As Catequeses de São João Paulo II sobre Deus Pai estão divididas em duas partes: “Quem é Deus?” (nn. 1-23) e “Deus Criador e Providente” (nn. 24-59). Dando início à segunda parte, confira a reflexão do Papa polonês sobre “o mistério da criação”:
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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI
1.2 DEUS CRIADOR E PROVIDENTE
I. A criação do mundo e do homem (nn. 24-32)
24. O mistério da criação
João Paulo II - 08 de janeiro de 1986
1. Na inevitável e necessária
reflexão que o homem de cada tempo está inclinado a fazer sobre a própria vida,
duas perguntas emergem com força, quase como eco da própria voz de Deus: “De
onde viemos? Para onde vamos?”. Enquanto a segunda pergunta se refere ao futuro
último, à meta definitiva, a primeira se refere à origem do mundo e do homem, e
é igualmente fundamental. Por isso nos impressiona com razão o extraordinário
interesse pelo problema das origens. Não se trata apenas de saber quando e como
surgiu materialmente o cosmos e apareceu o homem, mas sim de descobrir que
sentido tem tal origem, se a preside o acaso, o destino cego, ou um Ser
transcendente, inteligente e bom, chamado Deus. No mundo, de fato, existe o mal
e o homem que o experimenta não pode deixar de se perguntar de onde provém e quem
é responsável por ele, e se existe uma esperança de libertação. “Que é o homem
para dele te lembrares?”, se pergunta em resumo o salmista, admirado diante do
acontecimento da criação (Sl 8,5).
Deus Criador (William Blake) |
2. A pergunta sobre a criação surge
na alma de todos, do homem simples e do douto. Pode-se dizer que a ciência
moderna nasceu em estreita conexão, ainda que nem sempre em boa harmonia, com a
verdade bíblica da criação. E hoje, tendo esclarecido melhor as relações mútuas
entre verdade científica e verdade religiosa, muitíssimos cientistas, ao mesmo
tempo em que se colocam legitimamente problemas não pequenos - como os relativos
à evolução das formas viventes, em particular do homem, ou o que trata do
finalismo imanente ao próprio cosmos em seu devir -, vão assumindo uma atitude
cada vez mais solidária e respeitosa em relação à fé cristã sobre a criação. Eis,
pois, um campo que se abre para um diálogo benéfico entre modos de aproximação
à realidade do mundo e do homem reconhecidos lealmente como diversos, embora
convergentes em um nível mais profundo a favor do único homem, criado - como
diz a Bíblia em sua primeira página - “à imagem de Deus” e, portanto, como “dominador”
inteligente e sábio do mundo (cf. Gn 1,27-28).
3. Nós, cristãos, reconhecemos com
íntimo espanto, embora com a devida atitude crítica, que em todas as religiões,
desde as mais antigas e agora desaparecidas, às hoje presentes em todo o
planeta, se busca uma “resposta aos profundos enigmas da condição humana... que
é o homem, qual o sentido e o fim de nossa vida, o que é bem e o que é pecado,
qual a origem e a finalidade dos sofrimentos... enfim, o que é aquele supremo e
inefável mistério que envolve a nossa existência, de onde nos originamos e para
o qual tendemos?” (Declaração Nostra aetate, n. 1). Seguindo o
Concílio Vaticano II na sua Declaração Nostra aetate sobre as relações
da Igreja com as religiões não cristãs, reafirmamos que “a Igreja Católica nada
rejeita do que há de verdadeiro e santo nestas religiões”, já que “não raro
refletem raios daquela verdade que ilumina todos os homens” (ibid., n.
2). E, por outro lado, a visão bíblico-cristã das origens do cosmos e
particularmente da história do homem é tão inegavelmente grande, vivificadora e
original - e teve um impacto tão significativo na formação espiritual, moral e
cultural de povos inteiros durante mais de vinte séculos - que falar dela explicitamente,
ainda que sinteticamente, é um dever que nenhum Pastor e nenhum catequista pode
negligenciar.
4. A revelação cristã manifesta verdadeiramente
uma extraordinária riqueza a respeito do mistério da criação, sinal não pequeno
e mui comovente da ternura de Deus, que precisamente nos momentos mais
angustiantes da existência humana, da sua origem ao seu destino futuro, quis se
fazer presente com uma palavra contínua e coerente, ainda que na variedade das
expressões culturais.
Assim, a Bíblia se abre em
absoluto com um primeiro e logo com um segundo relato da criação, onde a origem
de tudo está em Deus: as coisas, a vida, o homem (Gn 1–2). Esses
dois relatos entrelaçam-se com outro capítulo sobre a origem do pecado e do mal,
desta vez a partir do homem, não sem a tentação do maligno (Gn 3). Mas
Deus não abandona aqui as suas criaturas: e assim uma pequena chama de
esperança se acende para o futuro de uma nova criação liberta do mal (é o
chamado protoevangelho: Gn 3,15; 9,13). Estes três fios - a ação
criadora e positiva de Deus, a rebelião do homem e, já desde as origens, a
promessa por parte de Deus de um mundo novo - formam o tecido da história da
salvação, determinando o conteúdo global da fé cristã na criação.
5. Enquanto nas próximas catequeses
sobre a criação será dado o devido lugar à Escritura como fonte essencial, será
minha tarefa recordar a grande tradição da Igreja, primeiro com as expressões
dos Concílios e do Magistério ordinário, e também com as apaixonantes e
penetrantes reflexões de tantos teólogos e pensadores cristãos.
Como em um caminho constituído por
muitas etapas, a catequese sobre a criação tocará antes de tudo o fato admirável
da mesma, como o professamos ao início do Creio, o Símbolo Apostólico: “Creio
em Deus... Criador do céu e da terra”. Refletiremos sobre o mistério do chamado
de toda a realidade criada do nada, admirando ao mesmo tempo a onipotência de
Deus e a alegre surpresa de um mundo contingente que existe em virtude dessa
onipotência. Poderemos reconhecer que a criação é obra amorosa da Trindade
Santíssima e é revelação da sua glória, o que não anula - ao contrário, afirma
- a legítima autonomia das coisas criadas, enquanto ao homem, como centro do
cosmos, é reservada uma especial atenção, em sua realidade de “imagem de Deus”,
de ser espiritual e corporal, sujeito de conhecimento e de liberdade. Outros
temas nos ajudarão mais adiante a explorar este formidável acontecimento
criador, particularmente o governo de Deus sobre o mundo, sua onisciência e
providência, e como à luz do amor fiel de Deus o enigma do mal e do sofrimento encontra
a sua pacificadora solução.
6. Depois que Deus manifestou a Jó
seu divino poder criador (Jó 38–41), este respondeu ao Senhor e
disse: “Reconheço que podes tudo e que nada é impossível para ti... Eu te conhecia
só por ouvir dizer, mas agora te vejo com meus próprios olhos” (Jó 42,2.5)
[1]. Possa nossa reflexão sobre a criação conduzir- nos à descoberta de que, no
ato da fundação do mundo e do homem, Deus semeou o primeiro testemunho
universal do seu amor poderoso, a primeira profecia da história da nossa
salvação.
João Paulo II em 1986 |
Nota:
[1] Na tradução da Bíblia
publicada pela CNBB, que estamos utilizando nestas postagens, o v. 2 aparece
como “Reconheço que podes tudo e que para ti nenhum pensamento é oculto”. A
tradução usada pelo Papa João Paulo II na Catequese, porém, foi: “Comprendo che puoi tutto e che nessuna cosa
è impossibile a te”.
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (08 de janeiro de 1986).
aa
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