terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Catequese do Papa Bento XVI: Quaresma (2011)

Dando início ao Tempo da Quaresma, meditemos a Catequese proferida pelo Papa Bento XVI (†2022) na Quarta-feira de Cinzas de 2011, na qual este destaca o itinerário batismal celebrado nos domingos desse tempo no Ano A:

Papa Bento XVI
Audiência Geral
Quarta-feira, 09 de março de 2011
Quaresma

Queridos irmãos e irmãs,
Hoje, marcados pelo austero símbolo das cinzas, entramos no Tempo da Quaresma, iniciando um itinerário espiritual que nos prepara para celebrar dignamente os Mistérios Pascais. As cinzas abençoadas, impostas sobre a nossa cabeça, são um sinal que nos recorda a nossa condição de criaturas, que nos convida à penitência e a intensificar o compromisso de conversão para seguir cada vez mais o Senhor.


A Quaresma é um caminho, é acompanhar Jesus que sobe a Jerusalém, lugar do cumprimento do seu mistério de Paixão, Morte e Ressurreição; recorda-nos que a vida cristã é um «caminho» a percorrer, e que consiste não tanto em uma lei a observar, mas na própria pessoa de Cristo a encontrar, receber e seguir. Com efeito, Jesus diz-nos: «Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me» (Lc 9,23). Ou seja, diz-nos que para chegar com Ele à luz e à alegria da Ressurreição, à vitória da vida, do amor e do bem, também nós temos que tomar a cruz todos os dias, como nos exorta uma bonita página da Imitação de Cristo:

«Portanto, toma a tua cruz e segue Jesus; assim entrarás na vida eterna. Foste precedido por Ele mesmo, que carregou a tua cruz (cf. Jo 19,17) e nela morreu por ti, a fim de que também tu carregues a tua cruz e desejes nela ser crucificado. Com efeito, “se morreres com Ele, viverás com Ele” (cf. Rm 6,8); se fores seu companheiro no sofrimento, o serás também na glória» (Imitação de Cristo, Livro 2, cap. 12, n. 2).

Na Santa Missa do I Domingo de Quaresma, rezamos: «Ó Deus, nosso Pai, com a celebração desta Quaresma, sinal sacramental da nossa conversão, concedei a nós, vossos fiéis, crescer no conhecimento do mistério de Cristo e testemunhá-lo com uma digna conduta de vida» [1]. É uma invocação que dirigimos a Deus, porque sabemos que só Ele pode converter o nosso coração. E é sobretudo na Liturgia, na participação nos Santos Mistérios, que nós somos levados a percorrer este caminho com o Senhor; é um pôr-nos na escola de Jesus, repercorrendo os acontecimentos que nos trouxeram a salvação, mas não como uma simples comemoração, uma lembrança de acontecimentos passados. Nos gestos litúrgicos, Cristo torna-se presente através da obra do Espírito Santo, aqueles eventos salvíficos tornam-se atuais. Há uma palavra-chave que é citada com frequência na Liturgia para indicar isto: a palavra «hoje»; e ela deve ser entendida em sentido originário e concreto, não metafórico. Hoje Deus revela a sua lei e hoje nos é dado escolher entre o bem e o mal, entre a vida e a morte (cf. Dt 30,19); hoje «o Reino de Deus está próximo»: portanto, «Convertei-vos e crede no Evangelho» (Mc 1,15); hoje Cristo morreu no Calvário e ressuscitou dos mortos, subiu ao céu e está sentado à direita do Pai; hoje nos é conferido o Espírito Santo; hoje é um tempo favorável (2Cor 6,2). Participar na Liturgia significa, pois, mergulhar a própria vida no mistério de Cristo, na sua presença permanente, percorrer um caminho em que entramos na sua Morte e Ressurreição para receber a vida.

Nos domingos da Quaresma, de modo totalmente particular neste Ano Litúrgico do ciclo A, somos introduzidos a viver um itinerário batismal, como que a repercorrer o caminho dos catecúmenos, daqueles que se preparam para receber o Batismo, para reavivar em nós este dom e para fazer com que a nossa vida recupere as exigências e os compromissos deste Sacramento, que está na base da nossa vida cristã. Na Mensagem que enviei para esta Quaresma, desejei evocar o nexo particular que une o Tempo Quaresmal ao Batismo. Desde sempre a Igreja associa a Vigília Pascal à celebração do Batismo, passo por passo: é nele que se realiza aquele grande mistério pelo qual o homem, morto para o pecado, se torna participante da vida nova em Cristo Ressuscitado e recebe o Espírito de Deus que ressuscitou Jesus dos mortos (cf. Rm 8,11). As leituras que ouviremos nos próximos domingos, e às quais vos convido a prestar especial atenção, são tiradas precisamente da antiga tradição, que acompanhava o catecúmeno na descoberta do Batismo: elas são o grande anúncio daquilo que Deus realiza neste sacramento, uma maravilhosa catequese batismal dirigida a cada um de nós.

O I Domingo, chamado Domingo da Tentação, porque apresenta as tentações de Jesus no deserto, convida-nos a renovar a nossa decisão definitiva por Deus e a enfrentar com coragem a luta que nos espera para lhe permanecermos fiéis. Apresenta-se sempre de novo esta necessidade de decisão, de resistir ao mal, de seguir Jesus. Neste Domingo a Igreja, depois de ter ouvido o testemunho dos padrinhos e dos catequistas, celebra a Eleição daqueles que são admitidos aos Sacramentos pascais.

O II Domingo é chamado de Abraão e da Transfiguração. O Batismo é o sacramento da fé e da filiação divina; como Abraão, pai dos fiéis, também nós somos convidados a partir, a sair da nossa terra, a deixar as seguranças que construímos, e voltar a depositar a nossa confiança em Deus; a meta entrevê-se na Transfiguração de Cristo, o Filho amado no qual também nós somos «filhos de Deus».


Nos domingos seguintes o Batismo é apresentado através das imagens da água, da luz e da vida.

III Domingo faz-nos encontrar a Samaritana (cf. Jo 4,5-42). Como Israel no êxodo, também nós no Batismo recebemos a água salvífica; como diz à Samaritana, Jesus tem uma água de vida, que sacia toda a sede, e esta água é o seu próprio Espírito. Neste Domingo, a Igreja celebra o I Escrutínio dos catecúmenos e, durante a semana, entrega-lhes o Símbolo: a Profissão da fé, o Credo.

IV Domingo faz-nos meditar sobre a experiência do cego de nascença (cf. Jo 9,1-41). No Batismo somos libertados das trevas do mal e recebemos a luz de Cristo para viver como filhos da luz. Também nós devemos aprender a ver a presença de Deus no rosto de Cristo e assim a luz. No caminho dos catecúmenos celebra-se o II Escrutínio.

Enfim, o V Domingo apresenta-nos a ressurreição de Lázaro (cf. Jo 11,1-45). No Batismo, nós passamos da morte para a vida, tornando-nos capazes de agradar a Deus, de fazer morrer o homem velho para viver do Espírito do Ressuscitado. Para os catecúmenos, celebra-se o III escrutínio e durante a semana eles recebem a oração do Senhor: o Pai-nosso.

Este itinerário da Quaresma que somos convidados a percorrer é caracterizado, na tradição da Igreja, por algumas práticas: o jejum, a esmola e a oração. O jejum significa a abstinência do alimento, mas abrange outras formas de privação para uma vida mais sóbria. Porém, tudo isto ainda não é a realidade completa do jejum: é o sinal externo de uma realidade interior, do nosso compromisso, com a ajuda de Deus, de nos abstermos do mal e de vivermos do Evangelho. Não jejua verdadeiramente quem não sabe alimentar-se da Palavra de Deus.

Na tradição cristã, o jejum está ligado estreitamente à esmola. São Leão Magno ensinava em um dos seus discursos sobre a Quaresma: «Aquilo que cada cristão deve realizar em todos os tempos, agora deve praticá-lo com maiores solicitude e devoção, para que se cumpra a norma apostólica do jejum quaresmal, que consiste na abstinência não apenas dos alimentos, mas também e sobretudo dos pecados. Além disso, a estes jejuns obrigatórios e santos, nenhuma obra pode ser associada mais utilmente que a esmola que, sob o único nome de “misericórdia” [2], inclui muitas obras boas. Imenso é o campo das obras de misericórdia. Não só os ricos e abastados podem beneficiar os outros com a esmola, mas também quantos vivem em condições modestas e pobres. Assim, desiguais nos bens de fortuna, todos podem ser iguais nos sentimentos de piedade da alma» (Discurso 6 sobre a Quaresma, 2; PL 54, 286). Na sua Regra Pastoral, São Gregório Magno recordava que o jejum se torna santo através das virtudes que o acompanham, sobretudo da caridade e de cada gesto de generosidade, que confere aos pobres e aos necessitados o fruto da nossa privação (cf. Regra Pastoral 19, 10-11).

Além disso, a Quaresma é um período privilegiado para a oração. Santo Agostinho diz que o jejum e a esmola são «as duas asas da oração», que lhe permitem tomar mais facilmente o seu impulso e chegar até Deus. Ele afirma: «Deste modo a nossa oração, feita de humildade e caridade, no jejum e na esmola, na temperança e no perdão das ofensas, oferecendo coisas boas e não restituindo as más, afastando-se do mal e praticando o bem, procura e alcança a paz. Com as asas destas virtudes, a nossa oração voa com segurança e é levada mais facilmente até ao céu, onde nos precedeu Cristo nossa paz» (Sermão 206, 3º sobre a Quaresma; PL 38, 1042). A Igreja sabe que, pela nossa debilidade, é difícil manter-se silêncio para nos colocarmos diante de Deus e adquirirmos a consciência da nossa condição de criaturas que dependem d’Ele, de pecadores necessitados do seu amor; por isso, na Quaresma, convida a uma oração mais fiel e intensa, e a uma prolongada meditação sobre a Palavra de Deus. São João Crisóstomo exorta: «Adorna a tua casa de modéstia e humildade, mediante a prática da oração. Torna maravilhosa a tua habitação com a luz da justiça; ornamenta as suas paredes com as boas obras, como de um verniz de ouro puro, e no lugar dos muros e das pedras preciosas, coloca a fé e a magnanimidade sobrenatural, pondo acima de todas as coisas, no auge de tudo, a oração como decoração de todo o conjunto. Assim preparas uma moradia digna do Senhor, assim o recebes em uma mansão maravilhosa. Ele te concederá transformar a tua alma em templo da sua presença» (Homilia 6 sobre a Oração; PG 64, 466).

Caros amigos, neste caminho quaresmal, estejamos atentos a acolher o convite de Cristo a segui-lo de modo mais decidido e coerente, renovando a graça e os compromissos do nosso Batismo, para abandonar o homem velho que está em nós e para nos revestirmos de Cristo, em vista de chegarmos renovados à Páscoa e de podermos dizer juntamente com São Paulo: «Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20). Bom caminho quaresmal a todos vós!


Notas:

[1] Oração do dia do I Domingo da Quaresma. No original em italiano citado pelo Papa: “O Dio, nostro Padre, con la celebrazione di questa Quaresima, segno sacramentale della nostra conversione, concedi a noi, tuoi fedeli, di crescere nella conoscenza del mistero di Cristo e di testimoniarlo con una degna condotta di vita”.
A tradução oficial para o português do Brasil é ligeiramente distinta: “Concedei-nos, ó Deus onipotente, que, ao longo desta Quaresma, possamos progredir no conhecimento de Jesus Cristo e corresponder ao seu amor por uma vida santa” (Missal Romano, p. 181).

[2] Esmola, do latim elemosyna, provém do grego ἔλεος (eleos), misericórdia.

Fonte: Santa Sé.

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