Concluindo nossa série de postagens sobre as Catequeses do Papa João Paulo I nos 40 anos da sua eleição, publicamos hoje sua última Catequese (viria a falecer no dia seguinte), refletindo sobre a virtude da caridade:
Papa
João Paulo I
Audiência
Geral
Quarta-feira,
27 de setembro de 1978
A caridade
"Meu Deus, com todo o coração e
acima de todas as coisas Vos amo, bem infinito e nossa eterna felicidade, e por
vosso amor amo o meu próximo como a mim mesmo e perdoo as ofensas recebidas. Ó
Senhor, ame-vos eu cada vez mais". É oração conhecidíssima, com expressões
bíblicas embutidas. Foi minha mãe que me ensinou. Rezo-a várias vezes por dia,
mesmo agora, e procuro explicar-vo-la, palavra por palavra, como faria um
catequista de paróquia. Estamos na "terceira lâmpada de santificação"
do Papa João: a caridade.
Amo. Na aula de
filosofia dizia-me o professor: - Tu conheces a torre de São
Marcos? - Conheço. - Isso significa que ela entrou dalgum modo na tua mente:
fisicamente ficou onde estava, mas no teu íntimo ela imprimiu quase um retrato
seu, intelectual. Mas tu, por tua vez, amas a torre de São
Marcos? Significa isto que aquele retrato te impele de dentro e te inclina,
quase te leva e te faz ir, com o espírito, até à torre que está fora.
Numa palavra: amar significa viajar,
correr com o coração para o objeto amado. Diz a Imitação de Cristo:
quem ama "currit, volat, laetatur":
corre, voa e alegra-se (Imitação de Cristo, 1. III, c. V, n. 4). Amar a
Deus é portanto um viajar com o coração para Deus. Viagem belíssima, embora
comporte por vezes sacrifícios. Mas estes não nos devem fazer parar. Jesus está
na cruz: queres beijá-l'O? Não o podes fazer sem te debruçares sobre a cruz e
deixar que te fira algum espinho da coroa, que está na cabeça do Senhor (Cf.
Sales, Oeuvres, Annecy, t. XXI. p. 153). Não podes fazer a figura
do bom São Pedro, que foi valente em gritar "Viva Jesus" no monte
Tabor, onde havia alegria, mas não deixou sequer que o vissem ao lado de Jesus
no monte Calvário, onde havia risco e dor (ibidem:. t. XV, p. 140). O
amor a Deus é também viagem misteriosa: isto é, eu não parto se Deus não toma
primeiro a iniciativa. Ninguém - disse Jesus - pode
vir a mim, se o Pai... o não atrair (Jo 6,44). Perguntava Santo
Agostinho a si mesmo: Mas, então, a liberdade humana? Deus, que decidiu que ela
existisse e construiu essa liberdade, sabe muito bem como respeitá-la, levando
embora os corações ao ponto que tinha em vista: "parum est voluntate, etiam voluptate traheris"; Deus atrai-te
não só de modo que tu mesmo venhas a querer, mas até de modo que tu gostes de ser
atraído (Augustinho, In Io. Evang. Tr. 26, 4).
Com todo o coração. Faço notar, aqui, o adjetivo "todo". O totalitarismo, em
política, é feio. Na religião, pelo contrário, um totalitarismo nosso, quanto a
Deus, está muitíssimo bem. Foi escrito: “Amarás ao Senhor, teu Deus,
com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. Estes
mandamentos, que hoje te imponho, serão gravados no teu coração. Ensiná-los-ás
aos teus filhos e meditá-los-ás quer em tua casa, quer em viagem, quer ao deitar-te
ou ao levantar-te. Atá-los-ás, como símbolo, no teu braço, e usá-los-ás como um
frontal entre os teus olhos. Escrevê-los-ás sobre os pilares da tua casa e
sobre as tuas portas” (Dt 6,5-9).
Aquele "todo", repetido e
levado à prática com tanta insistência, é com toda a verdade a bandeira do
maximalismo cristão. E é justo: Deus é demasiado grande, demasiado merece de
nós, para que baste deitar-lhe, como a um pobre Lázaro, unicamente algumas
migalhas do nosso tempo e do nosso coração. bem infinito e será a nossa
felicidade eterna: dinheiro, prazeres e felicidades deste mundo, em comparação
com Ele, são apenas fragmentos de bem e momentos fugidios de felicidade. Não
seria acertado dar muito de nós a estas coisas e dar pouco a Jesus.
Acima de todas as coisas. Agora entra-se numa comparação direta entre Deus e o homem, entre Deus
e o mundo. Não seria justo dizer: "Ou Deus ou o homem". Deve-se amar
"não só a Deus mas também o homem"; este último, porém, nunca mais do
que Deus ou contra Deus ou tanto como Deus. Por outras palavras: O amor de Deus
é certamente dominador, mas não exclusivo. A Bíblia declara Jacob santo (Dn
3,35) e amado por Deus (Ml 1,2; Rm
9,13), mostra-o comprometido a sete anos de trabalho para conquistar Raquel
como esposa; e pareceram-lhe poucos dias aqueles anos, tão grande era o
amor que por ela sentia (Gn 29,20). Francisco de Sales tece
sobre estas palavras um comentariozinho: "Jacó - escreve - ama Raquel com
todas as suas forças, e, com todas as suas forças ama a Deus; mas nem por isso
ama Raquel como a Deus, nem a Deus como a Raquel. Ama a Deus como seu Deus
sobre todas as coisas e mais que a si mesmo; ama Raquel como sua esposa acima
de todas as outras mulheres e como a si mesmo. Ama a Deus com amor
absolutamente e soberanamente sumo, e Raquel com sumo amor marital; um amor não
é contrário ao outro, porque o de Raquel não inutiliza as vantagens supremas do
amor de Deus" (Sales, Oeuvres, t. V, p. 175).
E por vosso amor amo o meu próximo. Estamos aqui diante de dois amores que são "irmãos gémeos" e
inseparáveis. Algumas pessoas é fácil amá-las. Outras, é difícil: não nos são
simpáticas, ofenderam-nos e fizeram-nos mal. Só se amo Deus a sério, chego a
amá-las a elas, como filhas de Deus e porque Deus mo pede. Jesus fixou também como
há-de o próximo ser amado: quer dizer, não só com o sentimento, mas com obras.
Este é o modo, disse: Perguntar-vos-ei: Tinha fome, e vós destes-me de comer
quando assim estava faminto? Visitastes-me quando estava doente? (Cfr. Mt
25,34ss). O catecismo traduz estas e outras palavras da Bíblia no duplo
catálogo das sete obras de misericórdia corporais e sete espirituais. O catálogo
não é completo e convinha atualizá-lo. Entre os famintos, por exemplo, hoje não
se trata só deste ou aquele indivíduo; são povos inteiros. Todos nos lembramos
das notáveis palavras do Papa Paulo VI: "Os povos da fome dirigem-se hoje
de modo dramático aos povos da opulência. A Igreja estremece perante este grito
de angústia e convida cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão"
(Populorum Progressio, 3). Neste ponto, à
caridade junta-se a justiça, porque - diz ainda Paulo VI - "a propriedade
privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém
tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a
outros falta o necessário" (ibid., 23). Por conseguinte,
"torna-se escândalo intolerável... qualquer recurso exagerado aos
armamentos" (ibid., 53).
À luz destas vigorosas expressões vê-se
quanto indivíduos e povos estão ainda longe de amar os outros "como a si
mesmos", que é mandamento de Jesus.
Outro mandamento: perdoo as
ofensas recebidas. A este perdão quase parece que o Senhor dá precedência
sobre o culto: Se fores, portanto, apresentar uma oferta sobre o altar
e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua
oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; depois,
volta para apresentar a tua oferta (Mt 5,23-24).
As últimas palavras da oração são
estas: ó Senhor, ame-vos eu cada vez mais. Também aqui há
obediência a um mandamento de Deus, que estabeleceu no nosso coração a sede do
progresso. Das palafitas, das cavernas e das primeiras cabanas passámos às
casas, aos palácios e aos arranha-céus; das viagens a pé, e sobre o dorso de
mula ou de camelo, aos carros, aos combóios e aos aviões. E deseja-se progredir
ainda com meios cada vez mais rápidos, atingindo metas mais e mais altas: Mas
amar a Deus - já o vimos - é também uma viagem: Deus quer que ela seja cada vez
mais decidida e perfeita. Disse a todos os seus: Vós sois a luz do
mundo, o sal da terra (ibid.. v. 8); sede perfeitos
como o vosso Pai celeste é perfeito (ibid. v. 48). Isto
significa: amar a Deus não pouco, mas muito; não parar no ponto a que se
chegou, mas, com o Seu auxílio, progredir no amor.
Fonte: Santa Sé
Nenhum comentário:
Postar um comentário