“Christus vincit! Christus
regnat! Christus imperat!”.
Embora o culto a Jesus como Rei remonte às origens do
Cristianismo, como o demonstra, por exemplo, a constante presença do Pantocrator (isto é, do Cristo em
majestade) na arte sacra do Oriente e do Ocidente, a instituição da
celebração litúrgica desse mistério é bastante recente.
Para saber mais sobre a imagem do Pantocrator, confira nossa postagem sobre os ícones de Cristo.
A Encíclica Quas Primas do Papa Pio XI sobre Cristo
Rei
A Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei (Domini Nostri Jesu Christi Regis) foi instituída
pelo Papa Pio XI (†1939) através da Encíclica Quas Primas, promulgada no dia 11 de dezembro de 1925 [1].
A Encíclica destaca que no Jubileu Ordinário de 1925 celebrou-se
também o XVI Centenário do Concílio de Niceia (325), primeiro Concílio
Ecumênico da Igreja, o qual afirmou a divindade de Jesus Cristo, na qual se
fundamenta o mistério da sua realeza.
Após recordar o Ano Santo, o Pontífice enumera brevemente os
fundamentos bíblicos do culto a Cristo Rei, tanto do Antigo quanto do Novo
Testamento, desde as profecias messiânicas até as “visões” do Apocalipse.
Pio XI (†1939) Papa que instituiu a Festa de Cristo Rei |
Segue-se uma reflexão teológica sobre o mistério da realeza
de Cristo, que se fundamenta tanto em sua natureza, como verdadeiro Deus, quanto
em sua obra de redenção, quando, verdadeiro homem, ofereceu livre e
amorosamente a própria vida pela nossa salvação.
Pio XI faz aqui uma importante citação do Comentário sobre o Evangelho de Lucas de São Cirilo de Alexandria (†444): Cristo “possui o domínio de todas as criaturas, não pelo ter arrebatado com violência, senão em virtude de sua essência e natureza” (In Lucam, n. 10). Da mesma forma, como afirmou o Papa Bento XVI, a Igreja não cresce por “proselitismo”, mas por “atração”, “como Cristo ‘atrai todos a si’ com a força do seu amor, que culminou no sacrifício da Cruz” [2].
Fazendo jus ao seu lema, “Pax Christi in regno Christi” (A paz de Cristo no reino de Cristo),
Pio XI defende na Encíclica a realeza de Cristo tanto sobre a ordem espiritual quanto sobre
a ordem temporal ou social. Seu objetivo com o documento e com a Festa de
Cristo Rei, com efeito, era combater o laicismo, isto é, a oposição radical entre
a Igreja e o Estado.
Tumba do Papa Pio XI na Basílica de São Pedro: Note-se o seu lema e o mosaico com Cristo Rei |
A maioria dos liturgistas, porém, criticou essa decisão,
considerando-a uma “instrumentalização” da Liturgia para defender questões
sociais. Com efeito, a Encíclica denota certo “saudosismo” do poder temporal da
Igreja, inserindo-se no contexto da “Questão Romana” (1861-1929), isto é, do fim
dos Estados Pontifícios.
Além disso, o mistério da realeza de Cristo já está presente
ao longo do Ano Litúrgico nas “festas dinâmicas”, que celebram eventos
da história da salvação [3]:
- na Solenidade da
Epifania, quando Jesus é venerado como rei pelos magos, representando todos
os povos da terra (Mt 2,1-12; cf. Sl 71);
- no Domingo de Ramos,
sobretudo na procissão (à luz da profecia de Zc 9,9), na qual cantamos: “Gloria,
laus et honor tibi sit, Rex Christe, Redemptor” (Glória, louvor e honra a
ti, Cristo Rei, Redentor) [4];
- no Tríduo Pascal,
particularmente na Sexta-feira da Paixão, quando adoramos o “Deus que reinou no
madeiro” (Regnavit a ligno Deus) [5];
- na Solenidade da Ascensão,
quando Cristo assume seu “trono” à direita do Pai;
- e mesmo em cada domingo,
dia do Cristo Senhor (dies Domini; cf. Fl 2,10-11).
Imagem de Cristo Rei em Paris, destacando a Cruz: “Regnavit a ligno Deus” |
Não obstante seu caráter social, porém, o Papa deu
também uma interpretação espiritual à nova Festa, determinando que fosse
celebrada no último domingo de outubro, interrompendo a série dos “domingos
depois de Pentecostes”, antecedendo a Solenidade de Todos os Santos (01 de novembro).
Por fim, retomando a Encíclica Annum Sacrum (1899) de seu predecessor Leão XIII (†1903), Pio XI estabelece na Quas Primas que na festa de
Cristo Rei se renove a Consagração do Gênero Humano ao Sagrado Coração de Jesus
[6].
A Solenidade de
Cristo Rei após a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II (1962-1965) manteve
a festa de Cristo Rei, dando-lhe porém um novo sentido.
Primeiramente, foram eliminadas as referências ao
“saudosismo” pelo poder temporal da Igreja, a qual defende a
“justa autonomia das realidades terrenas” (Constituição Gaudium et Spes, n. 36) [7].
O Papa Bento XVI, com efeito, afirmou diversas vezes o valor
de uma “laicidade sadia do Estado”: nesta, o Estado e a Igreja, conservando sua
autonomia, trabalham em harmonia pelo bem de todos. O laicismo, em
contrapartida, seria uma degeneração da laicidade, uma sociedade na qual a
religião seria privada de sua liberdade [8].
Assim, a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II
transferiu a Solenidade de nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo (Domini Nostri Jesu Christi Universorum Regis)
para o último domingo do Ano Litúrgico, isto é, o 34º Domingo do Tempo Comum, o
quinto antes do Natal.
Como conclusão do Ano Litúrgico, a celebração da realeza de
Cristo adquire o alcance escatológico próprio do final do Tempo Comum e do início
do Advento, servindo de “dobradiça” entre os dois Tempos. Como atesta o Símbolo Niceno-Constantinopolitano,
cremos que Ele “de novo há de vir em sua glória” e “o seu reino não terá fim”
(“cuius regni non erit finis”).
“Cristo Rei” de Hans Memling (Parte de um políptico sobre os Novíssimos) |
As leituras bíblicas propostas para a Solenidade conforme o novo ciclo trienal
(Anos A-B-C), sobretudo os Evangelhos, reforçam essa dimensão escatológica, enquanto
as leituras e salmos iluminam diversos aspectos do mistério de Cristo:
- Ano A: Ez 34,11-12.15-17; Sl 22 (23); 1Cor
15,20-26.28; Mt 25,31-46;
- Ano B: Dn 7,13-14; Sl 92 (93); Ap 1,5-8; Jo 18,33-37;
- Ano C: 2Sm 5,1-3; Sl 121 (122); Cl 1,12-20;
Lc 23,35-43 [9].
Quanto às orações, foram conservados textos presentes na
edição anterior do Missale Romanum,
com alguns “retoques” [10].
Por exemplo, na coleta (oração do dia), após a referência a Ef 1,10 - “instaurare omnia in Christo” -, foi omitida a súplica pela
“submissão dos povos ao suavíssimo império de Cristo” (“ut cunctae familiae gentium... eius suavissimo subdantur imperio”),
conservando outrossim a prece pela “libertação da escravidão do pecado”:
“Deus eterno e todo-poderoso, que dispusestes restaurar
todas as coisas no vosso amado Filho, Rei do universo, fazei que todas as
criaturas, libertas da escravidão e servindo à vossa majestade, vos glorifiquem
eternamente. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito
Santo. Amém”.
Na oração após a Comunhão, por sua vez, omitiu-se a
afirmação “triunfalista” de que “gloriamo-nos por combater sob o estandarte de
Cristo Rei” (“qui sub Christi Regis
vexillis militare gloriamur...”). No lugar, pedimos humildemente que
saibamos “obedecer na terra aos mandamentos”, para “viver com Ele no reino dos
céus”.
Destacamos que a celebração possui um Prefácio próprio, “De Christo universorum Rege”, também
presente no anterior Missal, que após confessar Jesus Cristo como “sacerdote
eterno e rei do universo”, descreve o seu reino: “reino da verdade e da vida,
reino da santidade e da graça, reino da justiça, do amor e da paz”.
Estátua de Cristo Rei em Świebodzin (Polônia) |
Para a Liturgia das Horas, aos dois hinos elaborados pelo
jesuíta Vittorio Genovesi (†1967) por ocasião da instituição da festa (Laudes e Vésperas), a reforma litúrgica resgatou uma composição
anônima dos séculos XII-XIII (Ofício):
- I e II Vésperas: Te
saeculórum príncipem (Cristo Rei, sois dos séculos Príncipe);
- Ofício das Leituras: Iesu,
rex admirábilis (Jesus, Rei tão admirável);
- Laudes: Aetérna
imágo Altíssimi (Eterna imagem do Altíssimo) [11].
Para os dias feriais da XXXIV semana do Tempo Comum, por sua
vez, pode ser entoado de maneira facultativa na Liturgia das Horas o hino Dies irae (Dia de ira) - antiga sequência das Missas dos defuntos -,
dividido em três partes, aprofundando a
temática escatológica do “juízo final”.
Com efeito, mesmo algumas comunidades protestantes acolheram
a celebração de Cristo Rei (ou do Reino de Cristo) no último domingo do Ano
Litúrgico, enfatizando a dimensão do “juízo final” ou do “retorno de Cristo”,
como evidencia a seguinte oração recitada pelos luteranos:
“Eterno Deus, misericordioso Pai, que escolheste teu Filho
como juiz dos vivos e dos mortos, capacita-nos a esperar pelo dia da sua volta
com nossos olhos fixos no Reino preparado por ti mesmo desde a fundação do
mundo; através de Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e o
Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém” [12].
Cabe salientar ainda que na Arquidiocese de Milão (Itália), a
qual possui um rito próprio - o Rito Ambrosiano -, celebra-se a Solenidade de
Cristo Rei no sétimo domingo antes do Natal e não no quinto, uma vez que no Rito Ambrosiano o Advento
possui seis domingos (e não quatro, como no Rito Romano).
A Solenidade de
Cristo Rei de João Paulo II a Francisco
São João Paulo II (†2005) recuperou um pouco da dimensão
social da Solenidade de Cristo Rei, sem porém cair no “saudosismo” do poder
temporal da Igreja: sobretudo nos primeiros anos do seu
pontificado, nesse domingo o Papa encontrava-se com os leigos da Diocese
de Roma.
Durante o Grande Jubileu do ano 2000, o Papa polonês celebrou justamente
no domingo de Cristo Rei o Jubileu do Apostolado dos Leigos.
Com efeito, após o Concílio destacou-se o tema do “tríplice
múnus” ou “missão” de Cristo: sacerdote, profeta e rei (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 436), do qual todos
os fiéis participam pelo Batismo (ibid.,
nn. 783-787).
“Os cristãos são chamados a ser a luz do mundo. Assim a
Igreja manifesta a realeza de Cristo sobre toda a criação e particularmente
sobre as sociedades humanas” (ibid.,
n. 2105). Para João Paulo II, portanto, o reino de Cristo acontece sobretudo
quando damos testemunho d’Ele no mundo, sendo “fermento na massa” (cf. Mt 13,33; Lc 13,20-21).
"Cristo Rei" - Nikolay Koshelev Com elementos do tríplice múnus: coroa de rei, vestes de sacerdote, livro da profecia |
Essa ênfase de João Paulo II foi reafirmada nas diversas
beatificações e canonizações que presidiu na Solenidade de Cristo Rei,
resgatando de certa forma a associação da realeza-reinado de Cristo com a
santidade, proposta por Pio XI na Quas
Primas.
O mesmo fizeram seus sucessores, Bento XVI e Francisco, que
também associaram a esse domingo outros importantes atos, como, por exemplo, Consistórios
para a criação de novos cardeais, asism como o encerramento do Ano da Fé (2013) e do Jubileu Extraordinário da Misericórdia (2016).
Em 2020 o Papa Francisco determinou que a Jornada Mundial da
Juventude (JMJ), nos anos em que não ocorre o encontro internacional, seja
celebrada a nível diocesano no Domingo de Cristo Rei, e não no Domingo de
Ramos, como era até então. “No centro, continua a estar o Mistério de Jesus
Cristo Redentor do homem”, destacou o Papa.
O Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida publicou em
22 de abril de 2021 algumas Orientações pastorais para a celebração da Jornada Mundial da Juventude nas Igrejas particulares,
recordando que foi no Domingo de Cristo Rei de 1984 que o Papa João Paulo II
convocou os jovens para um encontro no Domingo de Ramos do ano seguinte, Ano
Internacional da Juventude, que daria origem à JMJ em 1986:
“Nesta festa a Igreja proclama o Reino de Cristo, já presente,
mas ainda em misterioso crescimento rumo à sua plena manifestação. Vocês,
jovens, são portadores insubstituíveis da dinâmica do Reino de Deus, da
esperança da Igreja e do mundo”
(João Paulo II, Ângelus, 25 de novembro de 1984).
Notas:
[1] Acta Apostolicae
Sedis, vol. XVI, 1925, pp. 593-610. No site da Santa Sé, além do texto original em latim, a
Encíclica está disponível em italiano, espanhol, francês e inglês.
O título dos documentos pontifícios é composto pelas
primeiras palavras do texto em latim. Assim, “Quas Primas” significa “Na primeira”, pois o Papa começa
citando sua primeira Encíclica, “Ubi
Arcano Dei Consilio”, promulgada
em 1922.
[2] BENTO XVI. Homilia
da Santa Missa de inauguração da V Conferência Geral do Episcopado da América
Latina e do Caribe. Santuário Nacional de Aparecida (Brasil), 13 de maio de
2007.
[3] Rupert Berger, em seu Dicionário de Liturgia Pastoral, distingue as “festas dinâmicas”, que
surgiram no primeiro milênio da Era Cristã e celebram eventos da história da
salvação (Páscoa, Natal, Pentecostes...), e as festas “estáticas” ou
“temáticas”, instituídas ao longo do segundo milênio para celebrar “ideias”
teológicas ou devoções: Santíssima Trindade, Corpus Christi, Sagrado Coração...
cf. BERGER, Rupert. Dicionário
de Liturgia Pastoral: Obra de consulta sobre todas as questões referentes à
Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, pp. 164-166.
[4] cf. MISSAL
ROMANO, Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, pp. 227-228.
[5] Expressão tomada do hino Vexílla regis pródeunt (Do Rei avança o estandarte), indicado para
a adoração da Cruz na Sexta-feira Santa (cf. Missal Romano, pp. 263-266).
[6] cf. INDULGÊNCIAS:
Orientações Litúrgico-pastorais. São
Paulo: Paulus, 2005, pp. 43-44. O Diretório
da Liturgia promulgado pela CNBB sempre recomenda a renovação do Ato de consagração na Solenidade de
Cristo Rei diante do Santíssimo Sacramento exposto.
[7] cf. também o
Decreto Dignitatis Humanae sobre a
liberdade religiosa e o Compêndio da
Doutrina Social da Igreja, particularmente os nn. 424-427.
[8] cf. BENTO XVI.
Discurso na Visita ao Presidente da República Italiana. 24 de junho de 2005; Discurso aos participantes do 56º Congresso
Nacional da União dos Juristas Católicos Italianos. 09 de dezembro de 2006.
[9] Antes da reforma litúrgica as leituras eram sempre: Cl
1,12-20; Sl 71; Jo 18,33-37.
[10] cf. MISSAL ROMANO, pp. 384-385.
[11] OFÍCIO DIVINO. Liturgia
das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 490-510.
Antes da reforma
litúrgica o terceiro hino entoado nessa festa era o célebre Vexílla regis pródeunt, indicado
atualmente para a Semana Santa e para a Festa da Exaltação da Santa Cruz.
[12] Fonte: Teologia e Liturgia Luterana.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 130-132.
AUGÉ, Matias. Ano
Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas,
2019, pp. 273-276.
BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 436-438.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v.
IX: I Santi nel Mistero della Redenzione (Le Feste dei Santi dalla Dedicazione
di San Michele all'Avvento). Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 65-70.
Postagem publicada originalmente em 20 de novembro de 2014.
Revista e ampliada em 22 de outubro de 2021, Memória litúrgica de São João
Paulo II, Papa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário