Há 20 anos, no dia 24 de dezembro de 2005, o Papa Bento XVI (†2022) presidiu a primeira Missa da Noite na Solenidade do Natal do Senhor do seu pontificado. Repropomos aqui sua homilia na ocasião:
Missa da Noite de Natal
Homilia do Papa Bento XVI
Basílica de São Pedro
Sábado, 24 de dezembro de 2005
1. «O
Senhor me disse: Tu és meu filho, Eu hoje te gerei» (Sl 2,7). Com
estas palavras do Salmo 2 a Igreja dá início à Missa da Noite de Natal, na qual
celebramos o nascimento do nosso Redentor, Jesus Cristo, no estábulo de Belém. Anteriormente
este Salmo pertencia ao ritual da coroação dos reis de Judá. O povo de Israel,
por causa da sua eleição, sentia-se de modo particular filho de Deus, adotado
por Deus. Uma vez que o rei era a personificação daquele povo, a sua
entronização era vivida como um ato solene de adoção por parte de Deus, no qual
o rei era, de certo modo, envolvido no próprio mistério de Deus. Na noite de
Belém, estas palavras, que de fato eram mais a expressão de uma esperança que uma
realidade presente, assumiram um sentido novo e inesperado. O Menino no
presépio é verdadeiramente o Filho de Deus. Deus não é solidão perene, mas um
círculo de amor no recíproco doar-se e retribuir o dom. Ele é Pai e Filho e
Espírito Santo.
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| Bento XVI (Missa da Noite de Natal 2005) |
Mais
ainda: em Jesus Cristo, o Filho de Deus, o próprio Deus, Deus de Deus, se fez
homem. É a Ele que o Pai diz: «Tu és meu filho» (Sl 2,7). O hoje eterno
de Deus desceu ao hoje efêmero do mundo e arrasta o nosso hoje passageiro para
o hoje perene de Deus. Deus é tão grande que pode se fazer pequeno. Deus é tão
poderoso que pode se fazer inerme e vir ter conosco como menino indefeso, para
que possamos amá-lo. Deus é tão bom que renuncia ao seu esplendor divino e
desce ao estábulo para que possamos encontrá-lo e para que, assim, a sua
bondade nos toque, se comunique a nós e continue agindo através de nós. O Natal
é isso: «Tu és meu filho, Eu hoje te gerei». Deus se tornou um de nós, para que
nós pudéssemos estar com Ele, tornarmo-nos semelhantes a Ele. Escolheu como seu
sinal o Menino no presépio: Ele é assim. Deste modo aprendemos a conhecê-lo. E
em cada criança resplandece algo da luz daquele “hoje”, da proximidade de Deus
que devemos amar e à qual devemos nos submeter - em cada criança, mesmo naquela
ainda não nascida.
2. Ouçamos
outra palavra da Liturgia desta Noite santa, tomada esta vez do Livro do Profeta
Isaías: «O povo, que andava na escuridão, viu uma grande luz» (Is 9,1).
A palavra «luz» permeia toda a Liturgia desta Missa. É mencionada novamente na
passagem da Carta de São Paulo a Tito: «A graça de Deus se manifestou» (Tt
2,11). A expressão « manifestou-se», em língua grega e nesse contexto, diz a
mesma coisa que o hebraico exprime com as palavras «uma luz brilhou»: a
«manifestação», a «epifania», é a irrupção da luz divina no mundo cheio de
escuridão e de problemas sem resolver. Por fim, o Evangelho nos narra que aos
pastores apareceu a glória de Deus e «os envolveu em luz» (Lc 2,9).
Onde aparece a glória de Deus, aí a luz irradia no mundo. «Deus é luz e n’Ele
não há trevas», diz-nos São João (1Jo 1,5). A luz é fonte de
vida.
Mas
“luz” significa sobretudo conhecimento, significa verdade em contraposição com
a escuridão da mentira e da ignorância. Assim a luz nos faz viver, nos indica o
caminho. Além disso, a luz, enquanto gera calor, significa também amor. Onde há
amor, emerge uma luz no mundo; onde há ódio, o mundo permanece na escuridão. Sim,
no estábulo de Belém apareceu a grande luz que o mundo espera. Naquele Menino
deitado na manjedoura Deus mostra a sua glória - a glória do amor, que se
entrega a si mesmo como dom e se despoja de toda a grandeza para nos conduzir
pelo caminho do amor. A luz de Belém nunca mais se apagou. Ao longo de todos os
séculos ela tocou homens e mulheres, «os envolveu em luz». Onde despontou a fé
naquele Menino, aí desabrochou também a caridade - a bondade para com todos, a
atenção prestativa pelos débeis e pelos sofredores, a graça do perdão. A partir
de Belém um rastro de luz, de amor, de verdade atravessa os séculos. Se olhamos
os Santos - desde Paulo e Agostinho até Francisco e Domingos, desde Francisco
Xavier e Teresa de Ávila até a Madre Teresa de Calcutá -, vemos esta corrente
de bondade, este caminho de luz que se inflama, sempre de novo, no mistério de
Belém, naquele Deus que se fez Menino. Contra a violência deste mundo, Deus
opõe, naquele Menino, a sua bondade e nos chama a seguir o Menino.
Juntamente
com a árvore de Natal, nossos amigos austríacos nos trouxeram este ano também
uma pequena chama que acenderam em Belém, para nos dizer: o verdadeiro mistério
do Natal é o esplendor interior que irradia desse Menino. Deixemos que esse
esplendor interior se comunique a nós, que acenda no nosso coração a chama da
bondade de Deus; levemos todos, com o nosso amor, a luz ao mundo! Não permitamos
que essa chama luminosa acesa na fé se apague por causa das correntes frias do
nosso tempo! Guardemo-la fielmente e a partilhemos com os outros! Nesta noite, na
qual dirigimos nosso olhar para Belém, queremos também rezar de modo especial
pelo lugar do nascimento do nosso Redentor e pelos homens que lá vivem e
sofrem. Queremos rezar pela paz na Terra Santa: Olhai, Senhor, esta porção da
terra que, como vossa pátria, tanto amais! Fazei que ali resplandeça a vossa
luz! Fazei que ali chegue a paz!
3. Com
o termo «paz» chegamos à terceira palavra-chave da Liturgia desta Noite santa. O
Menino que Isaías anuncia é chamado por ele «Príncipe da paz» (Is 9,5).
A respeito do seu reino, se diz: «A paz não terá fim» (v. 6). No Evangelho é
anunciado aos pastores: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra...» (Lc
2,14). Anteriormente se lia: «...aos homens de boa vontade»; na nova tradução se
diz: «aos homens por Ele amados». Que significa esta mudança? Deixou de ter
valor a boa vontade? Coloquemos melhor a questão: Quais são os homens que Deus
ama e por que os ama? Por acaso Deus é parcial? Por acaso ama apenas algumas
pessoas e abandona as outras a si mesmas? O Evangelho responde a essas
perguntas mostrando-nos algumas pessoas concretas amadas por Deus. Há pessoas
individuais - Maria, José, Isabel, Zacarias, Simeão, Ana... Mas há também
dois grupos de pessoas: os pastores e os sábios do Oriente, os chamados “reis
magos”.
Reflitamos
nesta noite sobre os pastores. Que tipo de homens são eles? No seu ambiente, os
pastores eram desprezados; eram considerados pouco confiáveis e, no tribunal,
não eram admitidos como testemunhas. Mas quem eram na realidade? Certamente não
eram grandes santos, se com este termo entendemos pessoas de virtudes heroicas.
Eram almas simples. O Evangelho evidencia uma característica que mais tarde,
nas palavras de Jesus, teria um papel importante: eram pessoas vigilantes. Isto
se aplica antes de tudo no sentido exterior: à noite vigiavam junto das suas
ovelhas. Mas se aplica também em um sentido mais profundo: estavam disponíveis
à palavra de Deus, ao anúncio do anjo. A sua vida não estava fechada em si
mesma; o seu coração estava aberto. De certo modo, no mais profundo de si
mesmos, estavam à espera de algo - em última instância, à espera de Deus. A sua
vigilância era disponibilidade - disponibilidade a escutar, disponibilidade a
se por a caminho; era espera da luz que lhes indicasse o caminho.
É
isso que interessa a Deus. Ele ama todos, porque todos são criaturas suas. Mas
algumas pessoas fecharam sua alma; o amor de Deus não encontra nenhum acesso a
elas. Pensam que não têm necessidade de Deus; não o querem. Outros, que
moralmente talvez sejam igualmente miseráveis e pecadores, pelo menos sofrem
com isso. Estes esperam Deus. Sabem que têm necessidade da sua bondade, mesmo
que não tenham uma ideia precisa dela. No seu íntimo, aberto à expectativa, a
luz de Deus pode entrar, e com ela a sua paz. Deus procura pessoas que levem e
comuniquem a sua paz. Peçamos-lhe que faça com que o nosso coração não se encontre
fechado. Esforcemo-nos por ser capazes de nos tornarmos portadores ativos da
sua paz - precisamente no nosso tempo.
Além
disso, a palavra “paz” assumiu entre os cristãos um significado todo especial:
tornou-se uma palavra para designar a comunhão na Eucaristia. Nesta está
presente a paz de Cristo. Através de todos os lugares onde se celebra a
Eucaristia uma rede de paz se expande sobre o mundo inteiro. As comunidades
reunidas em torno da Eucaristia constituem um reino da paz largo como o mundo.
Quando celebramos a Eucaristia nos encontramos em Belém, na «casa do pão».
Cristo se doa a nós, e assim nos dá a sua paz. Ele a dá para que levemos a luz
da paz no nosso interior e a comuniquemos aos outros; para que nos tornemos promotores
de paz e contribuamos assim para a paz no mundo. Por isso pedimos: Senhor, cumpri
a vossa promessa! Fazei que, onde há discórdia, nasça a paz! Fazei que, onde
reina o ódio, brote o amor! Fazei que, onde dominam as trevas, surja a luz!
Fazei que nos tornemos portadores da vossa paz! Amém.
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| Nascimento do Senhor (Igreja do Campo dos Pastores, Beit Sahour) |
Fonte: Santa Sé (com pequenas correções feitas pelo autor deste blog).


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