No dia 22 de agosto celebramos a Memória de Nossa Senhora Rainha, instituída pelo Papa Pio XII em 1954 através da Encíclica Ad Caeli Reginam (À Rainha do Céu), cujo texto propomos a seguir:
Papa Pio XII
Encíclica Ad Caeli Reginam
Sobre a realeza de Maria e a instituição da sua festa
Introdução
1.
Desde os primeiros séculos da Igreja católica o povo cristão elevou orações e
cânticos de louvor e de devoção à Rainha do Céu, tanto nos momentos de alegria
como sobretudo quando se via ameaçado por graves perigos; e nunca foi frustrada
a esperança posta na Mãe do Rei divino, Jesus Cristo, nem se enfraqueceu a fé,
que nos ensina como reina com materno coração no universo inteiro a Virgem
Maria, Mãe de Deus, assim como está coroada de glória na bem-aventurança
celeste.
2.
Ora, depois das grandes calamidades que, mesmo à nossa vista, destruíram
horrivelmente florescentes cidades, vilas e aldeias; diante do doloroso
espetáculo de tantos e tão grandes males morais, que transbordam em temeroso
aluvião; quando vacila às vezes a justiça e triunfa com frequência a corrupção;
neste incerto e temeroso estado de coisas, sentimos nós a maior dor; mas ao
mesmo tempo recorremos confiantes à nossa Rainha, Maria Santíssima, e
patenteamos-lhe não só os nossos devotos sentimentos, mas também os de todos os
fiéis cristãos.
3.
É grato e útil recordar que nós próprios, no dia 1° de novembro do Ano Santo de
1950, diante de grande multidão formada de Cardeais, Bispos, sacerdotes e
simples cristãos, vindos de toda a parte do mundo, definimos o dogma da Assunção
da Bem-aventurada Virgem Maria ao céu [1], onde, presente em
alma e corpo, reina entre os coros dos anjos e santos, juntamente com o seu Unigênito
Filho. Além disso - ocorrendo o primeiro centenário da definição dogmática do
nosso predecessor de imortal memória, Pio IX, que proclamou ter sido a Mãe de
Deus concebida sem qualquer mancha do pecado original - promulgamos, com grande
alegria do nosso coração paterno, o presente Ano Mariano [2]; e vemos com
satisfação que não só nesta augusta cidade - especialmente na Basílica
Liberiana, onde inumeráveis multidões vão testemunhando bem claramente a sua fé
e ardente amor a Mãe do céu - mas em todas as partes do mundo a devoção à
virgem Mãe de Deus refloresce cada vez mais, ocorrendo grandes peregrinações
aos principais santuários de Maria.
4.
Todos sabem que nós, na medida do possível - quando em audiências falamos aos
nossos filhos, ou quando, por meio das ondas radiofônicas, dirigimos mensagens
ao longe - não deixamos de recomendar, a quantos nos ouviam que amassem, com
amor terno e filial, tão boa e poderosa Mãe. A esse propósito, recordamos em
especial a radiomensagem que endereçamos ao povo português, por motivo da
coroação da prodigiosa imagem de nossa Senhora de Fátima, que chamamos
radiomensagem da “realeza” de Maria [3].
5.
Portanto, como coroamento de tantos testemunhos deste nosso amor filial, a que
o povo cristão correspondeu com tanto ardor, para encerrar com alegria e fruto
o Ano Mariano que se aproxima do fim, e para satisfazer aos insistentes
pedidos, que nos chegaram de toda a parte, resolvemos instituir a festa
litúrgica da Bem-aventurada Virgem Maria Rainha.
6.
Não é verdade nova que propomos à crença do povo cristão, porque o fundamento e
as razões da dignidade régia de Maria encontram-se bem expressos em todas as
idades, e constam dos documentos antigos da Igreja e dos livros da sagrada Liturgia.
7.
Queremos recordá-los na presente Encíclica para renovar os louvores da nossa
Mãe do céu e avivar proveitosamente na alma de todos a devoção para com ela.
I. A realeza de Maria nos textos da Tradição
8.
Com razão acreditou sempre o povo fiel, já nos séculos passados, que a mulher,
de quem nasceu o Filho do Altíssimo - o qual “reinará
eternamente na casa de Jacó” (Lc 1,32),
será “Príncipe da Paz” (Is
9,6), “Rei dos Reis e Senhor dos senhores” (Ap 19,16) - recebeu mais que todas
as outras criaturas singulares privilégios de graça. E considerando que há
estreita relação entre uma mãe e o seu filho, sem dificuldade reconheceu na Mãe
de Deus a dignidade real sobre todas as coisas.
9.
Assim, baseando-se nas palavras do arcanjo Gabriel, que predisse o reino eterno
do Filho de Maria (cf. Lc 1,32-33), e nas de Isabel, que se inclinou diante dela e a saudou como “Mãe
do meu Senhor” (Lc 1,43), compreende-se
que já os antigos escritores eclesiásticos chamassem a Maria “Mãe do Rei” e
“Mãe do Senhor”, dando claramente a entender que da realeza do Filho derivara
para a Mãe certa elevação e preeminência.
10.
Santo Efrém, com grande inspiração poética, põe estas palavras na boca de
Maria: “Erga-me o firmamento nos seus braços, porque eu sou mais honrada do que
ele. O céu não foi tua mãe, e fizeste dele teu trono. Ora, quanto mais se deve
honrar e venerar a mãe do Rei, do que o seu trono!” [4]. Em
outro passo, assim invoca a Maria santíssima: “Virgem augusta e protetora,
rainha e senhora, protege-me à tua sombra, guarda-me, para que Satanás, que
semeia ruínas, não me ataque, nem triunfe de mim o iníquo adversário” [5].
11.
São Gregório Nazianzeno chama Maria “Mãe do Rei de todo o universo”, “Mãe
virgem, [que] deu à luz o Rei do todo o mundo” [6]. Prudêncio
diz que a Mãe se maravilha “de ter gerado a Deus não só como homem mas também
como sumo rei” [7].
12.
E afirmam claramente a dignidade real de Maria aqueles que a chamam “senhora”,
“dominadora” e “rainha”.
13.
Já em uma homilia atribuída a Orígenes Maria é chamada por Isabel não só “Mãe
do meu Senhor”, mas também “minha Senhora” [8].
14.
O mesmo conceito se pode deduzir de um texto de São Jerônimo, que expõe o
próprio parecer acerca das várias interpretações do nome de Maria: “Saiba-se
que Maria, na língua siríaca, significa Senhora” [9]. Igualmente
e com mais decisão, se exprime depois São Pedro Crisólogo: “O nome hebraico
Maria traduz-se por ‘Domina’ em
latim: portanto o anjo chama-lhe Senhora para livrar do temor de escrava a mãe
do Dominador, a qual nasce e se chama Senhora pelo poder do Filho” [10].
15.
Santo Epifânio, Bispo de Constantinopla, escreve ao Papa Hormisdas pedindo a
conservação da unidade da Igreja “mediante a graça da Trindade una e santa e
por intercessão de nossa Senhora, a santa e gloriosa virgem Maria, Mãe de Deus”
[11].
16.
Um autor do mesmo tempo dirige-se a Maria Santíssima, sentada à direita de
Deus, invocando-a solenemente como “Senhora dos mortais, Santíssima Mãe de Deus”
[12].
17.
Santo André de Creta atribui diversas vezes a dignidade real à virgem Maria;
escreve, por exemplo: “Leva [Jesus Cristo] neste dia da morada terrestre [para
o céu], como rainha do gênero humano, a sua Mãe sempre virgem, em cujo seio,
permanecendo Deus, tomou a carne humana” [13]. E em outro
lugar: “Rainha de todo o gênero humano, porque, fiel à significação do seu
nome, se encontra acima de tudo quanto não é Deus” [14].
18.
Do mesmo modo se dirige São Germano à humildade da Virgem: “Senta-te, ó
Senhora; sendo tu Rainha e mais eminente que todos os reis, pertence-te estar
sentada no lugar mais nobre” [15]; e chama-lhe: “Senhora de
todos aqueles que habitam a terra” [16].
19.
São João Damasceno proclama-a “rainha, protetora e senhora”
[17] e também “senhora de todas as criaturas” [18]; e
um antigo escritor da Igreja ocidental chama-lhe “ditosa rainha”, “rainha
eterna junto do Filho Rei”, e diz que ela tem a “nívea cabeça ornada com um
diadema de ouro” [19].
20.
Finalmente, Santo Ildefonso de Toledo resume-lhe quase todos os títulos de
honra nesta saudação: “Ó minha senhora, minha dominadora: tu dominas em mim, ó
mãe do meu Senhor... Senhora entre as escravas, rainha entre as irmãs” [20].
21.
Recolhendo a lição desses e outros inumeráveis testemunhos antigos, chamaram os
teólogos a Santíssima Virgem Rainha de todas as coisas criadas, Rainha do mundo
e Senhora do universo.
22.
Por sua vez, os sumos pastores da Igreja julgavam obrigação sua aprovar e
promover a devoção à celeste Mãe e Rainha com exortação e louvores. Pondo de
parte os documentos dos Papas recentes, recordamos que já no século VII o nosso
predecessor São Martinho I chamou Maria “gloriosa Senhora nossa, sempre virgem”
[21]; Santo Agatão, na Carta sinodal enviada aos padres do VI
Concílio Ecumênico, chamou-a “Senhora nossa, verdadeiramente e com propriedade
Mãe de Deus” [22]; e no século VIII, Gregório II, em uma carta
ao Patriarca São Germano, que foi lida entre as aclamações dos padres do VII Concílio
Ecumênico, proclamava Maria “Senhora de todos e verdadeira Mãe de Deus” e “Senhora
de todos os cristãos” [23].
23.
Apraz-nos recordar também que o nosso predecessor de imortal memória Sisto IV,
querendo favorecer a doutrina da Imaculada Conceição da Santíssima Virgem,
começa a Carta Apostólica Cum praeexcelsa chamando
precisamente Maria “rainha sempre vigilante, a interceder junto ao Rei, que ela
gerou” [24]. Do mesmo modo, Bento XIV, na Carta Apostólica Gloriosae
Dominae chama Maria “rainha do céu e da terra”, afirmando que o sumo Rei
lhe contou, em certo modo, o seu próprio império [25].
24.
Por isso, Santo Afonso de Ligório, tendo presente todos os testemunhos dos
séculos precedentes, pôde escrever com a maior devoção: “Porque a Virgem Maria
foi elevada até ser Mãe do Rei dos reis, com justa razão a distingue a Igreja
com o título de Rainha” [26].
II. Na Liturgia e na arte
25.
A sagrada Liturgia, espelho fel da doutrina transmitida pelos Santos Padres e
da crença do povo cristão, cantou por todo o decurso dos séculos e canta ainda
sem cessar, tanto no Oriente como no Ocidente, as glórias da celestial Rainha.
26.
Vozes entusiásticas ressoam do Oriente: “Ó Mãe de Deus, hoje és transferida
para o céu sobre os carros dos querubins, os serafins estão às tuas ordens, e
os exércitos da milícia celeste prostram-se diante de ti” [27].
27.
E mais ainda: “Ó justo, felicíssimo [José], pela tua origem real foste
escolhido entre todos para esposo da Rainha imaculada, que dará à luz de modo
inefável a Jesus Rei” [28]. E depois: “Vou elevar um hino à
rainha e Mãe de quem, ao celebrar, me aproximarei com alegria, para cantar com
exultação alegremente as suas glórias... Ó Senhora, nossa língua não te pode louvar
dignamente, porque tu, que deste à luz a Cristo nosso Rei, foste exaltada acima
dos serafins... Salve, rainha do mundo, salve, ó Maria, senhora de todos nós”
[29].
28.
Lê-se no Missal etíope: “Ó Maria, centro do mundo todo,... Tu és maior que os
querubins de olhar penetrante, e que os serafins de seis asas... O céu e a
terra estão cheios da santidade da tua glória” [30].
29.
O mesmo canta a liturgia da Igreja latina com a antiga e dulcíssima oração
“Salve, rainha”, as alegres antífonas “Ave, ó rainha dos
céus”, “Rainha do céu, alegrai-vos, aleluia”, e outras que se
costumam rezar em várias festas de nossa Senhora: “Colocou-se como rainha
à tua direita, com vestido dourado e circundada de vários ornamentos” [31]; “A terra e o povo cantam o teu poder, ó
rainha” [32]; “Hoje a virgem Maria sobe ao céu:
alegrai-vos, porque reina com Cristo para sempre” [33].
30.
A esse e outros cânticos deve juntar-se a Ladainha Lauretana, que leva o
povo cristão a invocar todos os dias nossa Senhora como rainha; e no santo
rosário, que se pode chamar coroa mística da celeste rainha, já há muitos
séculos os fiéis contemplam, do quinto mistério glorioso, o reino de Maria, que
abraça o céu e a terra.
31.
Finalmente a arte cristã, intérprete natural da espontânea e pura devoção do
povo, desde o Concílio de Éfeso que representa Maria como rainha e imperatriz,
sentada num trono e adornada com as insígnias reais, de coroa na cabeça,
rodeada da corte dos anjos e santos, como quem domina não só as forças da
natureza, mas também os malignos assaltos de Satanás. A iconografia da virgem
Maria como rainha enriqueceu-se em todos os séculos com obras de arte de alto
mérito, chegando até a figurar o divino Redentor no ato de cingir com brilhante
coroa a cabeça da própria Mãe.
32.
Os Pontífices romanos não deixaram de favorecer esta devoção coroando
pessoalmente ou por meio de legados as imagens da virgem Mãe de Deus, que eram
objeto de especial veneração.
III. Argumentos teológicos
A maternidade divina de Maria
33.
Como apontamos acima, veneráveis irmãos, segundo a tradição e a sagrada
liturgia, o principal argumento em que se funda a dignidade régia de Maria é
sem dúvida a maternidade divina. Na verdade, do Filho que será dado à luz pela
Virgem, afirma-se na Sagrada Escritura: “chamar-se-á Filho do Altíssimo e o
Senhor Deus dar-lhe-á o trono de Davi, seu pai; reinará na casa de Jacó
eternamente, e o seu reino não terá fim” (Lc 1, 32-33); ao mesmo tempo que Maria é proclamada “a Mãe do
Senhor” (v. 43). Daqui se segue logicamente que Maria é rainha, por ter dado a
vida a um Filho, que no próprio instante da sua concepção, mesmo como homem,
era rei e senhor de todas as coisas, pela união hipostática da natureza humana
com o Verbo. Por isso muito bem escreveu São João Damasceno: “Tornou-se
verdadeiramente senhora de toda a criação, no momento em que se tornou Mãe do
Criador” [34]. E assim o arcanjo Gabriel pode ser chamado o
primeiro arauto da dignidade real de Maria.
34.
Contudo, nossa Senhora deve proclamar-se Rainha, não só pela sua maternidade
divina, mas ainda pela parte singular que Deus queria ter na obra da salvação. “Que
pode haver - escrevia nosso predecessor de feliz memória, Pio XI - mais
doce e suave do que pensar que Cristo é nosso Rei, não só por direito de
natureza, mas ainda por direito adquirido, isto é, pela redenção? Repensem
todos os homens, esquecidos do quanto custamos ao nosso Redentor e recordem
todos: 'Não fostes remidos com ouro ou prata, bens corruptíveis..., mas pelo
precioso sangue de Cristo, cordeiro imaculado e incontaminado' (1Pd 1,18-19). 'Não
pertencemos portanto a nós mesmos, pois Cristo 'a alto preço nos comprou' (1Cor 6,20)” [35].
Sua cooperação na redenção
35.
Ora, ao realizar-se a obra da redenção, Maria Santíssima foi intimamente
associada a Cristo, e por isso justamente se canta na sagrada Liturgia: “Santa
Maria, rainha do céu e senhora do mundo, estava traspassada de dor, ao pé da
cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” [36]. E um piedosíssimo
discípulo de Santo Anselmo podia escrever na Idade Média: “Como... Deus,
criando todas as coisas pelo seu poder, é Pai e Senhor de tudo, assim Maria,
reparando todas as coisas com os seus méritos, é mãe e senhora de tudo: Deus é
senhor de todas as coisas, constituindo cada uma delas na sua própria natureza
pela voz do seu poder, e Maria é Senhora de todas as coisas, reconstituindo-as
na sua dignidade primitiva pela graça, que lhes mereceu” [37]. De
fato, “como Cristo, pelo título particular da redenção, é nosso senhor e nosso
rei, assim a bem-aventurada Virgem [é senhora nossa] pelo singular concurso,
prestado à nossa redenção, subministrando a sua substância e oferecendo
voluntariamente por nós o Filho Jesus, desejando, pedindo e procurando de modo
singular a nossa salvação” [38].
36.
Dessas premissas se pode argumentar: Se Maria, na obra da salvação espiritual,
foi associada por vontade de Deus a Jesus Cristo, princípio de salvação, e o
foi quase como Eva foi associada a Adão, princípio de morte, podendo-se afirmar
que a nossa redenção se realizou segundo certa “recapitulação” [39], pela qual o gênero humano, sujeito à morte por causa de uma
virgem, salva-se também por meio de uma virgem; se, além disso, pode-se dizer
igualmente que esta gloriosíssima Senhora foi escolhida para Mãe de Cristo “para
lhe ser associada na redenção do gênero humano” [40], e se
realmente “foi ela que - isenta de qualquer culpa pessoal ou hereditária, e
sempre estreitamente unida a seu Filho - o ofereceu no Gólgota ao eterno Pai,
sacrificando juntamente, qual nova Eva, os direitos e o amor de mãe em
benefício de toda a posteridade de Adão, manchada pela sua desventurada queda” [41], se poderá legitimamente concluir que, assim como
Cristo, o novo Adão, deve-se chamar rei não só porque é Filho de Deus mas
também porque é nosso redentor, assim, segundo certa analogia, pode-se afirmar
também que a Bem-aventurada Virgem Maria é rainha, não só porque é Mãe de Deus
mas ainda porque, como nova Eva, foi associada ao novo Adão.
Sua sublime dignidade
37.
E certo que no sentido pleno, próprio e absoluto, somente Jesus Cristo, Deus e
homem, é rei; mas também Maria - de maneira limitada e analógica, como Mãe de
Cristo-Deus e como associada à obra do divino Redentor, à sua luta contra os
inimigos e ao triunfo deles obtido participa da dignidade real. De fato, dessa
união com Cristo-Rei deriva para ela tão esplendente sublimidade, que supera a
excelência de todas as coisas criadas: dessa mesma união com Cristo nasce
aquele poder real, pelo qual ela pode dispensar os tesouros do reino do
Redentor divino; finalmente, da mesma união com Cristo se origina a inexaurível
eficácia da sua intercessão junto do Filho e do Pai.
38.
Portanto, não há dúvida alguma que Maria santíssima se avantaja em dignidade a
todas as coisas criadas e tem sobre todas o primado, a seguir ao seu Filho. “Tu
finalmente - canta São Sofrônio - superaste em muito todas as criaturas... Que
poderá existir mais sublime que tal alegria, ó Virgem Mãe? Que pode existir
mais elevado que tal graça, a qual por divina vontade só tu tiveste em sorte?” [42]. A esses louvores acrescenta São Germano: “A tua honra
e dignidade colocam-te acima de toda a criação: a tua sublimidade faz-te
superior aos anjos” [43]. São João Damasceno chega a
escrever o seguinte: “É infinita a diferença entre os servos de Deus e a sua Mãe”
[44].
39.
Para melhor compreendermos a sublime dignidade que a Mãe de Deus atingiu acima
de todas as criaturas, podemos considerar que a Santíssima Virgem, desde o
primeiro instante da sua concepção, foi enriquecida de tal abundância de
graças, que supera a graça de todos os santos. Por isso, como escreveu na Carta
Apostólica Ineffabilis Deus o nosso predecessor, de feliz
memória, Pio IX, Deus “fez a maravilha de enriquecê-la, acima de todos os anjos
e santos, de tal abundância de todas as graças celestiais hauridas dos tesouros
da divindade, que ela - imune de toda a mancha do pecado, e toda bela apresenta
tal plenitude de inocência e santidade, que não se pode conceber maior abaixo
de Deus, nem ninguém a pode compreender plenamente senão Deus” [45].
Com Cristo, ela reina nas mentes e vontades dos homens
40.
Nem a Bem-aventurada Virgem Maria teve apenas, ao seguir a Cristo, o supremo
grau de excelência e perfeição, mas também participou ainda daquela eficácia
pela qual justamente se afirma que o seu divino Filho e nosso Redentor reina na
mente e na vontade dos homens. Se, de fato, o Verbo de Deus opera milagres e
infunde a graça por meio da humanidade que assumiu - e se utiliza dos
sacramentos e dos seus santos, como instrumentos, para salvar as almas, por que
não há de servir-se do múnus e ação de sua Mãe santíssima para nos distribuir
os frutos da redenção? “Com ânimo verdadeiramente materno para conosco - como
diz o mesmo predecessor nosso, de feliz memória, Pio IX - e ocupando-se da
nossa salvação, ela, que pelo Senhor foi constituída rainha do céu e da terra,
toma cuidado de todo o gênero humano, e - tendo sido exaltada sobre todos os
coros dos anjos e as hierarquias dos santos do céu, e estando à direita do seu
unigênito Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor - com as suas súplicas maternas
impetra com eficácia, obtém quanto pede, nem pode deixar de ser ouvida” [46]. A
esse propósito, outro nosso predecessor, de feliz memória, Leão XIII, declarou
que foi concedido à Bem-aventurada Virgem Maria um poder “quase ilimitado” [47] na distribuição das graças; São Pio X acrescenta que
Maria desempenha esta missão “como por direito materno” [48].
Duplo erro a ser evitado
41.
Gloriem-se, portanto, todos os féis cristãos de estar submetidos ao império da
virgem Mãe de Deus, que tem poder régio e se abrasa de amor materno.
42.
Porém, nessas e em outras questões que dizem respeito à Bem-aventurada Virgem
Maria, procurem os teólogos e pregadores evitar certos desvios, para não caírem
em duplo erro: acautelem-se de opiniões sem fundamento e que ultrapassam com
exageros os limites da verdade; e evitem, por outro lado, a excessiva
estreiteza ao considerarem a singular, sublime, e mesmo quase divina dignidade
da Mãe de Deus, que o doutor angélico nos ensina a atribuir-lhe “em razão do
bem infinito, que é Deus” [49].
43.
Mas, nesse, como em todos os outros capítulos da doutrina cristã, “a norma
próxima e universal” é para todos o magistério vivo da Igreja, instituído por
Cristo “também para esclarecer e explicar aquelas coisas que só de modo obscuro
e como que implícito estão contidas no depósito da fé” [50].
IV. A festa da Bem-aventurada Virgem Maria Rainha
44.
Dos testemunhos da antiguidade cristã, das orações da Liturgia, da inata
devoção do povo cristão, das obras artísticas, de toda a parte recolhemos
expressões que nos mostram que a Virgem Mãe de Deus se distingue pela sua
dignidade real; mostramos também que as razões, deduzidas pela sagrada teologia
do tesouro da fé divina, confirmam plenamente essa verdade. De tantos testemunhos
referidos forma-se uma espécie de concerto harmonioso que exalta a incomparável
dignidade real da Mãe de Deus e dos homens, a qual domina todas as coisas
criadas e “foi elevada aos reinos celestes, acima dos coros dos anjos” [51].
45.
Depois de atentas e ponderadas reflexões, tendo chegado à convicção de que
seriam grandes as vantagens para a Igreja, se essa verdade solidamente
demonstrada resplandecesse com maior evidência diante de todos como luz que
brilha mais quando posta no candelabro, com a nossa autoridade apostólica
decretamos e instituímos a Festa da Bem-aventurada Virgem Maria Rainha, para
ser celebrada cada ano em todo o mundo no dia 31 de maio. Ordenamos igualmente
que no mesmo dia se renove a consagração do gênero humano ao seu Coração Imaculado.
Tudo isso nos incute grande esperança de que há de surgir nova era, iluminada
pela paz cristã e pelo triunfo da religião.
Exortação à devoção mariana
46.
Procurem pois todos, e agora com mais confiança, aproximar-se do trono da
misericórdia e da graça, para pedir à nossa Rainha e Mãe socorro na
adversidade, luz nas trevas, conforto na dor e no pranto; e, o que é mais,
esforcem-se por se libertar da escravidão do pecado, e prestem ao cetro régio
de tão poderosa Mãe a homenagem duradoura da devoção dial. Frequentem as
multidões de fiéis os seus templos e celebrem suas festas; ande nas mãos de
todos a piedosa coroa do rosário e reúna sua recitação - nas igrejas, nas
casas, nos hospitais e nas prisões - ora pequenos grupos, ora grandes assembleias,
para cantarem as glórias de Maria. Honre-se o mais possível o seu nome, mais
doce do que o néctar e mais valioso que toda a pedra preciosa; ninguém ouse o
que seria prova de alma vil - pronunciar ímpias blasfêmias contra este nome
santíssimo, ornado de tanta majestade e venerável pelo carinho próprio de mãe;
nem se atreva ninguém a dizer nada que seja irreverente.
47.
Com vivo e diligente cuidado todos se esforcem por copiar nos sentimentos e nos
atos, segundo a própria condição, as altas virtudes da Rainha do céu e nossa
Mãe amantíssima. Donde resultará que os féis, venerando e imitando tão grande
Rainha e Mãe, virão se sentir verdadeiros irmãos entre si, desprezarão a inveja
e a cobiça das riquezas, e hão de promover a caridade social, respeitar os direitos
dos fracos e fomentar a paz. Nem presuma alguém ser filho de Maria, digno de se
acolher à sua poderosíssima proteção, se a exemplo dela não é justo, manso e
casto, e não mostra verdadeira fraternidade, evitando ferir e prejudicar, e
procurando socorrer e dar ânimo.
A Igreja do silêncio
48.
Em algumas regiões da terra, não falta quem seja injustamente perseguido por
causa do nome cristão e se veja privado dos direitos divinos e humanos da
liberdade. Para afastar tais males, nada conseguiram até hoje justificados
pedidos e reiterados protestos. A esses filhos inocentes e atormentados volva
os seus olhos de misericórdia, cuja luz dissipa nuvens e serena tempestades, a
poderosa Senhora dos acontecimentos e dos tempos, que sabe vencer a maldade com
o seu pé virginal. Conceda-lhes poderem em breve gozar a devida liberdade e
cumprir publicamente os deveres religiosos. E, servindo a causa do Evangelho -
com o seu esforço concorde e egrégias virtudes, de que no meio de tantas
dificuldades dão exemplo - concorram para o fortalecimento e progresso das
sociedades terrestres.
Maria, Rainha e Medianeira da paz
49.
Pensamos também que a festa instituída pela presente Encíclica, a fim de que
todos reconheçam mais claramente e melhor honrem o clemente e materno império da
Mãe de Deus, possa contribuir para que se conserve, consolide e torne perene a
paz dos povos, ameaçada quase todos os dias por acontecimentos que enchem de
ansiedade. Não é ela acaso o arco-íris que se eleva para Deus, como sinal de
pacífica aliança? (cf.
Gn 9,13). “Contempla o arco-íris
e bendize aquele que o fez; é muito belo no seu esplendor; abraça o céu na sua
órbita radiosa, e foram as mãos do Altíssimo que o traçaram” (Eclo 43,12-13). Todo
aquele que honra a Senhora dos anjos e dos homens - e ninguém se julgue isento
deste tributo de reconhecimento e amor - invoque esta rainha, medianeira da
paz; respeite e defenda a paz, que não é maldade impune nem liberdade
desenfreada, mas concórdia bem ordenada sob o signo e comando da divina
vontade: tendem a protegê-la e aumentá-la as maternas exortações e ordens de
Maria.
50.
Desejando ardentemente que a Rainha e Mãe do povo cristão acolha estes nossos
votos, alegre com a sua paz as terras sacudidas pelo ódio, e a todos nós,
depois deste exílio, mostre a Jesus, que será na eternidade a nossa paz e
alegria; a vós, veneráveis irmãos, e aos vossos rebanhos, concedemos de todo o
coração a bênção apostólica, como penhor do auxílio de Deus onipotente e testemunho
do nosso paternal afeto.
Dado em Roma, junto de São Pedro, na Festa da Maternidade da Virgem Maria, no dia 11 de outubro do ano de 1954, XVI do nosso pontificado.
PIO XII
Notas
[1] cf. Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, in: Acta Apostolicae Sedis (AAS), 42, 1950, pp. 753ss.
[2] cf. Encíclica Fulgens
corona, AAS 45,
1953, pp. 577ss.
[3] cf. AAS 38, 1946, pp. 264ss.
[4] Santo Efrém, Hymni de Beata Maria Virgine, XIX.
[5] idem, Oratio and
Sanctissimam Dei Matrem.
[6] São Gregório Nazianzeno, Poemata dogmatica, XVIII, v. 58;
Patrologia Greca (PG) 37, 485.
[7] Prudêncio, Dittochoeum, XVII; Patrologia Latina (PL) 60,
102A.
[8] Homiliae in Lucam, VII; cf. PG 13, 1902D.
[9] São Jerônimo, Liber de nominibus hebraeis; PL 23, 886.
[10] São Pedro Crisólogo, Sermo 142, De Annuntiatione Beatae
Mariae Virginis; PL 52, 579C; cf. 582B; 584A: “Regina totius exstitit castitatis”.
[11] Relatio Epiphanii Episcopi Constantinopolitani; PL 63,
498D.
[12] Encomium in Dormitionem Sanctissimae Dominae nostrae Deiparae;
PG 86, 3306B.
[13] Santo André de Creta, Homilia II in Dormitionem Sanctissimae
Deiparae; PG 97, 1079B.
[14] idem, Homilia
III in Dormitionem Sanctissimae Deiparae; PG 97, 1099A.
[15] São Germano, In Praesentationem Sanctissimae Deiparae,
I; PG 98, 303A.
[16] idem, In
Praesentationem Sanctissimae Deiparae, II; PG 98, 315C.
[17] São João Damasceno, Homilia I in Dormitionem Beatae Mariae
Virginis; PG 96, 719A.
[18] idem, De fide
orthodoxa, I, IV, c. 14; PG 44, 1158B.
[19] Venâncio Fortunato, De laudibus Mariae; PL 88, 282B;
283A.
[20] Santo Ildefonso de Toledo, De virginitate perpetua Beatae
Mariae; PL 96, 58A.D.
[21] São Martinho I, Epistula XIV; PL 87, 199-200A.
[22] S. Agatão: PL 87,
1221A.
[23] Hardouin, Acta Conciliorum, IV, 234.238; PL 89, 508B.
[24] Sisto IV, Bula Cum praeexcelsa, 28 de fevereiro de
1476.
[25] Bento XIV, Bula Gloriosae Dominae, 27 de setembro de
1748.
[26] Santo Afonso de Ligório, As glórias de Maria, p.
I, c. I, § 1.
[27] Ex liturgia Armenorum: In
festo Assumptionis, Hymnus ad Matutinum.
[28] Ex Menaeo (byzantino): Dominica post Natalem, Canone ad
Matutinum..
[29] Officium hymni Akátistos (in
ritu byzantino).
[30] Missale Aethiopicum,
Anaphora “Dominae nostrae Mariae, Matris Dei”.
[31] Breviarium Romanum, Versiculus sexti Resp..
[32] Festum Assumptionis, Hymnus ad
Laudes.
[33] ibid., ad Magnificat II Vesp.
[34] São João Damasceno, De fide orthodoxa, I, IV, c. 14; PG 94, 1158B.
[35] Pio XI, Encíclica Quas primas; AAS 17, 1925, p. 599.
[36] Festum septem dolorum Beatae
Mariae Virginis, Tractus.
[37] Eadmerus, De excellentia Virginis Mariae, c. 11; PL 159, 308AB.
[38] F. Suárez, De mysteriis vitae Christi, 22, 2.
[39] Santo Irineu, Adversus haereses, V, 19, 1; PG 9, 1175B.
[40] Pio XI, Epístola Auspicatus profecto; AAS 25, 1933, p. 80.
[41] Pio XII, Encíclica Mystici Corporis; AAS 35, 1943, p. 247.
[42] São Sofrônio, In Annuntiationem Beatae Mariae Virginis; PG 87, 3238D.3242A.
[43] São Germano, Homilia II in Dormitionem Beatae Mariae
Virginis; PG 98, 354B.
[44] São João Damasceno, Homilia I in Dormitionem Beatae Mariae
Virginis: PG 96, 715A.
[45] Pio IX, Bula Ineffabilis Deus; Acta Pii IX, I, pp. 597-598.
[46] ibid., p. 618.
[47] Leão XIII, Encíclica Adiutricem populi: Acta Sanctae Sedis (ASS) 28, 1895-96, p.
130.
[48] Pio X, Encíclica Ad diem illum: ASS 36, 1903-1904, p.
455.
[49] Santo Tomás, Summa Theologiae, I, q. 25, a. 6, ad 4.
[50] Pio XII, Encíclica Humani generis: AAS 42 1950, p. 569.
[51] Ex Breviarium Romanum: Festum
Assumptionis Beatae Mariae Virginis.
Fonte: Santa Sé.
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