Aproveitando a última postagem, com a entrevista de Dom Antonio Keller (Bispo de Frederico
Westphalen-RS), postamos agora a entrevista do Padre Paulo Ricardo de Azevedo
Júnior, da Diocese de Cuiabá, igualmente ao blog Salvem a Liturgia. Padre Paulo Ricardo se destaca nos meios de comunicação com suas palestras esclarecendo temas da fé e, aqui, em defesa da Sagrada Liturgia.
1. Como V. Revma vê hoje a questão da Liturgia no Brasil e no mundo?
Nós
estamos vivendo uma fase nova na história da Liturgia. Nós tivemos durante todo
o século 20 um movimento litúrgico extraordinário de retorno as fontes; um
progresso imenso no estudo da liturgia. Depois, com execução da Reforma
Litúrgica do vaticano II, houve infelizmente uma aplicação muito errada da
Reforma. Ela foi, de certa forma, positiva, mas muito mal aplicada. Agora
vivemos uma terceira fase: a fase em que retomamos aquilo que poderíamos chamar
de o “bonde perdido", retomamos o "trem perdido". Nós estávamos
no movimento litúrgico, que foi interrompido por um processo revolucionário da
década de 70 e 80, e agora estamos retomando aquele processo litúrgico
anterior, para colher os frutos de um verdadeiro movimento litúrgico. É isso
que o Papa Bento XVI, pelo menos espera colocar em ato, e aquilo que ele prevê
no seu livro "introdução ao Espírito da Liturgia".
2. O saudoso
Papa João Paulo II, na sua encíclica Ecclesia de Eucharistia, falava de
"sombras" no modo com a Santa Missa é celebrada. Como interpretar
essa expressão?
A
meu ver essa sombras são exatamente isso: são frutos da má aplicação da Reforma
Litúrgica. Nós vemos que, de alguma forma, entrou dentro do processo litúrgico
da Igreja Católica uma mentalidade estranha e alheia a Igreja, que nós
poderíamos chamar de mentalidade revolucionária, onde as pessoas fazem a
Liturgia subjetiva, a partir dos seus gostos, de suas veleidades subjetivas. O
Papa alerta para isso, e é necessário então nós retornarmos a forma tradicional
da Igreja celebrar a Liturgia, mesmo que tenhamos os ritos litúrgicos do
Vaticano II. Mas a Reforma Litúrgica do Vaticano II deve ser executada em
sintonia com a tradição de 20 séculos.
3. Qual a
importância do latim na celebração litúrgica? E do canto gregoriano?
A
Liturgia só tem sentido quando ela é recebida do passado. Nós precisamos
compreender que um rito litúrgico é algo recebido da tradição, recebido dos
nossos pais. E é essa a importância do latim e do canto gregoriano. Ao se fazer
orações em latim na Liturgia e ao se cantar cantos que foram cantados por
gerações e gerações de cristãos antes de nós, nós tomando a consciência de que
estamos vivendo algo que não foi inventado por nós, mas que nos une a uma
multidão de santos e santas que viveram antes de nós, e que santificarem com
aqueles textos e com aqueles cantos; se eles chegaram a se salvar e estar junto
de Deus, também nós podemos fazer.
4. É possível
resgatar um uso mais regular da língua latina mesmo na forma ordinária do Rito
Romano, ou seja, na forma aprova pelo Papa Paulo VI? Como dar os passos para
isso?
Não
somente é possível como é desejável. Aliás, o próprio Papa Paulo VI e o
Concílio Vaticano II sua constituição Sacrosanctum Concilium pediam isso: que
os fiéis soubessem recitar e cantar orações em latim e usando o canto
gregoriano. Agora, é evidente que tudo isso pode e deve ser feito dentro um
processo, de um movimento gradual. Eu costumo sempre dizer que eu odeio tanto
revoluções que as rejeito até quando elas são a meu favor. Uma revolução que de
repente coloque tudo em latim e em gregoriano seria tão detestável quando a
revolução da qual nós estamos querendo nos livrar. O povo de Deus não se move
por decreto. O povo de Deus deve ser respeitado e educado lenta e gradualmente,
trazido para a plenitude da fé católica e da beleza da Liturgia Católica,
porque do contrário seria violentar o povo.
5. Quanto a
Santa Missa “orientada” ou celebrada em “Versus Deum” (“Voltados para Deus”,
isto é, com sacerdotes e fiéis voltados para a mesma direção), que o Cardeal
Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, recomenda que se faça no seu livro “Introdução
ao Espírito da Liturgia”: essa disposição pode ser utilizada mesmo na forma do
Rito Romano aprovada pelo Papa Paulo VI? Qual o seu significado?”
Na
verdade as rubricas do Missal aprovado por Paulo VI foram escritas pensando nas
duas possibilidades: a Missa voltada para o povo ou a Missa voltada para Deus
(também chamada de Missa orientada, já que as Igrejas eram construídas de tal
forma que o sacerdote pudesse celebrar voltado para o lugar onde nasce o sol).
Muita gente fala da Missa voltada para o povo como sendo uma das “conquistas”
do Vaticano II. A verdade é que os documentos do Concílio nem tratam do
assunto.
A
Missa voltada para o povo foi uma adaptação introduzida pelos padres alemães que
celebravam assim em seus acampamentos com jovens e escoteiros. Isto que era uma
situação completamente excepcional tornou-se regra quando da implantação da
Reforma Litúrgica.
Na
minha opinião a Missa voltada para o povo não tem nenhum fundamento teológico,
psicológico ou pastoral, se considerarmos a verdadeira natureza da Missa. Sendo
assim, a situação atual rompe completamente com a tradição de dois mil anos.
Não há nenhum outro Rito Litúrgico que tenha este tipo de prática.
A
Missa orientada tem a importante “missão” de tirar o sacerdote e colocar Deus
no centro da celebração. Todos voltados para a mesma direção, sacerdote e
assembleia, dirigem-se como Igreja para Deus e oferecem a ele o Divino
Sacrifício Eucarístico.
O
que fazer então? Segundo o Papa Bento XVI, no livro que você citou, a caminho
de retorno, sem que o povo sofra violências, é colocar a cruz de volta no
centro do altar. Desta forma o sacerdote celebrante pode olhar claramente para
o Crucificado durante a Liturgia Eucarística e não dar ao povo a errada
impressão de que está falando com a assembleia.
6. O Santo
Padre Bento restaurou, recentemente, a Comunhão de joelhos e na boca em suas
Missas celebradas em Roma. Muitos se surpreenderam com essa atitude do Papa. O
que pensar disso?
Eu
devo confessar uma coisa: eu, durante vários anos como padre, insisti
terminantemente que as pessoas comungassem na mão, devido aos meus estudos. Eu
estudei as Catequeses Mistagógicas de São Cirilo, e lá ele ensina a comungar na
mão. E eu insistia nisso, porque afinal das contas, são os Santos Padres que
estão nos ensinando; é a volta às fontes. E eu insistia nisso, e ficava até com
raiva quando um seminarista vinha comungar na boca. Mas vejam: eu sou
canonista, e também sabia que o seminarista tinha o direito de receber a
comunhão na boca. Por isso, eu não proibia, só ficava incomodado. Tudo isso era
o que eu lutava e cria até a pouco tempo atrás, até que Bento XVI me deu uma
rasteira.
Bento
XVI começou a dar a comunhão na Liturgia do Papa para os fiéis de joelhos, num
genuflexório e na boca. Eu fiquei inicialmente chocado com aquilo, até que eu
fui estudar. Por que ele é Papa! Se ele está tomando uma atitude, alguma razão
tem. Então eu fui estudar quais são as razões, e como é que surgiu a comunhão
na mão.
A
primeira coisa que me espantou: descobri que a comunhão na mão - que é algo que
podemos fazer, porque foi permitido - ela é uma exceção, segundo a lei
canônica; ou seja, canonicamente a forma normal, comum, corriqueira, de se
comungar, é na boca. É isso que foi colocado na legislação por Paulo VI e está
nas várias legislações de João Paulo II. Mas desde que Paulo VI concedeu a
comunhão na mão, ela é claramente uma exceção, permitam-me a redundância,
excepcionalíssima. Vamos ficar com a verdade: a atual legislação da Igreja diz
que a comunhão normal é na boca.
No
Missal de Paulo VI, quando ele foi aprovado em 1969 e 1970 - são as primeiras
aprovações do Missal que nós celebramos - não existe nenhuma referência à
comunhão na mão. A coisa surgiu depois. E investigando, eu descobri que nos
países do Norte da Europa - Holanda, Alemanha... - o pessoal começou a comungar
na mão por iniciativa própria, por desobediência. O Papa ficou sabendo, e o
Vaticano disse: parem com isso! Mas o pessoal continuou. Então chegou uma hora
em que, para não ter uma rebelião em massa, o Vaticano deu uma autorização as
Conferências Episcopais - como a CNBB, aqui no Brasil, por exemplo - para que
elas, se acharem oportuno, peçam permissão a Santa Sé e a Santa Sé então dá
permissão para a Conferência receber a comunhão na mão; mas o normal continua
sendo a comunhão na boca. E isso eu descobri lendo um livro de um Arcebispo que
foi responsável por toda a Reforma Litúrgica: Dom Annibale Bugnini (La Riforma
Liturgica 1948 - 1975, Roma: CVL). Foi ele o chefe da comissão responsável por
elaborar o Missal que nós temos hoje. E isso ele disse claramente, é ele que
narra; eu não ouvi isso de uma fofoca.
Quais
são as razões de Bento XVI agora estar dando a comunhão na boca e de joelhos? O
Papa já falou algumas vezes, quando ele era cardeal, e ultimamente ele tem
falado através dos seus ajudantes. Portanto, as informações que vou passar aqui
são de ajudantes do Papa, como seu mestre de cerimônias, Mons. Guido Marini; o ex-secretário
da Congregação para o Culto Divino, Dom Ranjith, e o atual Prefeito da
Congregação para o Culto Divino, cardeal Cañizares. O Papa acha que nós estamos
correndo um risco muito grande de perder a devoção e a fé na Eucaristia.
Infelizmente, em alguns lugares da Igreja, a Presença Real de Jesus na
Eucaristia está se tornando uma piada: ninguém acredita mais.
São
Cirilo de Jerusalém, em suas Catequeses Mistagógicas, recomendava aos seus
fiéis que recebessem a comunhão nas mãos, e eu não estou recriminando isso: não
é pecado receber a comunhão na mão. Mas São Cirilo não vive nos nossos dias, e
eu duvido que na época dele houvesse esse tipo de escândalo que existe hoje, de
gente que perdeu a fé na Presença Real de Jesus na Eucaristia. Isso é muito
grave e nós precisamos fazer alguma coisa.
Não
é uma questão de arqueologia litúrgica: se formos fazer arqueologia, é evidente
que a comunhão na mão é muito mais antiga, é muito mais tradicional, do que a
comunhão de joelhos e na boca. Mas o problema é que nós estamos em uma época em
que a Presença Real de Jesus na Eucaristia está sendo esquecida, deixada de
lado, e isso mudou a minha opinião: o Papa tem razão. Uma pessoa que recebe a
comunhão de joelhos está se inclinando diante da Majestade de Deus: Deus é
Deus, eu não sou nada. A pessoa que está recebendo a Comunhão na boca porque
até a migalha mais pequenina da Hóstia Consagrada é preciosa; não somente é
pedagógico, mas é verdadeiramente adoração, é verdadeira devoção eucarística, é
verdadeira entrega a Deus.
Nos
tempos que correm, nós não podemos nos dar ao luxo de arqueologismos
litúrgicos. No primeiro milênio não tinha comunhão na boca, mas também não
tinha herege que não acreditava na Presença Real de Jesus na Eucaristia. Nós
estamos em um tempo diferente, e a Igreja evolui também na sua forma de
demonstrar devoção a Cristo. Foi de mil anos para cá que começaram aquelas
heresias que negaram a Presença de Cristo na Eucaristia que culminaram com a
reforma protestante, que a negou de vez, e agora estamos nessa situação.
O
Papa está nos dando exemplo de devoção eucarística, de verdadeira união a
tradição da Igreja, mas uma tradição que sabe evoluir ao longo dos tempos; a
Igreja sabe, como mãe e mestra, colocar o remédio certo na hora certa. E em um
tempo em que, infelizmente, acontecem abusos e padres que perdem a fé na
Presença de Jesus na Eucaristia, a Igreja como mãe e mestra quer renovar essa
fé.
7. Em muitas
dioceses há sacerdotes e ministros extraordinários que negam ministrar a
Comunhão para o fiel que deseja comungar de joelhos, fazendo que os fiéis
passem por situações constrangedoras e gerando escândalo. Como V. Revma. esse
fenômeno, e o que fazer em relação a isso?
Eu
sou professor de Direito Canônico, e uma das observações que eu faço em aula
para os meus alunos é o seguinte: que de uma forma geral os padres e bispos tem
alergia ao Direito Canônico, exatamente porque 90% das normas canônicas estão
lá para defender os fiéis, os sacramentos e a Palavra de Deus do alvitre dos
padres e bispos. Então é evidente que aqueles que são os mais tolhidos pelo
Direito Canônico são aqueles que mais recalcitram contra ele. No entanto, o
Direito Canônico é necessário. A Igreja dá poder aos padres e bispos, e ao
mesmo tempo se apressa em limitá-lo. Porque sabe que pelo nosso pecado original
nós temos uma tendência de abusar do poder. Negar a comunhão ao fiel que
legitimamente deseja recebê-la de joelhos e na boca é sem dúvida alguma um
abuso de poder. Para resolver o problema, eu recomendo aos fiéis prudência e
determinação. Prudência para ver se com 10 mil homens você consegue vencer um exército
que vem contra você com 20 mil. E determinação para não abandonar a reverencia
e a sacralidade da forma com nós recebemos a Sagrada Comunhão. Penso que é
importante que os fiéis insistam num movimento litúrgico em que o verdadeiro
espírito da Liturgia seja resgatado, mesmo que esse movimento tenha que
pacientemente esperar décadas.
8. E quanto à
forma extraordinária do rito romano, a “Missa Tridentina"? Como vê V. Revma.
esse aumento dos pedidos dos leigos para que se a celebre?
O
Missal anterior aquele que nós celebramos hoje é um Missal que santificou
gerações e gerações de cristãos. As pessoas veem que existe algo de errado na
forma de se celebrar hoje em dia, e por isso tem a tendência de imputar essas
dificuldades ao Missal de Paulo VI. Ou seja, "se a Liturgia vai mal, é
porque o Missal de Paulo VI é mau". Eu respeitosamente discordo dessa
opinião. Eu acho que se nós executássemos o Missal de Paulo VI, se nós obedecêssemos
a ele, teríamos uma Liturgia esplendorosa e magnífica. O problema é que não o
fazemos. Então existem muitos equívocos com relação ao Missal de Paulo VI. Nós
vemos, por exemplo, na internet, com frequência, abusos litúrgicos que são
fotografados e colocados dizendo: “Vejam o Missal de Paulo VI!” Quando isso é
incorreto, ou seja, aquilo não é o Missal de Paulo VI, aquilo é o abuso dele.
Não posso imputar ao Missal de Paulo VI os atos daqueles que estão destruindo
este Missal. Agora, esses pedidos que aumentam cada vez mais de se celebrar a
Liturgia conforme o Rito Extraordinário são pedidos de pessoas bem
intencionadas que querem voltar a tradição da Igreja, e por isso devem ser
valorizados e respeitados, ao mesmo tempo em que essas pessoas deveriam ser
esclarecidas, para que se compreendesse que a atual situação de desrespeito da
Liturgia não é devida ao Missal, mas exatamente a ausência de respeito ao
Missal.
9. Dizem que
nas dioceses e instituições que prezam pela Liturgia bem celebrada, de acordo
com as normas liturgias, com incentivo ao canto gregoriano, ao latim, mesmo ao
canto popular mais sóbrio, e mesmo em vernáculo celebrada de forma decorosa e
solene, haveria um aumento de vocações. Isso é verdade e como podemos analisar
este fenômeno?
Eu
concordo com o falecido cardeal Hans Urs von Balthasar, que dizia que o homem
moderno será atraído para Deus não tanto pela verdade da fé, ou pela bondade do
caminho moral cristão, mas pela beleza. Cita-se com frequência a frase de
Dostoiévski “a beleza salvará o mundo”. De alguma forma, é verdade que o homem
moderno, se sente muito mais atraído para Deus, para a verdade da fé, e para a
bondade do caminho cristão, se esta verdade e esta bondade forem apresentadas
de forma bela. Este é o caminho que atrairia muitas pessoas a Deus. E atraindo
essas pessoas com a celebração litúrgica bela, bonita e decorosa, certamente,
entre elas, haveria muitas vocações. Eu não tenho dúvida que uma celebração
conforme a tradição da Igreja é fonte de vocações para a Igreja, e que
celebrando mal, teremos menos padres, celebrando bem, teremos numerosas
vocações.
10. O clero
brasileiro percebe a importância do latim, do canto gregoriano, e assim por
diante?
É
necessário distinguir. Existe uma nova geração que está acordando para isto. A
nova geração de padres e seminaristas está resgatando aquilo que a geração
anterior jogou fora. Infelizmente esses padres jovens e seminaristas não tem
nem poder e nem influencia suficiente para mudar substancialmente o contexto
eclesial no qual eles vivem. Mas chegará o dia em que eles estará amadurecidos
e prontos para assumir o comando, e então veremos uma situação melhor. Por isso
eu diria que o clero brasileiro, de alguma forma, está dividido entre uma
geração mais antiga, que viveu a revolução estudantil de 1968, os desmandos da
aplicação inicial da reforma litúrgica, a revolução sexual, o secularismo, e
todo o tipo de reação adversa ao cristianismo e à Igreja. Esta geração mais
antiga é a geração que nos governa atualmente, eles são muito temerosos e
resistem a querer enfrentar o mundo moderno. Já a geração mais nova é de uma
outra lavra. Eles já nasceram dentro do secularismo, e portanto o rejeitam e
não tem medo de enfrentá-lo. O único problema desta nova geração é que muitas vezes
ela não tem formação e nem orientação suficiente para notar a sua vocação de
transformação e reforma da atual situação de Igreja.
11. Como
reitor de seminário, quais os meios que V. Revma. vê para formar seminaristas
totalmente ortodoxos em matéria litúrgica?
Existem
inúmeros meios. Uma das coisas que nós fazemos em nosso seminário é não supor
que o rapaz que acaba ingressar no seminário é cristão e é católico. A fé ela
deve ser transmitida. Então é necessário receber o candidato que ingressa no
seminário transmitindo a ele a fé da Igreja, o Catecismo da Igreja Católica, a
Tradição da Igreja através de um conhecimento da história da Igreja, sobretudo
da história da Igreja antiga, dos Santos Padres e dos primeiros concílios,
transmitir a ele o sentido da correta interpretação das Sagradas Escrituras na
Tradição da Igreja, e finalmente transmitir também o respeito as normas e aos textos
litúrgicos. Se nós edificarmos esse rapaz em todo esse contexto geral de
eclesialidade, ele irá, depois, obedecer as normas litúrgicas. A dificuldade
que eu vejo sempre na obediência dos padres jovens é muitas vezes a dificuldade
da ignorância. Eles não sabem o valor daquilo que estão jogando fora.
12. V. Revma.
tem enfrentado resistências em algum esses sentidos? Como resolvê-las? Vê algum
sinal de esperança?
A
resistência nós a encontramos quando tentamos enfrentar o problema sem
pedagogia e sem respeitar a história acontecida até agora. Vou tentar ser mais
claro: em alguns lugares do Brasil, por exemplo, os padres insistem ainda em
celebrar a Missa só de estola, sem casula. Ora, se eu chego e tento impor
aquele padre o uso da casula, eu devo considerar primeiro o fato que se ele
está usando somente estola é porque ele foi formado assim. E se eu for buscar a
raiz, eu irei ver que essa desobediência tem origem na norma que foi dada pela
Santa Sé permitindo ao clero brasileiro na década de 70 de celebrar a Missa
apenas com túnica e estola. Portanto, é uma situação que foi instaurada pela
própria autoridade da Igreja. Se agora eu tenho um decreto de Roma que manda,
mais uma vez, que os padres abandonem este uso e comecem a usar a casula, eu
tenho que considerar esta história e ter a paciência histórica de levar as
pessoas à compreensão desta mudança. Então, as resistências muitas vezes são
fortes quando nós não levamos em conta o fato de que nós temos toda uma geração
que não recebeu uma formação adequada exatamente por causa dos próprios
documentos e orientações que receberam. Portanto, talvez seja necessário ter
paciência com esta geração mais antiga e esperar por uma geração nova formada
de uma forma diferente.
13. Como V.
Revma. enxerga a grande migração que muitos leigos, inclusive jovens, fazem em
direção a grupos que, embora conservem a liturgia tradicional, a Missa
Tridentina, não estão em plena comunhão com Roma? O que fazer para solucionar o
problema?
Em
primeiro lugar eu vejo que talvez o grupo não seja tão grande assim, pelo menos
aqui no Brasil. Em segundo lugar, a solução para uma revolução nunca é uma
outra revolução. A solução para uma revolução de esquerda não é uma revolução
de direita. E o que eu entendo por revolução? A mente revolucionária é aquela
cabeça de adolescente que está convencida de que sabe como o mundo deve ser, e
por isso, o mundo está errado. Quando os jovens do movimento hippie viram o
mundo dos seus pais e contestaram e rejeitaram aquele mundo, estavam sendo revolucionários.
Quando o jovem tradicionalista de hoje vê o mundo dos seus pais, e o rejeita
completamente, também está sendo revolucionário. Qual seria a solução? A
solução é sempre vivermos num mundo real com suas dificuldades e contradições e
tentar combater a maldade que nós encontramos no dia-a-dia sem destruí-lo.
Sendo mais concreto: sair da Igreja para salvar a Igreja já foi tentado por
Lutero e deu errado. É necessário abraçar a Igreja real, como ela sempre
existiu em 2000 anos. Uma Igreja com membros cheios de pecados, falhas e
traições, embora a Igreja seja santa e imaculada. A fidelidade à Igreja é
parecida com a fidelidade de um casal. Uma comparação semelhante é feita por
São Paulo em sua carta aos Efésios (6, 32). O casal precisa estar pronto para
perdoar o pecado um do outro, sem desistir um do outro. O jovem que se divorcia
da Igreja porque não suporta os defeitos dos seus membros está abandonando uma
Igreja real para viver numa Igreja ideal que a meu ver não passa da expressão
de uma revolução de direita.
14. O Cardeal
Castrillón Hoyos insiste na chamada "ars celebrandi", expressão que é frequentemente utilizada
também pelo Santo Padre Bento XVI. Em que ela consiste? Como colocá-la em
prática?
A
Liturgia é chamada historicamente de teatro. Para nós modernos, o teatro é
sempre algo falso, algo sem consistência de sinceridade. Por isso, falar de
arte de celebrar pode parecer a insistência numa pantomina e numa hipocrisia,
mas não é isso. A Liturgia é teatro n sentido de drama. Nela, acontece o drama
de nossa salvação. Nela, existe um conflito de liberdades: a liberdade divina e
soberana, como protagonista principal desse grande drama, e a liberdade humana
que deve se configurar a Deus. Nesse sentido, toda a história da salvação é um
drama, um teatro. A arte de celebrar é a entrada do ser humano todo neste drama
extraordinário que a própria Liturgia chama de duelo entre a vida e a morte, é
da sequência Pascal, “mors et vita duelo, conflixerunt mirando”. Neste
contexto, a arte de celebrar significa uma entrada da pessoa como um todo
dentro de um drama espiritual e isto acontece através dos símbolos litúrgicos
que são também símbolos artísticos.
15. Quais são
as causas, na visão de V. Revma., de tanto desleixo para com a Liturgia no
Brasil? A Teologia da Libertação, o modernismo, condenado por São Pio X, bem
como o marxismo cultural e a Revolução, têm que parcela de culpa?
Sem
dúvida alguma, aquilo de negativo que nós encontramos na atual vida litúrgica
do Brasil, é fruto de um processo revolucionário. Mais uma vez eu gostaria de
enfatizar o que é a mentalidade revolucionária: a mente revolucionário é aquela
que está muito convencida da verdade das suas ideias, e quer impor ao mundo as
suas ideias. Os liturgos revolucionários no Brasil tem a tendência de
confeccionar uma liturgia mental, o ideal daquilo que seria a Liturgia para
eles. E então aplicar essa ideia de Liturgia na prática. Ora, pouco importa que
a matriz revolucionária desses pensamentos seja marxista, da Teologia da
Libertação, modernista ou liberal; trata-se sempre de um único e mesmo
mecanismo. O liturgista se propõe como demiurgo da Liturgia. Ele faz, ele cria,
nesse sentido esses liturgistas que pretendem ser tão democráticos, na verdade,
não passam de déspotas porque impõem a assembleia litúrgica as suas ideias de
Liturgia. Nada de mais anti-democrático do que um liturgista revolucionário ou
uma equipe litúrgica revolucionaria, que é uma pequena elite que impõe
ditatorialmente ao povo de Deus as suas concepções de Liturgia. E o Direito
Canônico diz claramente que o povo de Deus tem direito de receber dos seus
Sagrados Pastores a Liturgia da Igreja.
16. Felizmente,
hoje alguns excelentes escritos litúrgicos tem sido publicados ou chegando ao
Brasil em português, como "Introdução ao Espírito da Liturgia", do
Cardeal Ratzinger (hoje Papa Bento XVI), e "Dominus Est - É o
Senhor!", de Dom Athanasius Schneider. Por que há essa dificuldade de tais
materiais chegarem ao Brasil, e como avalias em geral os escritos litúrgicos
publicados aqui?
Como
eu me referi em uma outra pergunta, nós atualmente somos governados, tanto no
âmbito político como no âmbito eclesial, pela geração que viveu as grandes
mudanças da década de 70. A maior parte das pessoas dessa geração ou são
plenamente revolucionarias ou tem um medo imenso de enfrentar a mentalidade
revolucionaria. Por isso, a tendência de selecionar os títulos que são publicados
no Brasil, já que a maior parte dos editores pensa ou que esses títulos são
inoportunos, porque são editores revolucionários, ou que esses títulos não irão
vender e que não há interesse geral porque são editores que já capitularam
diante da pressão revolucionária. Um dos lugares onde as pessoas mais corajosas
encontram um fórum livre, no qual podem ter acesso a esse tipo de literatura, é
a internet. Embora muitos livros não estejam disponíveis em sua totalidade na
internet, pode-se partilhar o conteúdo desses livros de forma indireta, através
de resumos e resenhas.
17. Como V.
Revma. avalia que o Santo Padre Bento XVI, em sua proposta de “reforma da
reforma”, tem sido apoiado pela demais autoridades litúrgicas de Roma, Cardeal
Cañizares, Cardeal Arinze, como Mons. Guido Marini, Dom Ranjith?
Essas
pessoas citadas são todas pessoas de confiança direta do Santo Padre e que
receberam o encargo de pôr em ação esse novo movimento litúrgico. Muitas
pessoas reclamam da lentidão com que Roma estaria realizando esta Reforma da
Reforma, mas eu creio que a lentidão faz parte desse processo. Não é necessário
dizer que qualquer decreto vindo de Roma não tem efeito algum se não houver uma
recepção na base, e que portanto, mais importante do que exarar decretos, é por
em ação um movimento, principalmente entre os jovens, onde a sensibilidade para
com a Liturgia da Igreja e a Tradição seja mais presente. É exatamente isto que
esses homens estão fazendo.
18. Alguns
padres mais novos começam a vestir batina, a usar clergyman, a celebrar com
decoro, a se interessar pelo latim, pela forma ordinária bem celebrada
(inclusive com latim e canto gregoriano), pela Missa Tridentina. Também leigos
bem formados estão despertando e tomando iniciativas apostólicas para promover
a Liturgia de acordo com o que nos manda a Santa Igreja e conforme a tradição
da Igreja. O que diz V. Revma. disso tudo?
Vejo
com bons olhos porque vejo a boa vontade desses jovens. Embora deva admitir que
é necessário que toda essa boa vontade seja acompanhada de uma boa formação
espiritual. Porque toda esta embalagem precisa ser acompanhada de conteúdo.
Quanto eu era seminarista, no final da década de 80, já se notava na Europa uma
tendência de os seminaristas serem mais conservadores do que os seus próprios
formadores dentro dos seus seminários. No entanto, muitas vezes, por falta de
formação espiritual, de uma vida ascética de disciplina, esta boa vontade dos
seminaristas caiu na vazies de uma vida incoerente com aquilo que se propunha.
Penso que é muito importante que o padre ame a sua batina, mas mais importante
ainda é que ele honre a sua batina. Porque em alguns lugares tem tido um efeito
devastador jovens sacerdotes se vestirem com a tradição e levarem uma vida
moral em completo desrespeito com a Tradição. Por isso, vejo com bons olhos a
boa vontade desses padres jovens e seminaristas, e ao mesmo tempo vejo com
apreensão porque penso que é necessário dar a eles uma formação espiritual e
ascética que corresponda a essa boa vontade. É aquilo que eu tentei fazer
quando escrevi o meu livro
sobre a Terapia das Doenças Espirituais.
19. Aos que
querem a Missa mais sóbria, de acordo com as normas, com incenso, latim,
paramentos bonitos, logo se lhes acusam de "rubricistas" ou de
"obtusos", "antiquados" e até de "fariseus".
Dizem que a Missa tem que ser "alegre", com improvisação, sem se
prender a fórmulas. Alegam que pra Jesus, “o que importa é o coração, é o
interior”. Como responder a tudo isso?
“Unum
facere et alium non omittere”, Fazer uma coisa e não omitir a outra. Ou
seja, observar as normas litúrgicas e obedecê-las não é algo que está
divorciado com o coração. É necessário escolher as duas coisas. Obediência das
normas e soprar sobre estas normas, que são letra morta, o Espírito com o qual
elas foram elaboradas. O espírito que é uma verdadeira tradição espiritual da
Igreja. Por isso, essa dicotomia é uma falsa alternativa. Seria como pedir a
uma pessoa que escolhesse entre o corpo e a alma, dizendo a ela ou ela fica com
a alma ou ela fica com o corpo. A única resposta possível é dizer: eu não
escolho, eu fico com os dois. Eu fico com a norma litúrgica e fico com o
coração.
20. Vemos no
Brasil que, após décadas de predomínio do pensamento da Teologia da Libertação,
uma nova tomada de consciência por parte de muitos fiéis no que diz respeito a
Santa Missa como Renovação do Sacrifício do Calvário, a Presença Real de Nosso
Senhor no Santíssimo Sacramento, e culto de adoração devido a Ele, e assim por
diante. Porém, mesmo em alguns desses meios onde está ocorrendo esta tomada de
consciência (como em alguns ambientes da Renovação Carismática Católica), ainda
há uma resistência em celebrar conforme determinam as normas litúrgicas e
valorizar realmente o esplendor e a solenidade segundo a tradição litúrgica.
Qual a causa dessa contradição? Como resolver?
Existe
uma ideia equivocada que pensa que o Evangelho é incompatível com a lei, ou
seja, que o Espírito sopra onde quer e que uma lei só iria matar a verdadeira
fidelidade ao Evangelho de Cristo. Mas esse ideia é equivocada. O Evangelho de
Cristo é uma Palavra que me vincula. Quanto eu dou o meu assentimento de fé a
Cristo, eu estou necessariamente vinculado a Palavra Dele, e portanto, na
própria natureza do Evangelho e da resposta de fé, existe algo que me vincula e
que me limita. Eu não posso trair a Palavra de Cristo. Eu não possa
transformá-la em uma outra Palavra. Eu preciso aceitá-la, ser fiel a ela e
transmiti-la como eu recebi. Isto que acontece com a Palavra deve acontecer
também com o Sacramento. O que seria de nós, se nós disséssemos que eu preciso
transmitir a Palavra de Deus com liberdade e criatividade? Terminaria que no
curso de uma década, a Palavra de Deus pregada já não seria mais a Palavra de
Cristo; talvez não seria nem necessário esperar uma década. A mesma coisa
acontece com o Sacramento. O que me garante que o Sacramento que eu hoje
celebro é o mesmo Sacramento do Cristo de 2000 anos atrás? É simplesmente o
fato de que Ele deixou um Sacramento. E esse Sacramento me vincula, e eu
preciso fazer de tudo para que esse Sacramento seja transmitido ao longo dos
séculos tal qual ele é. Por isso, o Espírito, a liberdade e o Evangelho não são
incompatíveis com a lei, a tradição e o vínculo necessário para que a Palavra e
o Sacramento de Cristo sejam os mesmos através dos séculos.
21. Um futuro
promissor para a liturgia no Brasil é visto por V. Revma. a curto prazo? Quais
os erros que devem ser evitados nesse trabalho de "reforma da
reforma"?
Se
nós olharmos para a história da Igreja, nós notaremos que nunca aconteceu aqui
na terra o paraíso da Liturgia perfeita. Penso que é importante não esperar
esse paraíso. O que nós podemos esperar para o nosso futuro é que nós tenhamos
força e decisão moral o suficiente de proteger a Liturgia e os Sacramentos da
Igreja, de lutar para que os Sacramentos e a Liturgia não sejam destruídos, mas
celebrados conforme a Tradição, conforme aquilo que Jesus e os Apóstolos
deixaram. Penso que é esse o futuro que nós podemos desejar para o Brasil.
Também penso que não é possível prever o futuro, já que, em todo o futuro,
existe uma liberdade humana, e dependerá de nós que esse futuro seja melhor do
que aquilo que vivemos hoje.
22. Por fim,
uma palavra de incentivo aos leitores do Salvem a Liturgia, e o seu pensamento
a respeito do nosso Apostolado.
Penso
que é de extrema importância colocar a Liturgia no centro dos debates e da vida
eclesial. O Papa Bento XVI escolheu a Liturgia como a grande contribuição do
seu pontificado. Aos leitores do salvem a Liturgia, eu gostaria de dizer que
continuem amando e fazendo o bem a Igreja, da forma que estão fazendo,
porque se salvarmos a Liturgia,
seremos salvos por ela.
Originalmente publicado em: Salvem a Liturgia
Site do Padre Paulo Ricardo: http://padrepauloricardo.org
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