quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 31

Nas Catequeses nn. 53-54 do ciclo sobre Deus Pai, o Papa São João Paulo II continuou sua reflexão sobre as consequências do pecado original.

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

53. As consequências do pecado na humanidade
João Paulo II - 01 de outubro de 1986

1. O Concílio de Trento formulou em um texto solene a fé da Igreja sobre o pecado original. Na última Catequese consideramos o ensinamento conciliar sobre o pecado pessoal dos primeiros pais. Agora queremos refletir sobre o que o Concílio diz acerca das consequências daquele pecado para a humanidade.

2. O texto do Decreto tridentino sobre o pecado original faz uma primeira afirmação a respeito: o pecado de Adão foi transmitido a todos os seus descendentes, isto é, a todos os homens enquanto provenientes dos primeiros pais e seus herdeiros na natureza humana, agora privada da amizade com Deus.
O Decreto tridentino o afirma explicitamente: o pecado de Adão causou dano não só a ele, mas a toda a sua descendência (cf. Denzinger, n. 1512). A santidade e a justiça originais, fruto da graça santificante, não foram perdidas por Adão apenas para si, mas também “para nós” (“nobis etiam”). Portanto, ele transmitiu a todo o gênero humano não só a morte corporal e outras penas (consequências do pecado), mas também o próprio pecado como morte da alma (“peccatum, quod mors est animae”).

Expulsão de Adão e Eva do paraíso (Benjamin West)

3. Aqui o Concílio de Trento recorre a uma observação de São Paulo na Carta aos Romanos, à qual fazia referência já o Sínodo de Cartago (418), retomando assim um ensinamento já difundido na Igreja. Na tradução atual o texto paulino soa assim: “Como o pecado entrou no mundo por um só homem e, por meio do pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5,12). No original grego se lê: “eph’o pantes emarton” (ἐφ᾽ ᾧ πάντες ἥμαρτον), expressão que na antiga Vulgata latina era traduzida como: “in quo omnes peccaverunt”, “no qual (único homem) todos pecaram”. No entanto, os gregos já desde o princípio entendiam claramente o que a Vulgata traduz como “in quo” como um “porque” ou “enquanto”, sentido comumente aceito nas traduções modernas. Todavia, esta diversidade de interpretações da expressão não altera a verdade de fundo contida no texto de São Paulo, isto é, que o pecado de Adão (dos primeiros pais) teve consequências para todos os homens. Afinal, no mesmo capítulo da Carta aos Romanos o Apóstolo escreve: “Pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores” (Rm 5,19). E no versículo anterior: “Pela transgressão de um só, a condenação se estendeu a todos” (v. 18). São Paulo vincula assim a situação de pecado de toda a humanidade com a culpa de Adão.

4. As afirmações de São Paulo que acabamos de citar e às quais se refere o Magistério da Igreja iluminam, pois, a nossa fé sobre as consequências do pecado de Adão para todos os homens. Este ensinamento orientará sempre os exegetas e os teólogos católicos para avaliar, com a sabedoria da fé, as explicações que a ciência oferece sobre as origens da humanidade.
São particularmente válidas e estimuladoras para ulteriores pesquisas a este respeito as palavras que o Papa Paulo VI dirigiu a um simpósio de teólogos e cientistas: “É evidente que vos parecerão irreconciliáveis com a genuína doutrina católica as explicações que alguns autores modernos dão sobre o pecado original, os quais, partindo do pressuposto, que não foi demonstrado, do poligenismo, negam, mais ou menos claramente, que o pecado, de onde deriva tal inundação de males na humanidade, tenha sido antes de tudo a desobediência de Adão, ‘primeiro homem’, figura daquele futuro, cometida no princípio da história” (Paulo VI, Discurso aos participantes de um simpósio sobre o mistério do pecado original,11 de julho de 1966; Acta Apostolicae Sedis 58, 1966, p. 654).

5. O Decreto tridentino contém outra afirmação: o pecado de Adão passa a todos os descendentes por sua origem dele, e não só pelo mau exemplo. O Decreto afirma: “Este pecado de Adão, que é um só quanto à origem e a todos transmitido por propagação, não por imitação, pertence a cada um como próprio” (Denzinger, n. 1513). Portanto, o pecado original é transmitido por geração natural. Esta convicção da Igreja é indicada também pela prática do Batismo dos recém-nascidos, à qual se refere o Decreto conciliar. Os recém-nascidos, incapazes de cometer um pecado pessoal, todavia, segundo a secular tradição da Igreja, recebem o Batismo pouco depois do nascimento para a remissão dos pecados. Diz o Decreto: “[As crianças] são verdadeiramente batizadas para a remissão dos pecados, para que nelas seja purificado por regeneração o que contraíram por geração” (ibid., n. 1514).
Neste contexto fica claro que em nenhum descendente de Adão o pecado original possui o caráter de culpa pessoal. É a privação da graça santificante em uma natureza que, por culpa dos primeiros pais, foi desviada do seu fim sobrenatural. É um “pecado da natureza”, comparável só analogicamente ao “pecado da pessoa”. No estado de justiça original, antes do pecado, a graça santificante era como o “dote” sobrenatural da natureza humana. Na “lógica” interior do pecado, que é rejeição da vontade de Deus, doador deste dom, está incluída a sua perda. A graça santificante cessou de constituir o enriquecimento sobrenatural daquela natureza que os primeiros pais transmitiram a todos os seus descendentes no estado em que se encontrava quando deram início às gerações humanas. Por isso o homem é concebido e nasce sem a graça santificante. Precisamente este “estado inicial” do homem, vinculado a sua origem, constitui a essência do pecado original como uma herança (“peccatum originale originatum”, como se costuma dizer).

6. Não podemos concluir esta Catequese sem reiterar o que afirmamos no início deste ciclo: isto é, que devemos considerar o pecado original em constante referência ao mistério da redenção realizada por Jesus Cristo, Filho de Deus, o qual “por nós, homens, e para nossa salvação... se fez homem”. Este artigo do Símbolo sobre a finalidade salvífica da Encarnação se refere principal e fundamentalmente ao pecado original. Também o Decreto do Concílio de Trento foi composto inteiramente em referência a esta finalidade, inserindo-se assim no ensinamento de toda a Tradição, que tem o seu ponto de partida na Sagrada Escritura, e antes de tudo no chamado “protoevangelho”, isto é, na promessa de um futuro vencedor de Satanás e libertador do homem, promessa já vislumbrada no Livro do Gênesis (Gn 3,15) e depois em tantos outros textos, até a expressão mais plena desta verdade, que nos é dada por São Paulo na Carta aos Romanos. Segundo o Apóstolo, com efeito, Adão é “figura daquele que havia de vir” (Rm 5,14). “Se pela transgressão de um só muitos morreram, muito mais abundou sobre muitos a graça de Deus, concedida na graça de um só homem, Jesus Cristo” (v. 15).
“Como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos” (v. 19). “Como pela transgressão de um só a condenação se estendeu a todos os homens, assim, pelo ato de justiça de um só se estendeu a todos a justificação que dá a vida” (v. 18).
O Concílio de Trento se refere particularmente ao texto paulino de Rm 5,12 como base do seu ensinamento, vendo afirmada nele a universalidade do pecado, mas também a universalidade da redenção. O Concílio remete também à prática do Batismo dos recém-nascidos, por causa da estrita relação do pecado original - como herança universal recebida com a natureza dos primeiros pais - com a verdade da redenção universal em Jesus Cristo.

54. Estado do homem caído
João Paulo II - 08 de outubro de 1986 

1. A profissão de fé pronunciada por Paulo VI em 1968, na conclusão do “Ano da Fé”, repropõe plenamente o ensinamento da Sagrada Escritura e da Sagrada Tradição sobre o pecado original. Escutemo-la novamente:
“Cremos que em Adão todos pecaram; isto significa que a culpa original, cometida por ele, fez com que a natureza humana, comum a todos os homens, caísse em um estado no qual padece as consequências dessa culpa, e que não é mais o estado em que no princípio se encontrava em nossos primeiros pais, constituídos em santidade e justiça, no qual o homem não conhecia nem o mal nem a morte. É a natureza humana assim decaída, despojada da graça que a revestia, ferida em suas próprias forças naturais e submetida ao domínio da morte, que é transmitida a todos os homens; é neste sentido que todo homem nasce em pecado. Professamos, pois, segundo o Concílio de Trento, que o pecado original é transmitido com a natureza humana, ‘não por imitação, mas por propagação’, e que, portanto, ‘é próprio a cada um’. Cremos que nosso Senhor Jesus Cristo, mediante o sacrifício da Cruz, nos resgatou do pecado original e de todos os pecados pessoais cometidos por cada um de nós, de maneira que, segundo a palavra do Apóstolo, ‘onde abundou o pecado, superabundou a graça’ (Rm 5,20).” (Credo do Povo de Deus, nn. 9-10).

2. A Profissão de Fé, dita também “Credo do Povo de Deus”, se refere na sequência, de maneira análoga ao Decreto do Concílio de Trento, ao santo Batismo, e antes de tudo àquele dos recém-nascidos: “de modo que, tendo nascido privados da graça sobrenatural, renasçam ‘da água e do Espírito Santo’ (Jo 3,5) para a vida divina em Jesus Cristo” (n. 11).
Como podemos ver, também este texto de Paulo VI confirma que toda a doutrina revelada sobre o pecado e em particular sobre o pecado original está sempre em estreita relação com o mistério da redenção. Assim procuramos apresentá-la também nestas Catequeses. Caso contrário, não seria possível compreender plenamente a realidade do pecado na história do homem. São Paulo o põe em evidência, especialmente na Carta aos Romanos, à qual faz referência o Concílio de Trento no Decreto sobre o pecado original.
Paulo VI, no “Credo do Povo de Deus”, repropôs na luz de Cristo Redentor todos os elementos da doutrina sobre o pecado original, contidos no Decreto tridentino.

3. A respeito do pecado dos primeiros pais, o “Credo do Povo de Deus” fala da “natureza humana decaída”. Para compreender bem o significado desta expressão é oportuno retornar à descrição da queda delineada pelo Gênesis. Esta contém também o castigo de Deus a Adão e Eva, sempre segundo a representação antropomórfica das intervenções divinas feita pelo Livro do Gênesis. Segundo a narração bíblica, depois do pecado o Senhor diz à mulher: “Multiplicarei os sofrimentos de tua gravidez. Entre dores darás à luz os filhos. A teu marido irá o teu desejo, e ele te dominará” (Gn 3,16).
Ao homem Deus disse: “Porque ouviste a voz da tua mulher e comeste da árvore da qual te ordenei não comer, maldito o solo por tua causa! Dele te alimentarás com sofrimento, todos os dias de tua vida. Espinhos e abrolhos ele produzirá, e tu te alimentarás das ervas do campo. Com o suor do teu rosto comerás o pão, até voltares ao solo do qual foste tirado. Porque tu és pó e ao pó hás de voltar” (Gn 3,17-19).

4. Estas palavras fortes e severas se referem à situação do homem no mundo, tal como resulta da história. O autor bíblico não hesita em atribuir a Deus algo como uma sentença de condenação. Esta implica a “maldição da terra”: a criação visível se tornou estranha e rebelde para o homem.
São Paulo falará de “submissão da criação à caducidade” por causa do pecado do homem, pelo qual também “toda a criação, até o presente, está gemendo como que em dores de parto” até que seja “libertada da escravidão da corrupção” (cf. Rm 8,19-22). Este desequilíbrio da criação exerce sua influência sobre o destino do homem no mundo visível. O trabalho, mediante o qual o homem conquista para si os meios de sustento, é realizado “com o suor do rosto”, unido, portanto, à fadiga. Toda a existência do homem é caracterizada pela fadiga e pelo sofrimento, e isto começa já com o nascimento, acompanhado pelas dores da parturiente e, ainda que inconscientes, pelas dores da própria criança, que geme e chora.

5. E, por fim, toda a existência do homem sobre a terra está sujeita ao medo da morte, que segundo a Revelação está claramente ligada ao pecado original. O próprio pecado é sinônimo da morte espiritual, porque mediante o pecado o homem perdeu a graça santificante, fonte da vida sobrenatural. Sinal e consequência do pecado original é a morte do corpo, tal como agora é experimentada por todos os homens. O homem foi criado por Deus para a imortalidade: a morte, que aparece como um trágico salto no escuro, constitui a consequência do pecado, quase por uma lógica imanente, mas sobretudo por castigo de Deus. Tal é o ensinamento da Revelação e tal é a fé da Igreja: sem o pecado, o final da prova terrena não seria tão dramático.
O homem foi criado por Deus também para a felicidade, que, no âmbito da existência terrena, deveria significar estar livres de muitos sofrimentos, pelo menos no sentido de uma possibilidade de isenção deles, “posse non pati”, bem como de isenção da morte, no sentido de “posse non mori”. Como vemos pelas palavras atribuídas a Deus no Gênesis e por muitos outros textos da Bíblia e da Tradição, com o pecado original esta isenção deixou de ser o privilégio do homem: sua vida na terra foi submetida a muitos sofrimentos e à necessidade de morrer (cf. Gn 3,16-19).

6. O “Credo do Povo de Deus” ensina que a natureza humana depois do pecado original já não se encontra “no estado em que no princípio se encontrava em nossos primeiros pais”. Encontra-se “decaída” (“lapsa”), porque privada do dom da graça santificante e também de outros dons que no estado de justiça original constituíam a perfeição (“integritas”) desta natureza. Trata-se não só da imortalidade e da isenção de muitos sofrimentos, dons perdidos por causa do pecado, mas também das disposições interiores da razão e da vontade, isto é, das energias habituais da razão e da vontade. Como consequência do pecado original, todo o homem, alma e corpo, foi afetado: “secundum animam et corpus”, precisa o Sínodo de Orange de 529, do qual faz eco o Decreto tridentino, observando que todo o homem foi deteriorado: “in deterius commutatum fuisse”.

7. Quanto às faculdades espirituais do homem, esta deterioração consiste no ofuscamento da capacidade do intelecto para conhecer a verdade e no debilitamento do livre-arbítrio, enfraquecido ante os atrativos dos bens sensíveis e mais exposto às falsas imagens dos bens elaboradas pela razão sob a influência das paixões. Mas, segundo o ensinamento da Igreja, trata-se de uma deterioração relativa, não absoluta, não intrínseca às faculdades humanas. Portanto, mesmo depois do pecado original, o homem pode conhecer com a inteligência as verdades naturais fundamentais, assim como as religiosas, e os princípios morais. Pode também realizar boas obras. Devemos, portanto, falar mais de um obscurecimento do intelecto e de um debilitamento da vontade, de “feridas” nas faculdades espirituais e nas sensitivas, e não de uma perda das suas capacidades essenciais, também em relação ao conhecimento e ao amor de Deus.
O Decreto tridentino [sobre a justificação] destaca esta verdade da saúde fundamental da natureza contra a tese contrária, sustentada por Lutero (e retomada mais tarde pelos jansenistas). Ensina que o homem, como consequência do pecado de Adão, não perdeu o livre-arbítrio (cân. 5: “liberum arbitrium... non amissum et exstinctum”; cf. Denzinger, n. 1555). O homem pode, pois, realizar atos que possuam um autêntico valor moral: bom ou mau. Isto só é possível graças à liberdade da vontade humana. O homem caído, porém, sem a ajuda de Cristo é incapaz de orientar-se para os bens sobrenaturais, que constituem sua plena realização e a sua salvação.

8. Na situação em que se encontra a natureza depois do pecado, e especialmente pela inclinação do homem mais para o mal do que para o bem, se fala de uma “inclinação para o pecado” (“fomes peccati”), da qual a natureza humana estava livre no estado de perfeição original (“integritas”). Esta “inclinação ao pecado” foi chamada pelo Concílio de Trento também de “concupiscência” (“concupiscentia”), acrescentando que esta perdura inclusive no homem justificado por Cristo; portanto, também depois do santo Batismo. O Decreto tridentino [sobre o pecado original] precisa claramente que a “concupiscência” em si mesma ainda não é pecado, mas “ex peccato est et ad peccatum inclinat”, “tem origem no pecado e inclina ao pecado” (Denzinger, n. 1515). A concupiscência, como consequência do pecado original, é fonte da inclinação para os vários pecados pessoais cometidos pelos homens com o mau uso das suas faculdades (o que chamamos “pecados atuais”, para distingui-los do pecado original). Tal inclinação permanece no homem inclusive depois do santo Batismo. Neste sentido, cada um de nós porta dentro de si a “inclinação” para o pecado.

9. A doutrina católica precisa e caracteriza o estado da natureza humana decaída (“natura lapsa”) nos termos que apresentamos com base nos dados da Sagrada Escritura e da Tradição. Esta é claramente proposta no Concílio de Trento e no “Credo” de Paulo VI. Mais uma vez, porém, observamos que, segundo esta doutrina, fundada na Revelação, a natureza humana não só está “decaída”, mas também é “redimida” em Jesus Cristo, de modo que “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5,20). Este é o verdadeiro contexto no qual devem ser considerados o pecado original e suas consequências.

Expulsão de Adão e Eva do paraíso
(Michelangelo - Capela Sistina)

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (01 de outubro e 08 de outubro de 1986).

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