quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 25

Dentro das suas Catequeses sobre Deus Pai, após as seções sobre “a criação do mundo e do homem” (nn. 24-32) e sobre “a Divina Providência” (nn. 33-41), o Papa São João Paulo II dedicou seis encontros a Deus como “Criador das coisas invisíveis”, isto é, dos anjos (nn. 42-47).

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

1.2 DEUS CRIADOR E PROVIDENTE

III. Os anjos e os demônios (nn. 42-47)

42. “Criador das coisas visíveis e invisíveis”
João Paulo II - 09 de julho de 1986

1. Não poderíamos concluir nossas catequeses sobre Deus, Criador do mundo, sem dedicar a adequada atenção a um conteúdo preciso da Revelação divina: a criação dos seres puramente espirituais, que a Sagrada Escritura chama “anjos”. Tal criação aparece claramente nos Símbolos da Fé, particularmente no Símbolo Niceno-Constantinopolitano: “Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas (isto é, entes ou seres) visíveis e invisíveis”. Sabemos que o homem possui, dentro da criação, uma posição singular: graças ao seu corpo pertence ao mundo visível, enquanto por sua alma espiritual, que vivifica o corpo, ele se encontra quase nos confins entre a criação visível e a invisível. A esta última, segundo o Credo que a Igreja professa à luz da Revelação, pertencem outros seres, puramente espirituais, e, portanto, não próprios do mundo visível, ainda que presentes e atuantes nele. Eles constituem um mundo específico.

Deus Pai rodeado por anjos (Bernardino Poccetti)

2. Hoje, como nos tempos passados, se discute com maior ou menor sabedoria sobre estes seres espirituais. É preciso reconhecer que às vezes a confusão é grande, com o consequente risco de fazer passar como fé da Igreja sobre os anjos coisas que não pertencem à fé ou, ao contrário, de deixar de lado algum aspecto importante da verdade revelada. A existência dos seres espirituais, que a Sagrada Escritura chama habitualmente “anjos”, era negada já nos tempos de Cristo pelos saduceus (cf. At 23,8). Negam-na também os materialistas e os racionalistas de todos os tempos. No entanto, como agudamente observa um teólogo moderno, “se quiséssemos nos livrar dos anjos, deveríamos revisar radicalmente a própria Sagrada Escritura, e com ela toda a história da salvação” (A. Winklhofer, Die Welt der Engel, Ettal, 1961, p. 144, nota 2; in: Mysterium salutis, II, 2, p. 726). A Tradição é unânime sobre esta questão. O Credo da Igreja, no fundo, é um eco daquilo que Paulo escreve aos colossenses: “Pois é n’Ele [Cristo] que foram criadas todas as coisas, no céu e na terra, os seres visíveis e os invisíveis, tronos, dominações, principados, potestades; tudo foi criado por Ele e para Ele” (Cl 1,16). Ou seja: Cristo que, como Filho-Verbo eterno e consubstancial ao Pai, é “primogênito de toda criação” (Cl 1,15), está no centro do universo como razão e pedra angular de toda a criação, como já vimos nas catequeses anteriores e como ainda veremos quando falarmos mais diretamente d’Ele.

3. A referência ao “primado” de Cristo nos ajuda a compreender que a verdade sobre a existência e a ação dos anjos (bons e maus) não constitui o conteúdo central da Palavra de Deus. Na Revelação Deus fala em primeiro lugar “aos homens... e convive com eles (Br 3,38) a fim de convidá-los à comunhão com Ele e de nela os acolher”, como lemos na Constituição Dei Verbum do Concílio Vaticano II (n. 2). Assim, “a verdade mais profunda acerca de Deus e da salvação dos homens” é o conteúdo central da Revelação, que “resplandece” mais plenamente na pessoa de Cristo (ibid.). A verdade sobre os anjos é, em certo sentido, “colateral”, embora inseparável da Revelação central, que é a existência, a majestade e a glória do Criador que refulgem em toda a criação, “visível e invisível”, e na ação salvífica de Deus na história do homem. Os anjos não são, pois, criaturas de primeiro plano na realidade da Revelação, embora pertençam plenamente a ela, tanto que em alguns momentos os vemos cumprir missões fundamentais em nome do próprio Deus.

4. Tudo o que pertence à criação entra, segundo a Revelação, no mistério da Divina Providência. Afirma-o de modo exemplarmente conciso o Concílio Vaticano I, que já citamos muitas vezes: “Tudo o que criou, Deus o conserva e governa com sua Providência ‘alcançando com força de uma extremidade a outra, e dispondo com suavidade todas as coisas’ (cf. Sb 8,1). Pois ‘tudo está nu e descoberto aos seus olhos’ (cf. Hb 4,13), mesmo o que há de acontecer por livre ação das criaturas” (Denzinger, n. 3003). A Providência abrange, portanto, também o mundo dos espíritos puros, que ainda mais plenamente que os homens são seres racionais e livres. Na Sagrada Escritura encontramos preciosas indicações a respeito. Há inclusive a revelação de um drama misterioso, mas real, que afetou estas criaturas angélicas, sem que nada escapasse à eterna Sabedoria, a qual com força (fortiter) e ao mesmo tempo com bondade (suaviter) leva tudo a cumprimento no reino do Padre e do Filho e do Espírito Santo.

5. Reconheçamos antes de tudo que a Providência, como amorosa Sabedoria de Deus, manifestou-se precisamente no criar seres puramente espirituais, através dos quais a semelhança de Deus poderia ser melhor expressa, a qual supera em muito tudo o que foi criado no mundo visível junto com o homem, também ele imagem indelével de Deus. Deus, que é Espírito absolutamente perfeito, se reflete sobretudo nos seres espirituais que, por natureza - isto é, por causa da sua “espiritualidade” - estão muito mais próximos d’Ele que as criaturas materiais e que constituem quase que o “ambiente” mais próximo ao Criador. A Sagrada Escritura oferece um testemunho bastante explícito desta máxima proximidade a Deus dos anjos, dos quais fala, em linguagem figurada, como do “trono” de Deus, dos seus “exércitos”, do seu “céu”. A Escritura inspirou a poesia e a arte dos séculos cristãos, que nos apresentam os anjos como a “corte de Deus”.

43. “Criador dos anjos, seres livres”
João Paulo II - 23 de julho de 1986

1. Prosseguimos hoje nossa catequese sobre os anjos, cuja existência, desejada por um ato do amor eterno de Deus, professamos com as palavras do Símbolo Niceno-Constantinopolitano: “Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”.
Na perfeição da sua natureza espiritual, os anjos são chamados desde o princípio, em virtude da sua inteligência, a conhecer a verdade e a amar o bem que conhecem na verdade de modo muito mais pleno e perfeito do que é possível ao homem. Este amor é o ato de uma vontade livre, pois também para os anjos a liberdade significa possibilidade de fazer uma escolha a favor ou contra o bem que conhecem, isto é, Deus mesmo. É preciso repetir aqui o que já recordamos a respeito do homem: criando os seres livres, Deus quer que no mundo se realize aquele amor verdadeiro que só é possível sobre a base da liberdade. Ele quis, pois, que a criatura, constituída à imagem e semelhança do seu Criador, pudesse, da forma mais plena possível, tornar-se semelhante a Ele, Deus, que “é amor” (1Jo 4,16). Criando os espíritos puros como seres livres, Deus, em sua Providência, não podia não prever também a possibilidade do pecado dos anjos. Mas justamente porque a Providência é eterna sabedoria que ama, Deus soube tirar da história deste pecado, incomparavelmente mais radical enquanto pecado de um espírito puro, o definitivo bem de todo o cosmos criado.

2. De fato, como diz claramente a Revelação, o mundo dos espíritos puros aparece dividido entre bons e maus. Pois bem, esta divisão não se realizou por criação de Deus, mas em base à liberdade própria da natureza espiritual de cada um deles. Realizou-se mediante a escolha, que para os seres puramente espirituais possui um caráter incomparavelmente mais radical que a do homem e é irreversível, dado o grau de intuição e de penetração do bem do qual está dotada sua inteligência. A este respeito se deve dizer também que os espíritos puros foram submetidos a uma prova de caráter moral. Foi uma escolha decisiva, concernente antes de tudo a Deus mesmo, um Deus conhecido de modo mais essencial e direto do que é possível ao homem, um Deus que a esses seres espirituais havia feito o dom, antes que ao homem, de participar da sua natureza divina.

3. No caso dos espíritos puros a escolha decisiva diz respeito antes de tudo a Deus mesmo, primeiro e supremo Bem, aceitado ou rejeitado de um modo mais essencial e direto do que poderia acontecer no raio de ação da livre vontade do homem. Os espíritos puros possuem um conhecimento de Deus incomparavelmente mais perfeito que o homem, porque com a potência da sua inteligência, não condicionada nem limitada pela mediação do conhecimento sensível, veem até o fundo a grandeza do Ser infinito, da primeira Verdade, do sumo Bem. A esta sublime capacidade de conhecimento dos espíritos puros Deus ofereceu o mistério da sua divindade, tornando-os assim participantes, mediante a graça, da sua infinita glória. Justamente porque seres de natureza espiritual, há em seu intelecto a capacidade, o desejo desta elevação sobrenatural à qual Deus lhes havia chamado, para fazer deles, muito antes do homem, “participantes da natureza divina” (cf. 2Pd 1,4), participantes da vida íntima d’Aquele que é Pai e Filho e Espírito Santo, d’Aquele que, na comunhão das três Pessoas Divinas, “é Amor” (1Jo 4,16). Deus havia admitido todos os espíritos puros, antes e em maior grau do que o homem, à eterna comunhão do amor.

4. A escolha realizada sobre a base da verdade de Deus, conhecida de forma superior dada a lucidez de suas inteligências, dividiu também o mundo dos espíritos puros em bons e maus. Os bons escolheram Deus como Bem supremo e definitivo, conhecido à luz da inteligência iluminada pela Revelação. Ter escolhido Deus significa que se voltaram a Ele com toda a força interior de sua liberdade, força que é amor. Deus se tornou o total e definitivo objetivo da sua existência espiritual.
Os outros, ao contrário, “deram as costas” a Deus, contra a verdade do conhecimento que indicava n’Ele o Bem total e definitivo. Escolheram contra a Revelação do mistério de Deus, contra a sua graça que os fazia participantes da Trindade e da eterna amizade com Deus na comunhão com Ele mediante o amor. Baseando-se em sua liberdade criada, fizeram uma escolha radical e irreversível, igual àquela dos anjos bons, mas diametralmente oposta: no lugar de uma aceitação de Deus plena de amor, opuseram-lhe uma recusa inspirada por um falso sentido de autossuficiência, de aversão e mesmo de ódio que se transformou em rebelião.

5. Como compreender tal oposição e rebelião a Deus em seres dotados de uma inteligência tão viva e enriquecidos com tanta luz? Qual será o motivo de tal radical e irreversível opção contra Deus, desse ódio tão profundo que pode aparecer como fruto da loucura? Os Padres da Igreja e os teólogos não hesitam em falar de “cegueira” produzida pela supervalorização da perfeição do próprio ser, levada ao ponto de “obscurecer” a supremacia de Deus, que exigia em troca um ato de dócil e obediente submissão. Tudo isto parece expresso de modo conciso nas palavras “Não servirei!” (Jr 2,20), que manifestam a radical e irreversível recusa em tomar parte na edificação do reino de Deus no mundo criado. “Satanás”, o espírito rebelde, quer seu próprio reino, não o de Deus, e se ergue como primeiro “adversário” do Criador, como opositor da Providência, como antagonista da amorosa sabedoria de Deus. Da rebelião e do pecado de Satanás, como também daquele do homem, devemos concluir acolhendo a sábia experiência da Escritura, que afirma: “No orgulho está a perdição” (Tb 4,13).

Deus Pai rodeado por anjos (Pietro Perugino)

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (09 de julho e 23 de julho de 1986). 

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