Padre Raniero Cantalamessa, OFMCap
I pregação de Quaresma
15 de março de 2019
“Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a Deus”
Continuando a
reflexão iniciada no Advento sobre o versículo do salmo: “A minha alma tem sede
do Deus vivo” (Sl 42,2), nesta primeira pregação quaresmal gostaria de meditar
convosco sobre a condição essencial para “ver” a Deus. Segundo Jesus, é a
pureza de coração: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”
(Mt 5,8), diz ele em uma de suas bem-aventuranças.
Sabemos que puro
e pureza têm na Bíblia, assim como na linguagem comum, uma grande variedade de
significados. O Evangelho insiste em duas áreas em particular: a retidão de
intenções e a pureza dos costumes. A pureza das intenções é contraposta pela
hipocrisia, a pureza dos costumes pelo abuso da sexualidade.
Na esfera moral,
a palavra “pureza” comumente se refere a um certo comportamento na esfera da
sexualidade, marcado pelo respeito à vontade do Criador e à finalidade
intrínseca da própria sexualidade. Não podemos entrar em contato com Deus, que
é espírito, a não ser através do nosso espírito. Mas a desordem ou, pior ainda,
as aberrações neste campo têm o efeito constatado por todos de obscurecer a
mente. É como balançar os pés em um charco: a lama, do fundo, se eleva e
enlameia toda a água. Deus é luz e uma tal pessoa “odeia a luz”.
O pecado impuro
não deixa ver o rosto de Deus, ou, se o mostra, mostra-o todo deformado. Faz
dele, não o amigo, o aliado e o pai, mas o antagonista, o inimigo. O homem
carnal está cheio de concupiscências, deseja as coisas dos outros e a mulher
dos outros. Nesta situação, Deus aparece para ele como aquele que bloqueia o
caminho para os seus maus desejos por meio das suas ordens “Tu deves!”, “Tu não
deves!”. O pecado desperta no coração do homem um ressentimento surdo contra
Deus, a ponto de que, se dependesse dele, ele desejaria que Deus não existisse.
Nesta ocasião,
porém, mais do que na pureza dos costumes, gostaria de insistir no outro
sentido da expressão “puros de coração”, isto é, na pureza ou retidão das
intenções, na prática, na virtude contrária à hipocrisia. O tempo litúrgico em
que vivemos também nos orienta neste sentido. Começamos a Quaresma, a
quarta-feira de cinzas, ouvindo novamente as admoestações esmagadoras de Jesus:
“Quando derdes esmolas, não toqueis
trombeta diante de vós, como os hipócritas... Quando orardes, não sejais como
os hipócritas... E quando jejuardes, não vos torneis tão melancólicos como os
hipócritas” (Mt 6,1-18).
É surpreendente
o quanto o pecado da hipocrisia - o mais denunciado por Jesus nos evangelhos -
pouco entre em nossos exames ordinários de consciência. Não tendo encontrado em
nenhum deles a pergunta: “Fui hipócrita?”, tive que colocá-la por minha conta,
e raramente passei incólume para a próxima pergunta. O maior ato de hipocrisia
seria esconder a própria hipocrisia. Escondê-la de si mesmo e dos outros,
porque não é possível de Deus. A hipocrisia é amplamente superada no momento em
que é reconhecida. E é isso que nos propomos fazer nesta meditação: reconhecer
a parte de hipocrisia, mais ou menos consciente, que está em nossas ações.
O homem -
escreveu Pascal - tem duas vidas: uma é a vida verdadeira, a outra é a vida
imaginária que vive na opinião, sua ou do povo. Trabalhamos incansavelmente
para embelezar e preservar o nosso ser imaginário e negligenciamos o
verdadeiro. Se possuímos alguma virtude ou mérito, temos o cuidado de torná-la
conhecida, de uma forma ou de outra, para enriquecer nosso ser imaginário com
essa virtude ou mérito, dispostos até mesmo a prescindir dela, para acrescentar
algo a ele, a ponto de consentir, às vezes, de sermos covardes, com tal de
parecermos valentes e a dar também a vida, desde que as pessoas falem sobre
isso.
Vamos tentar
descobrir a origem e o significado do termo hipocrisia. A palavra vem da
linguagem teatral. No início significava simplesmente recitar, representar no
palco. Aos antigos não escapava o elemento intrínseco de mentira que existe em
cada representação cênica, apesar do elevado valor moral e artístico que lhe é
reconhecido. Daí o julgamento negativo que pesava sobre a profissão de ator,
reservado, em certos momentos, aos escravos e até mesmo proibido pelos
apologistas cristãos. A dor e a alegria representadas e enfatizadas não são
verdadeira dor e verdadeira alegria, mas aparência, afetação. A realidade
íntima dos sentimentos não corresponde às palavras e atitudes externas. O que
se vê no rosto não é o que está no coração.
Usamos a
palavra ficção num sentido neutro ou até mesmo positivo (é um
gênero literário e de entretenimento muito em voga hoje em dia!); os antigos
deram-lhe o sentido que ela realmente tem: o do fingimento. O que havia de
negativo no fingimento cênico passou para a palavra hipocrisia. De uma palavra
originalmente neutra, tornou-se uma palavra exclusivamente negativa, uma das
poucas palavras com todos, e apenas, os significados negativos. Há quem se
vanglorie de ser orgulhoso ou libertino, ninguém de ser hipócrita.
A origem do
termo nos coloca na trilha para descobrir a natureza da hipocrisia. É fazer da
vida um teatro em que se atua para um público; é usar uma máscara, deixar de
ser uma pessoa para se tornar um personagem. O personagem nada mais é do que a
corrupção da pessoa. A pessoa é um rosto, o personagem é uma máscara. A pessoa
é nudez radical, o personagem é todo vestuário. A pessoa ama a autenticidade e
a essencialidade, o personagem vive de fingimentos e de artifícios. A pessoa
obedece às próprias convicções, o personagem obedece a um guião. A pessoa é
humilde e leve, o personagem é pesado e volumoso.
Essa tendência
inata do homem é grandemente aumentada pela cultura atual, dominada pela
imagem. Cinema, televisão, internet: agora tudo é baseado principalmente na
imagem, disse Descartes: “Cogito ergo sum”, penso logo sou; mas hoje nós
tendemos a substituí-lo por "apareço, portanto, sou". Um famoso
moralista definiu a hipocrisia como “o tributo que o vício presta à virtude”.
Ameaça acima de tudo pessoas piedosas e religiosas. Um rabino do tempo de
Cristo disse que 90% da hipocrisia do mundo estava em Jerusalém. A razão é
simples: quanto mais forte for a estima pelos valores do espírito, da piedade e
da virtude, mais forte será também a tentação de cortá-los para não se parecer
privado deles.
Um perigo vem
também da multidão de ritos que as pessoas piedosas estão acostumadas a
realizar e das prescrições que se comprometem a observar. Se não forem
acompanhadas por um esforço contínuo de colocar uma alma neles, através do amor
a Deus e ao próximo, tornam-se cascas vazias. “Estas coisas - diz São Paulo
falando de certos ritos e prescrições exteriores - têm uma aparência de
sabedoria, com sua afetada religiosidade e humildade e austeridade em relação
ao corpo, mas na realidade servem apenas para satisfazer a carne” (Cl 2,23).
Neste caso, as pessoas guardam, diz o Apóstolo, “a aparência de piedade,
enquanto negam a sua força interior” (2Tm 3,5).
Quando a
hipocrisia se torna crônica, cria, no matrimônio e na vida consagrada, a
situação de “vida dupla”: uma pública, evidente, outra oculta; muitas vezes uma
diurna, outra noturna. É o estado espiritual mais perigoso para a alma, do qual
se torna muito difícil sair, a menos que algo interfira de fora para romper o
muro dentro do qual se está trancado. É a etapa que Jesus descreve com a imagem
dos sepulcros caiados: “Ai de vós,
escribas e fariseus hipócritas, que pareceis túmulos caiados de branco: por
fora estão lindos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda
podridão. Assim também vós: por fora pareceis justos diante dos homens, mas por
dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade” (Mt 23,27-28).
Se nos
perguntarmos por que a hipocrisia é tão abominável diante de Deus, a resposta é
clara. A hipocrisia é mentira. É esconder a verdade. Além disso, na hipocrisia
o homem deve rebaixar a Deus, colocá-lo em segundo lugar, colocando as
criaturas, o público, em primeiro lugar. É como se, na presença do rei, alguém
virasse as costas para ele para se concentrar apenas nos servos. “O homem olha
para a aparência, o Senhor olha para o coração” (1Sm 16,7): cultivar a
aparência mais do que o coração, significa automaticamente dar mais importância
ao homem do que a Deus.
A hipocrisia é,
portanto, essencialmente uma falta de fé, uma forma de idolatria, na medida em
que coloca as criaturas no lugar do Criador. Jesus faz derivar dela a
incapacidade dos seus inimigos de acreditarem n'Ele: “Como podeis crer, vós que
vos gloriais uns aos outros, e não buscais a glória que vem somente de Deus?”
(Jo 5,44). A hipocrisia falta também a caridade para com o próximo, porque
tende a reduzir os outros a admiradores. Não lhes reconhece uma própria
dignidade, mas os vê apenas em função da sua própria imagem. Números da audiência e
nada mais.
Uma forma
derivada da hipocrisia é a duplicidade ou insinceridade. Com a hipocrisia se
procura mentir a Deus; com a duplicidade no pensar e no falar se procura mentir
aos homens. Duplicidade é dizer uma coisa e pensar outra; falar bem de uma
pessoa em sua presença e falar mal assim que ela vira as costas.
O juízo de
Cristo sobre a hipocrisia é como uma espada flamejante: “Receperunt mercedem
suam”: “receberam a sua recompensa”. Eles assinaram um recibo, não podem
esperar outra coisa. Uma recompensa, além disso, ilusória e contraproducente
também a nível humano, porque é muito verdadeiro o ditado que diz que “a glória
foge de quem a persegue e persegue quem foge dela”.
É evidente que a
nossa vitória sobre a hipocrisia nunca será uma vitória à primeira vista. A
menos que tenhamos atingido um nível muito elevado de perfeição, não podemos
evitar instintivamente sentir o desejo de aparecer em boa luz, de causar boa
impressão, de agradar aos outros. A nossa arma é a retidão de intenção. A reta
intenção é alcançada através da constante e diária retificação de nossa
intenção. A intenção da vontade, não o sentimento natural, é o que faz a
diferença aos olhos de Deus.
Se a hipocrisia
consiste em mostrar também o bem que não se faz, um remédio eficaz para
contrariar esta tendência é esconder também o bem que se faz. Privilegiar
aqueles gestos escondidos que não serão desperdiçados por nenhum olhar terreno
e que conservarão todo o seu perfume para Deus. “A Deus, diz São João da Cruz,
é mais agradável uma ação, ainda que pequena, feita em segredo e sem o desejo
de ser conhecida, do que mil outras feitas com o desejo de serem vistas pelos
homens”. E ainda: “Uma ação feita inteiramente e puramente por Deus, com
coração puro, cria um reino inteiro para aqueles que a fazem”.
Jesus insiste
neste exercício: “Orai em segredo, jejuai em segredo, dai esmolas em segredo e
vosso Pai, que vê no segredo, vos recompensará” (cf. Mt 6,4-18). São iguarias
para Deus que tonificam a alma. Não se trata de fazer disto uma regra fixa.
Jesus também diz: “Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que
vejam as vossas boas obras e deem glória ao vosso Pai que está nos céus” (Mt
5,16). É uma questão de distinguir quando é bom para os outros verem e quando é
melhor para eles não verem.
O pior que se
pode fazer, no final de uma descrição da hipocrisia, é usá-la para julgar os
outros, para denunciar a hipocrisia que existe à nossa volta. É precisamente a
eles que Jesus aplica o título de hipócritas: “Hipócritas, tirai primeiro a
trave do vosso olho e depois vereis bem para tirar o cisco do olho do vosso
irmão!” (Mt 7,5). Aqui é verdadeiramente oportuno dizer: “Aquele dentre vós que
não tem pecado, atire a primeira pedra” (Jo 8,7). Quem pode dizer que está
completamente livre de qualquer forma de hipocrisia? De não ser um pouco,
também ele, um sepulcro caiado, diferente por dentro do que aparece por fora?
Talvez só Jesus e Nossa Senhora tenham estado isentos, de forma estável e
absoluta, de todas as formas de hipocrisia. O fato consolador é que, assim que
se diz: “Fui hipócrita”, sua hipocrisia é superada.
“Se o teu
olho é simples”
A palavra de
Deus não se limita a condenar o vício da hipocrisia; ela também nos impele a
cultivar a virtude oposta que é a simplicidade. “A lâmpada do corpo é o olho;
portanto, se o teu olho é simples, todo o teu corpo será luminoso” (Mt 6,22). A
palavra “simplicidade” pode ter - e tem ainda hoje - o sentido negativo de
ingenuidade, superficialidade e imprudência. Jesus se preocupa em excluir este
sentido; à recomendação: “Sede simples como as pombas” segue-se o convite a
serem também “prudentes como as serpentes” (Mt 10,16).
São Paulo retoma
e aplica à vida da comunidade cristã o ensinamento evangélico sobre a
simplicidade. Na Carta aos Romanos escreve: “Quem dá, faça-o com
simplicidade” (Rm 12,8). Refere-se, em primeiro lugar, aos responsáveis, na
comunidade, pelas obras de caridade, mas a recomendação se aplica todos: não só
aos que dão dinheiro, mas também aos que dão do próprio tempo, do próprio
trabalho. O sentido é não fazer pesar o que se faz pelos outros ou no próprio
trabalho. Alessandro Manzoni, que no seu romance “Os noivos”, tão bem encarnou
o espírito do Evangelho, tem uma cena muito delicada a este respeito. O bom
alfaiate do país “interrompeu o discurso, como se estivesse se surpreendido por
um pensamento. Parou um momento; depois juntou um prato com a comida que estava
sobre a mesa, e acrescentando um pão, colocou o prato em um guardanapo, e
pegando-o pelas quatro pontas, disse à sua filha maior: - tome aqui. Deu-lhe um
frasco de vinho na outra mão, e acrescentou: - vá até a Maria viúva; deixe isso
com ela, e diga-lhe que deve estar um pouco alegre com seus filhos. Mas, com
bons modos, viu; que não pareça que estás dando esmola”.
O apóstolo Paulo
fala de simplicidade também em um outro contexto que nos interessa
particularmente porque se refere à Páscoa. Escrevendo aos Coríntios, diz:
“Livrai-vos do fermento velho para serdes massa nova, visto que sois sem
fermento. Pois Cristo, a nossa Páscoa, já foi imolado. Celebremos, portanto, a
festa não com o fermento velho, não com o fermento da malícia e da
perversidade, porém com os pães sem fermento da pureza e da verdade” (1Cor 5,7-8).
A festa que o
Apóstolo nos convida a celebrar não é uma festa qualquer, mas a festa por
excelência, a única que o cristianismo conhece e celebra nos primeiros três
séculos da sua história, a Páscoa. Na véspera da Páscoa, no dia 13 de Nisan, o
ritual judaico ordenava que a anfitriã revistasse à luz de velas toda a casa,
procurando em cada esquina, para fazer desaparecer qualquer pequeno vestígio de
pão fermentado e assim celebrar o dia seguinte, a Páscoa com apenas pão ázimo.
Para os judeus, o fermento era sinônimo de corrupção e o pão ázimo, símbolo de
pureza, novidade e integridade. Neste sentido, Jesus chama a hipocrisia um
fermento, “o fermento dos fariseus” (Lc 12,1).
São Paulo vê na
prática ritual hebraica uma grande metáfora da vida cristã. Cristo foi imolado;
ele é a verdadeira Páscoa da qual a antiga era uma expectativa; por isso é
necessário vasculhar a casa interior, o coração, despojar-se de tudo o que é
velho e corrupto, para ser “uma massa nova”; fazer, também dentro de nós, a
grande limpeza da primavera. A palavra grega heilikrineia,
traduzida como “sinceridade”, contém a ideia de esplendor solar (helios)
e de prova ou julgamento (krino) e, portanto, significa uma
transparência solar, algo que foi colocado contra a luz e encontrado puro.
A virtude da
simplicidade tem o modelo mais sublime que se pode pensar: o próprio Deus.
Santo Agostinho escreveu: “Deus é trino, mas não é triplo”. Ele é a própria
simplicidade. A Trindade não destrói a simplicidade de Deus, porque a
simplicidade diz respeito à natureza e a natureza de Deus é única e simples.
São Tomás recolhe fielmente esta herança, fazendo da simplicidade o primeiro
dos atributos de Deus.
A Bíblia exprime
esta mesma verdade de modo concreto, através de imagens: “Deus é luz e nele não
há trevas” (1Jo 1,5). A ausência de qualquer mistura é também um dos muitos
significados do título divino Qadosh, Santo. Pura plenitude, pura
simplicidade. A grande mística Santa Catarina de Gênova designa este aspecto da
natureza divina, pela qual estava apaixonada, com nítido, claramente,
um termo que indica, juntos, pureza e plenitude, plenitude e homogeneidade
absoluta. Deus é “tudo num só pedaço”. A simplicidade de Deus é “pura
plenitude”; a ele, diz a Escritura, “nada se pode acrescentar ou tirar” (Eclo
42,21). Na medida em que é suma plenitude, nada lhe pode ser
acrescentado; na medida em que é suma pureza, nada lhe deve ser
tirado. Em nós, as duas coisas nunca estão unidas; uma contradiz a outra. A
nossa pureza obtém-se sempre pela remoção de algo, pela purificação de nós
mesmos, pela “remoção do mal das nossas ações” (cf. Is 1,16).
Qualquer ação,
ainda que pequena, se realizada com intenção pura e simples, nos torna “imagem
e semelhança de Deus”. A intenção pura e simples reúne as forças dispersas da
alma, prepara o espírito e o une a Deus. É o princípio, o fim e o ornamento de
todas as virtudes. Ao somente tender a Deus e julgando as coisas em relação a
Ele, a simplicidade rejeita e erradica o fingimento, a hipocrisia e toda a
duplicidade... Esta intenção pura e simples é aquele olho simples do qual fala
Jesus no Evangelho, que ilumina todo o corpo, ou seja, toda a vida e os atos do
homem e os preserva imunes do pecado.
Aquela
simplicidade é uma das realizações mais difíceis e mais belas da jornada
espiritual. A simplicidade é própria de quem foi purificado por uma verdadeira
penitência, porque é fruto de um total desapego de si mesmo e de um amor
desinteressado por Cristo. Chega-se pouco a pouco, sem se desanimar com as
quedas, mas com firme determinação de buscar a Deus por ele próprio e não por
nós mesmos.
Se me permitem
sugerir um propósito no final desta meditação, é o de procurar no Saltério, ou
na Liturgia das Horas, o Salmo 139; recitá-lo lenta e repetidamente, como se o
estivéssemos lendo pela primeira vez, ou melhor, como se o estivéssemos
compondo nós mesmos ou fôssemos os primeiros a pronuncia-lo. Se a hipocrisia e
a duplicidade consistem em procurar o olhar dos homens mais do que o de Deus,
aqui encontramos o remédio mais eficaz. Recitar este salmo é como submeter-se a
uma espécie de radiografia, como expor-se a raios X. Parece que estamos sendo
atravessados de um lado para o outro pelo olhar de Deus. Lembro-me sempre da
impressão da primeira que o recitei da forma como os estou dizendo. É assim que
começa:
Senhor, tu me
sondaste e me conheces e sabes quando me sento e quando me levanto, de longe
percebes os meus pensamentos.
Discernes minha
caminhada e meu descanso e estás a par de todos os meus caminhos.
A palavra ainda
não chegou à minha língua, e tu, Senhor, já a conheces toda...
Aonde irei para
estar longe do teu espírito?
Aonde fugirei,
longe de tua presença?
Se eu escalar o
céu, aí estás; se me deitar nas profundezas, também aí estás.
Se me apossar
das asas da aurora e for morar nos confins do mar, também aí tua mão me conduz,
tua destra me segura.
Se eu disser: “As
trevas, ao menos, vão me envolver e a luz, à minha volta, se fará noite”, nem
sequer as trevas são bastante escuras para ti, e a noite é tão clara como o
dia, tanto faz a luz como as trevas...
O maravilhoso é
que esta consciência de estar sob o olhar de Deus não cria um sentimento de
vergonha ou de desconforto, como aquele que se sente observado e descoberto em
seus pensamentos mais secretos; pelo contrário, dá alegria porque se compreende
que é o olhar de um pai que nos ama e quer que sejamos perfeitos, assim como
ele é perfeito. De fato, o salmista termina a sua oração com o grito exultante:
“Sonda-me, ó
Deus, e conhece meu coração!
Examina-me, e
conhece minhas preocupações!
Vê se estou no
caminho da mentira e conduze-me pelo caminho da vida”.
Sim, vês,
Senhor, se seguimos um caminho de mentiras e nos guie, nesta Quaresma, pelo
caminho da simplicidade e da transparência. Amém.
Fonte: Vatican News
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