“O Filho de Deus trabalhou com mãos humanas, pensou com uma
inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano”
(Concílio Vaticano II,
Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 22).
A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é uma das mais
difundidas entre os fiéis. Com efeito, nas Sagradas Escrituras o coração não é
apenas a sede das emoções e sentimentos, mas também da inteligência e da
vontade [1]. Em suma, o coração simboliza o núcleo fundamental da pessoa
humana.
Assim, o culto ao Coração de Jesus é o culto ao mistério de
Cristo em sua totalidade, como sintetiza o Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia: “O Coração de Cristo é
Cristo, Verbo Encarnado e Salvador, intrinsecamente voltado, no Espírito, com
infinito amor divino-humano, para o Pai e para os homens seus irmãos” (n. 166).
1. Fundamentos da
devoção ao Sagrado Coração
No Evangelho, Jesus refere-se diretamente ao seu coração:
“Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). Mas é sobretudo no Quarto Evangelho que esse símbolo ganha destaque: este é o Evangelho do
“discípulo amado”, que repousou a cabeça junto ao Coração do Senhor (cf. Jo 13,25).
O evangelista “dá testemunho” (cf. Jo 19,35) do golpe da
lança que abriu o lado de Cristo em direção ao coração, do qual saiu “sangue e
água” (Jo 19,34). Esta mesma ferida
do lado, em direção ao coração, será sinal da Ressurreição do Senhor (Jo 20,27).
Os Padres da Igreja interpretaram o sangue e a água que
brotaram do coração de Cristo, “fonte de vida” (cf. Jo 7,37-38), como
imagem da Igreja, fundada nos sacramentos do Batismo (água) e da Eucaristia
(sangue).
O coração aberto de Cristo na cruz é, pois, a porta da sua
misericórdia, como testemunha Santo Agostinho, citado pelo Diretório sobre a Piedade Popular: “A entrada é acessível: Cristo é
a porta. Abriu-se também para ti quando o lado d’Ele foi aberto pela lança.
Lembra-te de que coisa saiu dali; então escolhe por onde tu possas entrar. Do
lado do Senhor que pendia da cruz e nela morria saiu sangue e água quando foi
aberto pela lança. Na água está a tua purificação, no sangue a tua redenção”
(n. 168).
2. Desenvolvimento da
devoção e o apoio dos Romanos Pontífices
Nos séculos seguintes, diversos santos aprofundariam a
reflexão sobre o Coração de Cristo, como vimos em nossa postagem sobre a história do seu culto. Particularmente na Idade Moderna, essa devoção serviu
como contraponto ao jansenismo (corrente teológica que enfatizava demais o
rigor da justiça de Deus), recordando o infinito amor de Deus manifestado em
Cristo.
Da mesma forma, os teólogos influenciados pelo Iluminismo
(séc. XVIII), que enfatizavam a dimensão racional da fé, tiveram bastante
resistência à devoção, considerando-a excessivamente “sentimental”.
Não obstante, os Romanos Pontífices, sobretudo no último
século, aconselharam vivamente a devoção, inclusive enriquecendo com
indulgências as práticas de piedade ligadas ao mistério do Coração de Cristo (Diretório sobre Piedade Popular, n. 171):
- Consagração pessoal
ao Sagrado Coração de Jesus: considerada pelo Papa Pio XI em sua Encíclica Miserentissimus Redemptor como a
principal prática devocional ao Sagrado Coração.
- Consagração da
família ao Sagrado Coração: geralmente acompanhada da entronização da imagem
do Sagrado Coração na casa. A família, que já participa pelo Sacramento do
Matrimônio do mistério do amor de Cristo por sua Igreja, pede por esse gesto de
devoção que Ele reine no coração de cada um de seus membros.
Basílica do Sagrado Coração de Jesus - Cracóvia, Polônia |
- Ladainha do Sagrado Coração de Jesus: aprovada pelo Papa Leão XIII em 1889, com 33 invocações ao
Coração de Cristo tomadas da Sagrada Escritura e da tradição da Igreja.
- Ato de reparação:
fórmula de oração proposta pelo Papa Pio XI em sua Encíclica Miserentissimus Redemptor, pela qual imploramos
a misericórdia do Senhor por nossos pecados.
- Comunhão na primeira
sexta-feira do mês: prática promovida por Santa Margarida Maria Alacoque (†1690).
No período em que o excessivo rigor do jansenismo afastou os fiéis da
Comunhão, essa prática contribuiu para incentivar a frequência aos Sacramentos
da Penitência e da Eucaristia.
A Comunhão na primeira sexta-feira do mês, dia votivo em
honra do Sagrado Coração (diretamente associado à Paixão), porém, nunca deve
obscurecer a primazia da Eucaristia dominical, nem ser interpretada com um
caráter “mágico” (a ideia de que nove Comunhões na primeira sexta-feira seriam
uma garantia da salvação).
Santa Margarida promoveu também a prática da Hora Santa,
recordando o convite de Jesus à oração no Getsêmani (cf. Mt 26,38 e
paralelos). Em alguns lugares esta Hora Santa (geralmente associada à adoração
eucarística) tem lugar na noite da primeira quinta-feira do mês (como na Basílica do Getsêmani em Jerusalém), e em outros lugares na própria
sexta-feira, unida à Missa votiva ao Sagrado Coração.
3. Da Encíclica Haurietis aquas aos nossos dias
O apoio dos Romanos Pontífices do século XX à devoção ao
Sagrado Coração de Jesus tem seu ápice em 1956, quando o Papa Pio XII promulga
a Encíclica Haurietis aquas (“Haurireis
águas”, citação de Is 12,3) no
centenário da instituição da festa do Sagrado Coração por Pio IX.
Papa Pio XII |
Sua leitura foi recomendada pelo Papa Francisco durante um retiro para sacerdotes no contexto do Jubileu Extraordinário da
Misericórdia (2016).
Após uma breve introdução (nn. 1-4), a Encíclica é composta
por cinco capítulos:
1. Prefigurações do Sagrado Coração no Antigo Testamento
(nn. 5-17);
2. Fundamentos do culto ao Sagrado Coração no Novo
Testamento e na Tradição da Igreja (nn. 18-28);
3. Alguns aspectos da teologia do Sagrado Coração (nn.
29-45);
4. O desenvolvimento do culto ao Sagrado Coração (nn.
46-60);
5. Exortação à autêntica devoção ao Sagrado Coração (nn.
61-77).
Após o Concílio Vaticano II, houve quem considerasse a
devoção ao Sagrado Coração de Jesus como algo ultrapassado. Não obstante, essa
devoção tem defensores de peso até os nossos dias, como, por exemplo, o teólogo
conciliar Karl Rahner (†1984), que sintetiza: “O objeto do culto ao Coração de
Jesus é o próprio Senhor visto através deste seu Coração” [2].
O Catecismo da Igreja
Católica (1992), no capítulo dedicado à fé em Jesus Cristo, recorda em duas ocasiões o tema do seu Coração: no n. 470, sobre a verdade da
Encarnação, citando o n. 22 da Gaudium et
Spes, que usamos como epígrafe desta postagem; e no n. 478, dedicado
especificamente ao “coração do Verbo encarnado”. Aqui o Catecismo atesta como, em Cristo, Deus nos amou com um coração
humano:
“Jesus (...) amou-nos a todos com um coração humano. Por
esse motivo, o Sagrado Coração de Jesus, trespassado pelos nossos pecados e
para nossa salvação ‘é considerado sinal e por símbolo excelência... daquele
amor com que o divino Redentor ama sem cessar o eterno Pai e todos os homens’”
(Catecismo da Igreja Católica, n. 478;
o trecho entre aspas simples é uma citação da Haurietis aquas, n. 27).
O texto citado da Haurietis
aquas, com efeito, prossegue refletindo sobre o tríplice simbolismo do
Coração de Cristo: é “coração divino”, isto é, amor eterno do Filho pelo Pai
no Espírito; é “coração espiritual”, sede da vontade humana de Cristo, com a
qual ama todos e cada um de nós; e, por fim, é também “coração físico”, atestando a verdade da Encarnação (cf.
Hb 4,15).
O Sagrado Coração de Jesus adorado pelos quatro cantos do mundo (Hippolyte Dominique Holfeld, 1860, França) |
Ainda mais recentemente, o Cardeal Walter Kasper em seu
célebre livro “A misericórdia: Condição
fundamental do Evangelho e chave da vida cristã” (2012),
dedica uma sessão do capítulo V ao “Sagrado
Coração de Jesus como revelação da misericórdia divina”, que constitui uma
excelente síntese desse mistério [3].
Por fim, vale recordar que para efetivamente atualizar esta
devoção, tanto o Cardeal Kasper quanto o Diretório
sobre Piedade Popular e Liturgia (n. 173) questionam-se a respeito da forma
como essa é representada.
Muitas representações do Sagrado Coração excessivamente
“dulcificadas” são inadequadas para exprimir toda a riqueza desse mistério.
Assim, é necessário propor novas formas de representação, seja como o próprio
Cristo Crucificado, ou como o Ressuscitado que mostra suas chagas, ou mesmo
como o Cordeiro pascal, “em pé, como que imolado” (Ap 5,6).
Notas:
[1] Sobre o tema do coração nas Sagradas Escrituras, confira:
McKENZIE, John Lawrence. Dicionário
Bíblico. São Paulo: Paulus, 2013, p. 167;
LÉON-DUFOUR, Xavier et
al. Vocabulário de Teologia Bíblica.
9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 179-182.
[2] RAHNER, Karl. Herz-Jesu-Verehrung.
in: ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua
história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo:
Loyola, 2019, pp. 127-129.
[3] KASPER, Walter. A
misericórdia: Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã. 2ª
edição. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 143-150.
Referências (além dos
textos já citados nas notas acima):
BERGER, Rupert. Coração
de Jesus, Devoção ao. in: Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta
sobre todas as questões referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, pp.
108-109.
LACOSTE, Jean-Yves. Coração
de Cristo. in: Dicionário Crítico de Teologia. 2ª edição. São Paulo:
Loyola, Paulinas, 2014, pp. 459-461.
SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS
SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade
Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 143-147.
Postagem publicada originalmente em 12 de junho de 2012. Revista e ampliada em 30 de maio de 2021.
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