Papa Francisco
Mensagem para a Quaresma de 2023
Ascese quaresmal, itinerário sinodal
Queridos irmãos e irmãs!
Os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas coincidem em narrar o episódio da Transfiguração de Jesus (Mt 17,1-9; Mc 9,2-10; Lc 9,28-36). Neste acontecimento, vemos a resposta do Senhor a uma falta de compreensão manifestada pelos seus discípulos. De fato, pouco antes registrara-se uma verdadeira divergência entre o Mestre e Simão Pedro; este começara professando a sua fé em Jesus como Cristo, o Filho de Deus (Mt 16,15-19), mas em seguida rejeitara o seu anúncio da Paixão e da Cruz (vv. 21-23). E Jesus censurara-o asperamente: «Afasta-te, Satanás! Tu és para Mim um estorvo, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens» (v. 23). Por isso, «seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e seu irmão João, e levou-os, só a eles, a um alto monte» (Mt 17,1).
O Evangelho da Transfiguração é
proclamado, cada ano, no II Domingo da Quaresma. Realmente, neste tempo
litúrgico o Senhor toma-nos consigo e conduz-nos à parte. Embora os nossos
compromissos ordinários nos peçam para permanecer nos lugares habituais,
transcorrendo uma vida quotidiana frequentemente repetitiva e por vezes
enfadonha, na Quaresma somos convidados a subir «a um alto monte» juntamente
com Jesus, para viver com o Povo santo de Deus uma particular experiência
de ascese.
A ascese quaresmal é um empenho, sempre
animado pela graça, no sentido de superar as nossas faltas de fé e as
resistências em seguir Jesus pelo caminho da cruz. Aquilo precisamente de que
Pedro e os outros discípulos tinham necessidade. Para aprofundar o nosso
conhecimento do Mestre, para compreender e acolher profundamente o mistério da
salvação divina, realizada no dom total de si mesmo por amor, é preciso
deixar-se conduzir por Ele à parte e ao alto, rompendo com a mediocridade e as
vaidades. É preciso pôr-se a caminho, um caminho em subida, que requer esforço,
sacrifício e concentração, como uma excursão na montanha. Estes requisitos são
importantes também para o caminho sinodal que nos comprometemos, como Igreja, a
realizar. Fará bem a nós refletir sobre esta relação que existe entre a ascese
quaresmal e a experiência sinodal.
Para o «retiro» no Monte Tabor, Jesus
leva consigo três discípulos, escolhidos para serem testemunhas de um
acontecimento singular; Ele deseja que aquela experiência de graça não seja
vivida solitariamente, mas de forma compartilhada, como é, aliás, toda a nossa
vida de fé. Seguimos Jesus juntos; e juntos, como Igreja peregrina no tempo,
vivemos o Ano Litúrgico e, nele, a Quaresma, caminhando com aqueles que o
Senhor colocou ao nosso lado como companheiros de viagem. À semelhança da
subida de Jesus e dos discípulos ao Monte Tabor, podemos dizer que o nosso
caminho quaresmal é «sinodal», porque o percorremos juntos pelo mesmo caminho,
discípulos do único Mestre. Mais ainda, sabemos que Ele mesmo é o
Caminho (Jo 14,6) e, por conseguinte, tanto no itinerário
litúrgico como no do Sínodo, a Igreja não faz outra coisa senão entrar cada vez
mais profunda e plenamente no mistério de Cristo Salvador.
E chegamos ao momento culminante. O
Evangelho narra que Jesus «transfigurou-Se diante deles: o seu rosto resplandeceu
como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz» (Mt 17,2).
Aqui aparece o «cume», a meta do caminho. No final da subida, enquanto estão no
alto do monte com Jesus, os três discípulos recebem a graça de O verem na sua
glória, resplandecente de luz sobrenatural, que não vinha de fora, mas
irradiava d’Ele mesmo. A beleza divina desta visão mostrou-se incomparavelmente
superior a qualquer cansaço que os discípulos pudessem ter sentido enquanto
subiam ao Tabor. Como toda a esforçada excursão na montanha, ao subir é preciso
manter os olhos bem fixos no caminho; mas o panorama que se deslumbra no final
surpreende e compensa pela sua maravilha. Com frequência também o processo
sinodal se apresenta árduo e por vezes podemos até desanimar; mas aquilo que
nos espera no final é algo, sem dúvida, maravilhoso e surpreendente, que nos
ajudará a compreender melhor a vontade de Deus e a nossa missão ao serviço do
seu Reino.
Transfiguração do Senhor (Girolamo da Santacroce) |
A experiência dos discípulos no monte
Tabor torna-se ainda mais enriquecedora quando, ao lado de Jesus transfigurado,
aparecem Moisés e Elias, que personificam respetivamente a Lei e os Profetas (Mt 17,3).
A novidade de Cristo é cumprimento da antiga Aliança e das promessas; é
inseparável da história de Deus com o seu povo, e revela o seu sentido
profundo. De forma análoga, o caminho sinodal está radicado na tradição da
Igreja e, ao mesmo tempo, aberto para a novidade. A tradição é fonte de
inspiração para procurar estradas novas, evitando as contrapostas tentações do
imobilismo e da experimentação improvisada.
O caminho ascético quaresmal e, de modo
semelhante, o sinodal, têm como meta uma transfiguração pessoal e eclesial. Uma
transformação que, em ambos os casos, encontra o seu modelo na de Jesus e
realiza-se pela graça do seu Mistério Pascal. Para que, neste ano, se possa
realizar em nós tal transfiguração, quero propor duas «veredas» que é
necessário percorrer para subir juntamente com Jesus e chegar com Ele à meta.
A primeira diz respeito à ordem que
Deus Pai dirige aos discípulos no Tabor, enquanto estão contemplando Jesus
transfigurado. A voz da nuvem diz: «Escutai-O» (Mt 17,5). Assim a
primeira indicação é muito clara: escutar Jesus. A Quaresma é tempo de graça na
medida em que nos colocamos à escuta d’Ele, que nos fala. E como Ele nos fala?
Antes de tudo na Palavra de Deus, que a Igreja nos oferece na Liturgia: não a
deixemos cair no vazio; se não podermos participar sempre na Missa, ao menos
leiamos as leituras bíblicas de cada dia valendo-nos até da ajuda da internet.
Além da Sagrada Escritura, o Senhor fala-nos nos irmãos, sobretudo nos rostos e
vicissitudes daqueles que precisam de ajuda. Mas quero acrescentar ainda outro
aspecto, muito importante no processo sinodal: a escuta de Cristo passa também
através da escuta dos irmãos e irmãs na Igreja; em algumas fases, esta escuta
recíproca é o objetivo principal, mas permanece sempre indispensável no método
e estilo de uma Igreja sinodal.
Ao ouvir a voz do Pai, «os discípulos
caíram com a face por terra, muito assustados. Aproximando-Se deles, Jesus
tocou-lhes dizendo: “Levantai-vos e não tenhais medo”. Erguendo os olhos, os
discípulos apenas viram Jesus e mais ninguém» (Mt 17,6-8). E aqui
temos a segunda indicação para esta Quaresma: não se refugiar em uma
religiosidade feita de acontecimentos extraordinários, de sugestivas
experiências, levados pelo medo de encarar a realidade com as suas fadigas
diárias, as suas durezas e contradições. A luz que Jesus mostra aos seus
discípulos é uma antecipação da glória pascal, e é rumo a esta que se torna
necessário caminhar seguindo «apenas Jesus e mais ninguém». A Quaresma
orienta-se para a Páscoa: o «retiro» não é um fim em si mesmo, mas prepara-nos
para viver - com fé, esperança e amor - a Paixão e a Cruz, a fim de chegarmos à
Ressurreição. Também o percurso sinodal não nos deve iludir quanto ao ponto de
chegada, que não é quando Deus nos dá a graça de algumas experiências fortes de
comunhão, pois aí o Senho também nos repete: «Levantai-vos e não tenhais medo».
Desçamos à planície e que a graça experimentada nos sustente para sermos
artesãos de sinodalidade na vida ordinária das nossas comunidades.
Queridos irmãos e irmãs, que o Espírito
Santo nos anime nesta Quaresma na subida com Jesus, para fazermos experiência
do seu esplendor divino e assim, fortalecidos na fé, prosseguirmos o caminho
com Ele, glória do seu povo e luz das nações.
Roma, em São João de Latrão, na Festa
da Conversão de São Paulo, 25 de janeiro de 2023.
FRANCISCO
Fonte: Santa Sé.
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