O ministério do olhar
Caros irmãos e amigos:
Reúne-nos hoje a ordenação episcopal de D. José Tolentino.
Palavra bela, esta de “reunião”, pois, mais ou menos conhecidos entre nós, já
ele nos conhece de algum modo a todos e por seu motivo nos encontramos aqui. O
olhar reúne e um olhar amigo não exclui ninguém, nem nada de ninguém.
Do muito que acabamos de ouvir nos textos proclamados [1],
deixai-me fixar num passo só: «Erguendo os olhos e vendo uma grande multidão
que vinha ao seu encontro, Jesus disse a Filipe: “Onde havemos de comprar pão
para lhes dar de comer?”» Ergue os olhos, vê a multidão e questiona o
discípulo: De nada mais precisamos para estarmos lá e nos revermos agora, a nós
e ao ordinando de bispo. Erguer os olhos é tão próprio de Jesus que identifica
o seu modo de ser com o seu modo de ver. Não se trata tanto de altitude, como
de profundidade. Não perde os olhos na distância, fixa-os em quem se aproxima e
assim mesmo os eleva.
Jesus ergue os olhos e leva-nos na mesma direção. Aprecia
tudo inteiramente, pois de tudo fala como o Pai lhe ensinou (cf. Jo 8,28); vê
tudo em relação ao fim, pois apenas vale o que nos faz viver, a nós e aos
outros (cf. Mt 11,26). E não descuida momento algum, porque nele se joga o
tempo todo e num copo de água que se ofereça já vai a recompensa garantida.
Também por isso, o seguimento de Cristo se chamou “iluminação”. Assim se diz a
propósito do batismo e assim deve notar-se no olhar dos batizados. Agora aqui,
numa ordenação episcopal, cabe lembrar que o étimo de “bispo” indica olhar
cuidadoso e vígil.
Quando Jesus ergueu os olhos naquele dia, não os alongou num
céu indistinto. Fixou-os, isso sim, naqueles muitos que vinham ao seu encontro.
E a pergunta que logo fez também não podia ser mais concreta: «Onde havemos de
comprar pão para lhes dar de comer?»
Nesse e noutros passos, os quatro Evangelhos são
especialmente concordes no olhar de Cristo sobre as multidões, tão claro tinha
ficado. É esse olhar que determina o que faz a seguir, em várias circunstâncias
mas sempre no mesmo sentido de cuidado e resposta. Por exemplo, em Mateus:
«Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e
abatida, como ovelhas sem pastor. Disse então aos seus discípulos: “A messe é
grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, portanto ao Senhor da messe
para que envie trabalhadores para sua messe”» (Mt 9,36-38). Em Marcos: «Ao
desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram
como ovelhas sem pastor. Começou, então, a ensinar-lhes muitas coisas» (Mc 6,34).
Ou em Lucas: «Jesus retirou-se para um lugar afastado […]. Mas as multidões,
que tal souberam, seguiram-no. Jesus acolheu-as e pôs-se a falar-lhes do Reino
de Deus, curando os que necessitavam» (Lc 9,10-11). E assim também em João, no
passo que comentamos.
O olhar de Jesus entrevê o Pai nos olhos de quem chega. Nem
podia ser diferentemente, como diz outro trecho joânico: «… aquele que não ama
o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E nós recebemos
dele [Cristo] este mandamento: quem ama a Deus, ame também o seu irmão» (1Jo 4,20-21).
É a religião de Deus na religião de todos, no sentido mais alto que a palavra
tem, de “ligação” refeita e perfeita. Momento a momento e caso a caso, no mais
comezinho e translúcido acontecer das coisas.
Ao olhar de Jesus se refere D. José Tolentino muitas vezes,
na fecunda escrita que nos tem oferecido e continuará decerto a oferecer. Do
Quarto Evangelho, precisamente, diz ser «o Evangelho da fé porque é também o
Evangelho do olhar» (José Tolentino Mendonça, A mística do instante. O tempo e
a promessa, Prior Velho, Paulinas, 2014, p. 186). Fazendo-nos ver Jesus como
Filho de Deus, faz-nos ver a tudo na mesma luz também. A luz que brilhava nos
seus olhos erguidos. Uma decisiva pedagogia do olhar, adianta o novo bispo:
«Reparemos na pedagogia de Jesus: “Olhai as aves do céu”, “olhai os lírios”. É
o estilo de Jesus que impressiona, porque revela o que Ele é. Jesus não diz:
olhai para a pessoa mais rica, ponde os olhos na pessoa melhor sucedida, ou
mesmo na mais sábia. Jesus vai mais longe. Manda-nos confrontar com aquela
beleza gratuita, a beleza sem mais, que nasce do ser» (ibidem, p. 189).
Este olhar disponível e sem antolhos formula-se como
bem-aventurança e promessa: «Felizes os puros de coração, porque verão a Deus»
(Mt 5,8). É desta rendição deslumbrada perante o essencial de tudo e de todos,
perante o que são a partir de Deus, que brota de imediato o cuidado pelos
outros, para que nenhum se perca, para que nada falte de necessário e urgente.
Daqui que, erguendo os olhos para os que o procuravam, Jesus alargasse a
pergunta sobre o que haviam de comer. E é por partilhar inteira e ativamente do
cuidado do Pai por todos e cada um que sabe que o pão acabará por chegar e até
sobrar.
Não o sabiam ainda os discípulos. Filipe fez as contas,
habitualmente curtas: «Duzentos denários de pão não chegam para dar um
bocadinho a cada um…». E também André: «Está aqui um rapazito que tem cinco
pães de cevada e dois peixes. Mas que é isso para tanta gente?» Souberam-no de
seguida, quando, pela certeza e a bênção de Jesus, daquele indispensável pouco
sobrou um abundante muito.
Dois mil anos de Cristo no mundo confirmam – a quem
realmente queira ver – a experiência mais certa da humanidade no seu todo. As
grandes necessidades resolvem-se do pouco para o muito, quando a
disponibilidade é total e concreta. – O que eram cinco pães, que nem sequer
eram de trigo; o que eram dois peixes, pequenos como os daquele lago ainda são;
e dum rapazito que pouco ou nada contava? Eram o quase nada que havia e ainda
assim requerido, para que o absolutamente tudo da convicção, do olhar e das
mãos de Jesus a todos saciasse e sobejasse ainda.
Onde estivermos pode sempre abrir-se o futuro, se
inteiramente estivermos, como Cristo naquele dia. O bastante não se refere aos
meios, mas ao coração que nos dirige o olhar.
Caríssimo D. José Tolentino: Estamos aqui hoje tantos,
felizes e em ação de graças pela tua ordenação episcopal. Agradecemos ao Papa
Francisco ter-te escolhido para zelar por um património único de memória
criativa. Imensamente maior é o nosso mundo, com tudo o que espera ou
desespera, com quanto o atinge de bom e menos bom… A tua inteligência e
sensibilidade saberão partilhar o que agora é confiado ao teu bom zelo. E que
assim mesmo crescerá também.
Naquele dia era de pão material que precisavam as multidões,
como hoje ainda é em tantos casos, clamorosos casos. Mas o mesmo Jesus, que nos
ensinou a corresponder a tal necessidade, também lembrou que «nem só de pão vive
o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt 4,4). Dessa Palavra
que em ti se tornou inteira vocação e magnífica expressão. Dessa Palavra que
sabes distinguir em mil ressonâncias de literatura e reverberações de arte. - E
assim a repartirás agora, para que chegue a muitos, para saciar a todos!
Lisboa, Santa Maria de
Belém, 28 de julho de 2018.
+
Manuel, Cardeal-Patriarca
[1] Foi celebrada a Missa do XVII Domingo do Tempo Comum - Ano B.
Evangelho: Jo 6,1-15.
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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