes que o mundo existisse (cf. Jo 17,5). O evangelista tem diante dos olhos a revelação veterotestamentária acerca da Sabedoria e, ao mesmo tempo, todo o acontecimento pascal: a partida mediante a Cruz e a Ressurreição, na qual a verdade sobre Cristo, Filho do homem e verdadeiro Deus, se fez completamente clara a quantos foram suas testemunhas oculares.

8. Em estreita relação com a revelação do Verbo, isto é, com a divina preexistência de Cristo, encontra confirmação também a verdade sobre o Emmanuel. Esta palavra - que em tradução literal significa “Deus conosco” - expressa uma presença particular e pessoal de Deus no mundo. Aquele “Eu sou” de Cristo manifesta justamente esta presença já anunciada por Isaías (cf. Is 7,14), proclamada seguindo os passos do profeta no Evangelho de Mateus (cf. Mt 1,23) e confirmada no Prólogo de João: “O Verbo se fez carne e veio morar entre nós” (Jo 1,14). A linguagem dos evangelistas é multiforme, mas a verdade que eles expressam é a mesma. Nos Sinóticos Jesus pronuncia seu Eu estou convosco” particularmente nos momentos difíceis (como, por exemplo, Mt 14,27; Mc 6,50; Jo 6,20), por ocasião da tempestade acalmada, assim como na perspectiva da missão apostólica da Igreja: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20).

9. A expressão de Cristo: “Saí do Pai e vim ao mundo” (Jo 16,28) contém um significado salvífico, soteriológico. Todos os evangelistas o manifestam. O Prólogo de João o expressa nas palavras: “A quantos o receberam (o Verbo), deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus”, isto é, a possibilidade de ser gerados de Deus (cf. Jo 1,12-13).

Esta é a verdade central de toda a soteriologia cristã, organicamente vinculada com a realidade revelada do Deus-Homem. Deus se fez homem a fim de que o homem pudesse participar realmente da vida de Deus, mais ainda, pudesse chegar a ser, em certo sentido, “Deus”. Já os antigos Padres da Igreja tinham clara consciência disso. Basta recordar Santo Irineu, que, exortando a seguir a Cristo, único Mestre verdadeiro e seguro, afirmava: “Por seu imenso amor Ele se fez o que nós somos, para nos dar a possibilidade de ser o que Ele é” (Adversus haereses, V, Prefácio).
Esta verdade nos abre horizontes ilimitados, nos quais situar a expressão concreta da nossa vida cristã, à luz da fé em Cristo, Filho de Deus, Verbo do Pai.

Ícone de Cristo Salvador

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (26 de agosto e 02 de setembro de 1987).

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