terça-feira, 18 de outubro de 2022

Leitura litúrgica da Carta aos Hebreus (3)

“Devia fazer-se em tudo semelhante aos irmãos, para se tornar um sumo sacerdote misericordioso e digno de confiança” (Hb 2,17).

Nas duas postagens anteriores desta série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura iniciamos um estudo sobre a presença da Carta aos Hebreus (Hb) nas celebrações do Rito Romano.

Após uma breve introdução a esse grande escrito sobre o sacerdócio de Cristo, analisamos sua leitura sob o critério da composição harmônica - sintonia com o tempo ou a festa litúrgica [1] - na Celebração Eucarística, nos demais sacramentos e em alguns sacramentais. Cabe-nos agora contemplar as bênçãos e a Liturgia das Horas.

Para acessar a 1ª parte da pesquisa, clique aqui; para acessar a 2ª parte, clique aqui.

Cristo Sacerdote rodeado por virtudes e citações do Novo Testamento
(Abadia de Mont Sainte-Odile, França)

2. Leitura litúrgica da Carta aos Hebreus: Composição harmônica

c) Sacramentais

Tendo considerado os sacramentais que se referem à consagração de pessoas e lugares na postagem anterior, resta-nos contemplar as leituras da Carta aos Hebreus nas bênçãos, leituras estas propostas ad libitum (à escolha) em seis formulários:

- Bênção de peregrinos por ocasião da partida: Hb 10,19-25 [2]. Sendo a peregrinação um itinerário espiritual, a leitura nos recorda que Cristo “nos abriu um caminho novo e vivo” para a “casa de Deus” (vv. 20-21);

- Bênção de peregrinos antes ou depois do retorno: Hb 13,12-21 [3], recordando-nos que toda a vida é uma peregrinação, pois “não temos aqui cidade permanente, mas vamos em busca da cidade futura” (v. 14);

- Bênção de nova casa religiosa: Hb 13,1-3.5-7.14-17 [4]. Esses versículos recolhem uma série de exortações: ao amor fraterno, à hospitalidade, à pobreza, à obediência, todas virtudes fundamentais para a vida religiosa;

- Bênção de edifício sede de comunicação: Hb 4,12-16 [5], o célebre texto sobre a Palavra de Deus a ser comunicada, a qual é “viva e eficaz” (v. 12);

- Bênção da mesa antes das refeições: Hb 13,1-2 [6], uma exortação à perseverança no amor fraterno e na hospitalidade;

- Bênção de uma nova cruz para veneração pública: Hb 4,12-16 [7], apresentando a cruz como “trono da graça” pelo qual alcançamos misericórdia (v. 16).

d) Liturgia das Horas

Concluímos nosso percurso pela leitura em composição harmônica da Carta aos Hebreus com a Liturgia das Horas. Começaremos essa etapa do percurso pelas leituras longas, proferidas no Ofício das Leituras, as quais são cinco:

Primeiramente, no Ofício das Leituras da Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus (01 de janeiro), na oitava do Natal, lemos Hb 2,9-17 [8], texto no qual o autor afirma que Cristo participou da nossa condição (v. 14), fazendo-se “em tudo semelhante aos irmãos” (v. 17), afirmações que devem ser lidas aqui à luz do mistério da Encarnação.

Durante a V semana da Quaresma e a Semana Santa, como veremos na próxima postagem desta série, tem lugar a leitura semicontínua de Hebreus no Ofício. Nos últimos três dias da Semana Santa, porém, se interrompe a sequência e a leitura da Carta segue o critério da composição harmônica:

Mosaico do Crucificado com vestes sacerdotais
(Evangeliário do Ano da Misericórdia)

Ofício das Leituras da Quinta-feira SantaHb 4,14–5,10 [9], destacando-se a afirmação de que Jesus Cristo “foi proclamado por Deus sumo sacerdote na ordem de Melquisedec” (v. 10). Melquisedec, com efeito, aparece como uma prefiguração de Cristo sacerdote, oferecendo a Deus pão e vinho (Gn 14,18; cf. Hb 7). A mesma leitura recorda a obediência, os sofrimentos e a compaixão de Cristo, inserindo-nos já no mistério da Paixão;

- Ofício das Leituras da Sexta-feira Santa: Hb 9,11-28 [10], a proclamação da morte salvífica de Cristo: “com o seu próprio sangue ele entrou no Santuário, uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna” (v. 12);

- Ofício das Leituras do Sábado Santo: Hb 4,1-13 [11]. Uma vez que nesse dia contemplamos o sepultamento do Senhor, a perícope nos exorta a “entrar no repouso de Deus” (v. 1) e a viver de acordo com a sua Palavra, para que a morte não nos encontre em pecado.

Cabe recordar que tanto a Introdução Geral da Liturgia das Horas (n. 210) quanto a Carta Circular Paschalis Sollemnitatis (n. 40) recomendam vivamente a celebração do Ofício das Leituras com o povo nestes dias, sobretudo na Sexta-feira e no Sábado [12]. Esta oração é conhecida como “Ofício das Trevas”, em alusão à escuridão que cobriu a terra na Morte do Senhor (cf. Mt 27,45 e paralelos). Para saber mais, confira nossa postagem sobre o Ofício das Trevas.

Por fim, encontramos a última leitura longa de Hb em composição harmônica no Ofício das Leituras da Solenidade de São José, Esposo da Virgem Maria (19 de março): Hb 11,1-16 [13]. Trata-se de um trecho do “elogio dos antepassados” por sua fé: os Patriarcas do Antigo Testamento, com efeito, “puderam ver e saudar de longe” (v. 13) a realização da promessa, que seu descendente José contemplou no Menino nascido de Maria.

Das leituras longas passamos às leituras breves de Hebreus na Liturgia das Horas, proclamadas nas Laudes, na Hora Média e nas Vésperas, as quais são bem mais numerosas.

Seguindo o ciclo do Ano Litúrgico (Próprio do Tempo), iniciamos no Ciclo do Natal com uma leitura da nossa Carta. Nas Laudes da Solenidade do Natal do Senhor (25 de dezembro) e do dia 29 de dezembro lemos Hb 1,1-2 [14], parte do “prólogo teológico” da obra, lido também na Missa do Dia do Natal, definindo a Encarnação de Cristo como a plenitude da Revelação.

Os antepassados de Cristo (Michael Willmann)
A fé dos antepassados é elogiada em Hb 11

Passando ao Ciclo da Páscoa, na Hora Média (15h) das quintas-feiras da Quaresma até a IV semana lê-se Hb 10,35-36 [15], uma exortação à perseverança em cumprir a vontade de Deus.

Na Hora Média (15h) das quartas-feiras da V semana da Quaresma e da Semana Santa, por sua vez, lemos Hb 9,28 [16], lembrando-nos que Cristo ofereceu-se “uma vez por todas, para tirar os pecados” daqueles que n’Ele esperam.

Nas quintas-feiras da V semana da Quaresma e da Semana Santa todas as leituras breves são tiradas da Carta aos Hebreus:
Laudes: Hb 2,9b-10, um convite a contemplar Jesus “coroado de glória e honra, por ter sofrido a morte”;
Hora Média (9h): Hb 4,14-15, Cristo é um sumo sacerdote “capaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois Ele mesmo foi provado em tudo como nós”;
Hora Média (12h): Hb 7,26-27, Cristo é o sumo sacerdote “santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores e elevado acima dos céus”;
Hora Média (15h): Hb 9,11-12, Cristo ofereceu o sacrifício do próprio sangue “uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna”;
Vésperas: Hb 13,12-15, o sacrifício de Cristo foi oferecido fora da cidade, pois “não temos aqui cidade permanentes, mas estamos à espera daquela que está para vir” [17].

Nas II Vésperas dos Domingos do Tempo Pascal e nas Laudes da Solenidade da Ascensão do Senhor a leitura é Hb 10,12-14 [18]: após oferecer o sacrifício do seu Corpo e Sangue, Cristo sentou-se para sempre à direita de Deus” (v. 12).

Para as Vésperas das segundas-feiras do Tempo Pascal até a VI semana e para a Hora Média (12h) da Solenidade da Ascensão do Senhor o texto proposto é Hb 8,1b-3a [19], sobre a mesma verdade de fé: “Temos um sumo sacerdote tão grande que se assentou à direita do trono da majestade, nos céus” (v. 1b).

O Crucificado-Ressuscitado, elevado ao céu, intercede por nós junto ao Pai
(Seminário São José, Dunwoodie, EUA)

Nas Vésperas das quartas-feiras do Tempo Pascal até a VI semana lê-se Hb 7,24-27 [20], professando que o Cristo Ressuscitado “permanece para a eternidade”: “por isso Ele é capaz de salvar para sempre aqueles que, por seu intermédio, se aproximam de Deus”.

Por fim, nas Vésperas das sextas-feiras do Tempo Pascal até a VI semana proclama-se Hb 5,8-10 [21], recordando-nos que Cristo é “causa de salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (v. 9).

Do Próprio do Tempo passamos ao Próprio dos Santos, no qual identificamos primeiramente a presença do nosso livro em duas celebrações cristológicas com data fixa:

Festa da Apresentação do Senhor (02 de fevereiro):
- I Vésperas: Hb 10,5-7. Estas I Vésperas só são celebradas quando a festa cai no domingo. A leitura coloca a vida de Cristo, desde a Encarnação, sob o sinal da obediência: “Eu vim, ó Deus, para fazer a tua vontade” (v. 7).
- II Vésperas: Hb 4,15-16, recordando-nos que Cristo “foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” [22];

Festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro):
- Laudes: Hb 2,9b-10, Cristo, por sua morte, foi “coroado de glória e honra”;
- Hora Média (9h): Hb 5,7-9, Cristo “aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que Ele sofreu”, tornando-se “causa de salvação eterna” [23].

Ainda no Próprio dos Santos, lemos um texto da nossa Carta nas I Vésperas da Solenidade de Todos os Santos (01 de novembro): Hb 12,22-24 [24]. Os santos integram a Jerusalém celeste, são a “assembleia dos primogênitos, cujos nomes estão escritos nos céus; (...) os espíritos dos justos, que chegaram à perfeição”.

Por fim, a Igreja põe ainda em nossos lábios e em nossos ouvidos textos da Carta aos Hebreus em composição harmônica no Comum dos Santos:

- Hora Média (12h) do Comum de vários Mártires (exceto no Tempo Pascal): Hb 11,33 [25] - “Os santos, pela fé, conquistaram reinos, praticaram a justiça...”;

- Laudes do Comum dos Pastores: Hb 13,7-9a [26] - “Lembrai-vos de vossos dirigentes, que vos pregaram a Palavra... imitai-lhes a fé”.

Ícone bizantino de Cristo Sumo Sacerdote
(Ὁ Μέγας Ἀρχιερεύς)

Encerramos assim a terceira parte do nosso estudo sobre a leitura litúrgica da Carta aos Hebreus e com ela a análise sob o critério da composição harmônica. A importância deste escrito demanda uma quarta parte (a ser publicada na terça-feira, 25 de outubro), que será dedicada à sua leitura semicontínua, tanto na Celebração Eucarística como na Liturgia das Horas.

Notas:

[1] cf. ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 149.
[3] ibid., p. 154.
[4] ibid., p. 191.
[5] ibid., p. 228.
[6] ibid., p. 290.
[7] ibid., p. 353.
[8] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, p. 434.
[9] ibid., v. II, p. 399.
[10] ibid., v. II, p. 413.
[11] ibid., v. II, p. 437.
[12] ALDAZÁBAL, José. Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 100.
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Carta Circular Paschalis Sollemnitatis: A preparação e celebração das festas pascais. Brasília: Edições CNBB, 2018, p. 19. Coleção: Documentos da Igreja, 38.
[13] OFÍCIO DIVINO, v. II, p. 1483.
[14] ibid., v. I, pp. 365.401. A leitura é indicada também para o II Domingo do Natal, que no Brasil é substituído pela Solenidade da Epifania do Senhor (p. 446).
[15] ibid., v. II, pp. 54.111.167.225.284.
[16] ibid., v. II, pp. 333.396.
[17] ibid., v. II, pp. 338-341.402-406.
[18] ibid., v. II, pp. 479.576.631.684.740.791.831. No Brasil, o VII Domingo da Páscoa é substituído pela Solenidade da Ascensão (p. 873).
[19] ibid., v. II, pp. 502.584.639.691.747.798.836.
[20] ibid., v. II, pp. 529.598.653.706.761.811. Na quarta-feira da VI semana a leitura é proclamada apenas onde a Ascensão é transferida para o domingo seguinte, como no Brasil. Onde a Ascensão é celebrada na quinta-feira (40 dias após a Páscoa), celebram-se nesse dia as I Vésperas da Solenidade.
[21] ibid., v. II, pp. 553.614.667.722.775.855.
[22] ibid., v. III, pp. 1229.1244.
[23] ibid., v. IV, p. 1272.1274.
[24] ibid., v. IV, p. 1414. No Brasil, essa Solenidade é transferida para o domingo seguinte.
[25] ibid., v. I, p. 1203; v. II, p. 1737; v. III, p. 1579; v. IV, p. 1591. No Tempo Pascal lê-se Ap 3,21.
[26] ibid., v. I, p. 1256; v. II, p. 1803; v. III, p. 1633; v. IV, p. 1645.

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