quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 15

Prosseguindo com suas Catequeses sobre Deus Pai, confira as meditações nn. 25-26 do Papa São João Paulo II, que dão continuidade à reflexão sobre Deus criador.

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

25. Creio em Deus, Criador do céu e da terra
João Paulo II - 15 de janeiro de 1986

1. A verdade sobre a criação é objeto e conteúdo da fé cristã: essa está presente de modo explícito unicamente na Revelação. Com efeito, não a encontramos senão muito vagamente nas cosmogonias mitológicas fora da Bíblia, e está ausente das especulações de antigos filósofos, inclusive dos maiores, como Platão e Aristóteles, que, não obstante, elaboraram um conceito bastante elevado de Deus como Ser totalmente perfeito, como Absoluto. A inteligência humana pode por si só chegar a formular a verdade de que o mundo e os seres contingentes (não necessários) dependem do Absoluto. Mas a formulação desta dependência como “criação” - baseando-se, portanto, na verdade sobre a criação - pertence originalmente à Revelação divina e neste sentido é uma verdade de fé.

2. Essa é proclamada no início das profissões de fé, começando pelas mais antigas, como o Símbolo Apostólico: “Creio em Deus... Criador do céu e da terra”; e o Símbolo Niceno-Constantinopolitano: “Creio em um só Deus... Criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”; até aquela pronunciada pelo Papa Paulo VI e que leva o nome de Credo do Povo de Deus: “Cremos em um só Deus... Criador das coisas visíveis - como este mundo, onde se desenrola nossa vida passageira -, Criador das coisas invisíveis - como são os puros espíritos, que também chamamos anjos -, Criador igualmente, em cada homem, da alma espiritual e imortal”.

Deus Criador como "geômetro" ou "arquiteto" do mundo
(Miniatura do século XIII)

3. A verdade sobre a criação do mundo e do homem por obra de Deus ocupa um lugar fundamental no “Credo” cristão pela particular riqueza do seu conteúdo. Com efeito, não se refere apenas à origem do mundo como resultado do ato criador de Deus, mas  também revela Deus como Criador: Deus, que falou por meio dos Profetas e ultimamente por meio do Filho (cf. Hb 1,1), a todos aqueles que acolhem sua Revelação deu a conhecer não só que precisamente Ele criou o mundo, mas sobretudo o que significa ser Criador.

4. A Sagrada Escritura (Antigo e Novo Testamento), com efeito, é permeada pela verdade sobre a criação e sobre o Deus Criador. O primeiro livro da Bíblia, o Livro do Gênesis, começa com a afirmação dessa verdade: “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1). Numerosas passagens bíblicas retornam a esta verdade, mostrando quão profundamente penetrou a fé de Israel. Recordemos ao menos algumas. Diz-se nos Salmos: “Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o orbe da terra e os que nele habitam, pois foi Ele que o estabeleceu sobre os mares” (Sl 23/24,1-2). “Teus são os céus e tua é a terra, Tu estabeleceste o mundo e tudo o que ele contém” (Sl 88/89,12). “Dele é o mar, porque foi Ele quem o fez, e a terra firme, suas mãos a modelaram” (Sl 94/95,5). “Da misericórdia do Senhor a terra está cheia. Pela palavra do Senhor foram feitos os céus... pois Ele falou, e tudo se fez; Ele mandou, e tudo foi criado” (Sl 32/33,5-6.9). “Sede abençoados pelo Senhor, que fez o céu e a terra” (Sl 113B/115,15). A mesma verdade é professada pelo autor do Livro da Sabedoria: “Ó Deus de meus pais e Senhor de misericórdia, que tudo fizeste com a tua Palavra...” (Sb 9,1). E o profeta Isaías refere em primeira pessoa a palavra de Deus Criador: “Eu sou o Senhor, que faço todas as coisas” (Is 44,24).
Não menos claros são os testemunhos presentes no Novo Testamento. Assim, por exemplo, no Prólogo do Evangelho de João se diz: “No princípio era a Palavra... Tudo foi feito por meio dela, e sem Ela nada foi feito de tudo o que foi feito” (Jo 1,1.3). A Carta aos Hebreus, por sua vez, afirma: “Pela fé compreendemos que o universo foi organizado pela palavra de Deus, de sorte que as coisas visíveis provêm daquilo que não se vê” (Hb 11,3).

5. Na verdade da criação é expresso o pensamento de que todas as coisas que existem fora de Deus foram chamadas à existência por Ele. Na Sagrada Escritura, encontramos textos que o afirmam claramente. É o caso da mãe dos sete filhos, dos quais nos fala o Livro dos Macabeus, a qual, diante da ameaça de morte, encoraja ao mais jovem deles a professar a fé de Israel, dizendo-lhe: “Contempla o céu e a terra e o que neles existe. Reconhece que Deus os fez do que não existia, e que assim também se originou a humanidade” (2Mc 7,28). Na Carta aos Romanos lemos que Abraão “acreditou em Deus que vivifica os mortos e chama à existência o que antes não existia” (Rm 4,17).
“Criar” quer dizer, pois, fazer do nada, chamar à existência, isto é, formar um ser do nada. A linguagem bíblica deixa entrever este significado já na primeira palavra do Livro do Gênesis: “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1). O termo “criou” traduz o hebraico “bara”, que exprime uma ação de extraordinária potência, cujo único sujeito é Deus. Com a reflexão pós-exílica se compreende cada vez melhor o alcance da intervenção divina inicial, que no Segundo Livro dos Macabeus se apresenta finalmente como um produzir “do que não existia” (2Mc 7,28). Os Padres da Igreja e os teólogos esclarecerão posteriormente o significado da ação divina, falando da criação “do nada” (“creatio ex nihilo”; mais precisamente: “ex nihilo sui et subiecti”). No ato da criação, Deus é princípio exclusivo e direto do novo ser, com exclusão de qualquer matéria pré-existente.

6. Como Criador, Deus de certo modo está “fora” da criação e a criação está “fora” de Deus. Ao mesmo tempo, a criação é completa e plenamente devedora a Deus da própria existência (do ser o que é), porque esta tem sua origem completa e plenamente no poder de Deus.
Pode-se dizer também que, mediante oeste poder criador (a onipotência), Deus está na criação e a criação  está n’Ele. Porém, esta imanência de Deus não fere em nada a transcendência que lhe é própria em relação a todas as coisas às quais Ele dá a existência.

7. Quando o Apóstolo Paulo chegou ao Areópago de Atenas, falou assim aos ouvintes que ali haviam se reunido: “Observando, ao passar, vossos monumentos sagrados, encontrei um altar com esta inscrição: ‘Ao deus desconhecido’. Pois bem, aquilo que adorais sem conhecer, eu vos anuncio. O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe, sendo Senhor do céu e da terra...” (At 17,23-24).
É significativo que os atenienses, os quais reconheciam muitos deuses (politeísmo pagão), escutaram estas palavras sobre o único Deus Criador sem levantar objeções. Este detalhe parece confirmar que a verdade sobre a criação constitui um ponto de encontro entre os homens que professam religiões diversas. Talvez a verdade da criação esteja enraizada de modo originário e elementar nas diversas religiões, ainda que nelas não se encontrem conceitos suficientemente claros, como aqueles presentes nas Sagradas Escrituras.

26. A criação é o chamado do mundo e do homem do nada à existência
João Paulo II - 29 de janeiro de 1986

1. A verdade de que Deus criou, isto é, que tirou do nada tudo o que existe fora d’Ele, tanto o mundo como o homem, encontra expressão já na primeira página da Sagrada Escritura, ainda que sua plena explicitação ocorra apenas no desenvolvimento sucessivo da Revelação.
No início do Livro do Gênesis encontramos dois “relatos” da criação. De acordo com os estudiosos da Bíblia, o segundo relato é mais antigo, tem um caráter mais figurativo e concreto, se dirige a Deus chamando-lhe com o nome de “Yahweh”, e por este motivo é indicado como “fonte javista”.
O primeiro relato, posterior enquanto à data de composição, se apresenta mais sistemático e teológico; para designar Deus recorre ao termo “Elohim”. Nesse relato a obra da criação é distribuída ao longo de uma série de seis dias. Posto que o sétimo é apresentado como o dia em que Deus descansa, os estudiosos chegaram à conclusão de que este texto teve origem em ambiente sacerdotal e cultual. Propondo ao homem trabalhador o exemplo de Deus Criador, o autor de Gn 1 quis reafirmar o ensinamento contido no Decálogo, inculcando-lhe a obrigação de santificar o sétimo dia.

2. O relato da obra da criação merece ser frequentemente lido e meditado na Liturgia e fora dela. No que se refere a cada um dos dias, há entre um e outro uma estreita continuidade e uma clara analogia. O relato começa com as palavras: “No princípio, Deus criou o céu e a terra”, isto é, todo o mundo visível; depois, na descrição de cada um dos dias retorna sempre a expressão: “Deus disse: Haja...”, ou uma expressão análoga. Por força desta palavra do Criador: “fiat”, “faça-se”, “haja”, surge gradativamente o mundo visível: a terra, a princípio, é “sem forma e vazia” (caos); logo, sob a ação da palavra criadora de Deus, se torna idônea para a vida e se enche de seres vivos, as plantas e os animais, no meio dos quais, por fim, Deus cria o homem “à sua imagem” (Gn 1,27).

3. Este texto tem sobretudo um alcance religioso e teológico. Não se podem buscar nele elementos significativos do ponto de vista das ciências naturais. As investigações sobre a origem e o desenvolvimento de cada uma das espécies “in natura” não encontram nesta descrição nenhuma norma “vinculante”, nem contribuições positivas de interesse substancial. Com efeito, a verdade sobre a criação do mundo visível - tal como é apresentada no Livro do Gênesis - não contrasta, a princípio, com a teoria da evolução natural, quando essa se entende de modo a não excluir a causalidade divina.

4. No seu conjunto, a imagem do mundo é delineada, sob a pena do autor inspirado, com as características das cosmogonias do seu tempo, nas quais ele insere com absoluta originalidade a verdade acerca da criação de todas as coisas por obra do único Deus: esta é a verdade revelada.
Mas o texto bíblico, se por um lado afirma a total dependência do mundo visível de Deus, que enquanto Criador tem pleno poder sobre toda criatura (o chamado “dominium altum”), por outro lado põe em relevo o valor de todas as criaturas aos olhos de Deus. Ao final de cada dia, com efeito, se repete a frase: “E Deus viu que era bom”, e no sexto dia, depois da criação do homem, centro do cosmos, lemos: “Então Deus viu tudo quanto havia feito, e era muito bom” (Gn 1,31).
A descrição bíblica da criação tem caráter ontológico, isto é, fala do ente, e ao mesmo tempo axiológico, dá um testemunho de valor. Criando o mundo como manifestação da sua bondade infinita, Deus o criou bom. Este é o ensinamento essencial que colhemos da cosmogonia bíblica, e em particular da descrição introdutória do Livro do Gênesis.

5. Essa descrição, juntamente com tudo o que a Sagrada Escritura diz em diversos lugares sobre a obra da criação e sobre Deus Criador, nos permite destacar alguns elementos:
a) Deus criou o mundo por si só. O poder criador não é transmissível: é “incommunicabilis”;
b) Deus criou o mundo por vontade própria, sem nenhuma coação externa nem obrigação interna. Podia criar ou não criar; podia criar este mundo ou outro;
c) O mundo foi criado por Deus no tempo e, portanto, não é eterno: possui um princípio no tempo;
d) O mundo criado por Deus é constantemente mantido pelo Criador na existência. Este “manter” é, em certo sentido, um contínuo criar (“conservatio est continua creatio”).

6. Há quase dois mil anos a Igreja professa e proclama invariavelmente a verdade de que a criação do mundo visível e invisível é obra de Deus, em continuidade com a fé professada e proclamada por Israel, o povo de Deus da antiga aliança. A Igreja explica e aprofunda esta verdade utilizando a filosofia do ser e a defende das deformações que surgem de quando em quando na história do pensamento humano.
O Magistério da Igreja confirmou com particular solenidade e vigor a verdade de que a criação do mundo é obra de Deus no Concílio Vaticano I, em resposta às tendências do pensamento panteísta e materialista do tempo. Essas mesmas orientações estão presentes também em nosso século em alguns desenvolvimentos das ciências exatas e das ideologias ateias.
Na Constituição Dei Filius do Concílio Vaticano I lemos: “Este único e verdadeiro Deus, por sua bondade e ‘força onipotente’, não para aumentar sua beatitude ou para adquiri-la, mas a fim de manifestar a sua perfeição pelos bens que prodigaliza às criaturas, por libérrimo desígnio ‘criou simultaneamente desde o início do tempo, do nada, ambas as criaturas: a espiritual e a corporal, isto é, a angélica e a material; e em seguida a humana, de algum modo comum a ambas, constituída de espírito e corpo’ (IV Concílio do Latrão)” (Dei Filius, cap. 1: De Deo rerum omnium creatore; in: Denzinger, n. 3002).

7. Segundo os “cânones” anexos a este texto doutrinal, o Concílio Vaticano I afirma as seguintes verdades:
a) Há um só Deus verdadeiro, Criador e Senhor das coisas visíveis e invisíveis (ibid., n. 3021);
b) São contrárias à fé as afirmações de que só existe a matéria - materialismo (n. 3022) e de que Deus se identifica essencialmente com o mundo - panteísmo (n. 3023);
c) É contrário à fé defender que as criaturas, mesmo as espirituais, são uma emanação da substância divina, ou afirmar que o Ser divino com o seu manifestar-se ou evoluir se converte em todas as coisas (n. 3024);
d) É contrária à fé a concepção segundo a qual Deus é o ser universal, ou seja, o indefinido que, determinando-se, constitui o universo distinto em gêneros, espécies e indivíduos (ibid.);
e) É igualmente contrário à fé negar que o mundo e todas as coisas nele contidas, tanto espirituais como materiais, segundo a sua substância, foram criadas por Deus do nada (n. 3025).

8. Será necessário tratar separadamente o tema da finalidade à qual visa a obra da criação. É, com efeito, um aspecto que ocupa muito espaço na Revelação no Magistério da Igreja e na teologia. Basta, por ora, concluir nossa reflexão referindo-nos a um texto muito belo do Livro da Sabedoria, no qual louvamos a Deus que por amor cria o universo e o conserva no ser:
“Sim, amas tudo o que existe e não desprezas nada do que fizeste; porque, se odiasses alguma coisa, não a terias criado. Da mesma forma, como poderia alguma coisa subsistir, se não a tivesses querido? Ou como poderia ser mantida na existência, se por ti não tivesse sido chamada? A todos, porém, tratas com bondade, porque tudo é teu, Senhor, amigo da vida!” (Sb 11,24-26).

Os "seis dias da criação" (Gn 1,1–2,4a)

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (15 de janeiro e 29 de janeiro de 1986).

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