No último dia 11 de março o Padre Raniero Cantalamessa, Pregador da Casa Pontifícia, proferiu sua terceira meditação de Quaresma para a Cúria Romana. Para ver as pregações anteriores clique aqui, aqui e aqui.
Pe. Raniero Cantalamessa, OFM
Cap
Quarta Pregação da Quaresma
- 11 de março de 2016
Matrimônio e Família na Gaudium et Spes e na atualidade
Dedico esta meditação a uma
reflexão espiritual sobre a Gaudium et Spes, constituição pastoral sobre a
Igreja no mundo. Dos vários problemas da sociedade abordados neste texto
conciliar – cultura, economia, justiça social, paz –, o mais atual e
problemático é o do matrimônio e família. A ele a Igreja dedicou os dois
últimos sínodos dos bispos. A maioria de nós aqui presentes não vive
diretamente esse estado de vida, mas todos temos de conhecer os seus problemas
para compreender e ajudar a grande maioria do povo de Deus que vive no
matrimônio, especialmente agora que ele está no centro de ataques e ameaças de
todas as partes.
A Gaudium et Spes trata a fundo
da família no início da segunda parte (núm. 46-53). Não há necessidade de citar
as suas declarações, que refletem a doutrina católica tradicional que todos nós
conhecemos, além do novo destaque dado ao amor mútuo entre os cônjuges,
abertamente reconhecido como um bem do matrimônio, também este primário, junto
com a procriação.
Sobre o matrimônio e a família,
a Gaudium et Spes, de acordo com o seu bem conhecido procedimento, destaca
antes de tudo as conquistas positivas do mundo moderno (“as alegrias e as
esperanças”), e, em segundo lugar, os problemas e os perigos (“as tristeza e as
angústias”). Eu proponho seguir o mesmo método, tendo em conta, no entanto, as
mudanças dramáticas que ocorreram neste campo ao longo do meio século
transcorrido desde então. Evocarei rapidamente o desígnio de Deus sobre
matrimônio e família, porque é sempre dele que nós, crentes, devemos partir,
para em seguida ver o que a revelação bíblica pode trazer para a solução dos
problemas atuais. Deliberadamente me abstenho de tocar alguns problemas
particulares discutidos no sínodo dos bispos, sobre os quais só o Papa tem
agora o direito de ainda dizer alguma palavra.
1. Matrimônio e família no
projeto divino e no Evangelho de Cristo
O livro do Gênesis tem dois
relatos diferentes da criação do primeiro casal humano, que remontam a duas
tradições diferentes: a javista (século X a.C.) e a mais recente (século VI
a.C.), chamada de “sacerdotal”. Na tradição sacerdotal (Gênesis 1, 26-28), o
homem e a mulher são criados simultaneamente, não um do outro; há uma relação
entre ser homem e mulher e ser à imagem de Deus: “Deus criou o homem à sua
imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou”. O fim primário da
união entre o homem e a mulher é visto no serem fecundos e encherem a terra.
Na tradição javista, que é a
mais antigo (Gn 2, 18-25), a mulher vem do homem; a criação dos dois sexos é
vista como um remédio para a solidão (“Não é bom que o homem esteja só; vou lhe
dar uma ajuda que lhe seja semelhante”); mais que o fator da procriação,
acentua-se o fator unitivo (“o homem se unirá à sua mulher e serão os dois uma
só carne”); cada um é livre diante da própria sexualidade e da sexualidade do
outro: “ambos estavam nus, o homem e sua mulher, mas não se envergonhavam”.
A explicação mais convincente
do porquê desta “invenção” divina da distinção dos sexos eu encontrei não num
exegeta, mas em um poeta, Paul Claudel:
“O homem é um ser orgulhoso;
não havia outra maneira de fazê-lo compreender o próximo senão fazê-lo vir da
sua carne; não havia outra maneira de fazê-lo entender a dependência e a
necessidade se não mediante a lei sobre ele deste ser diferente [a mulher],
devida ao simples fato de que esse ser existe”[1].
Abrir-se ao outro sexo é o
primeiro passo para se abrir ao outro que é o próximo, até o Outro com letra
maiúscula que é Deus. O matrimônio nasce sob o signo da humildade; é
reconhecimento de dependência e, portanto, da própria condição de criatura.
Enamorar-se de uma mulher ou de um homem é fazer o ato mais radical de
humildade. É tornar-se mendicante e dizer ao outro: “Eu não basto para mim
mesmo; eu preciso do teu ser”. Se, como pensava Schleiermacher, a essência da
religião consiste no “sentimento de dependência” (Abhaengigheitsgefühl) perante
Deus, então podemos dizer que a sexualidade humana é a primeira escola da
religião.
Até aqui, o projeto de Deus.
Não é explicável o resto da própria Bíblia, no entanto, se, junto com o relato
da criação, não se leva em conta ainda o da queda, em especial o que é dito à
mulher: “Multiplicarei as tuas dores; na dor darás à luz os filhos. Ao teu
marido se voltará o teu instinto, mas ele te dominará” (Gn 3,16). O predomínio
do homem sobre a mulher faz parte do pecado do homem, não do projeto de Deus;
com aquelas palavras, Deus o prenuncia, não o aprova.
A Bíblia é um livro
divino-humano não só porque tem como autores Deus e o homem, mas também porque
descreve, misturadas entre si, a fidelidade de Deus e a infidelidade do homem.
Isto é particularmente evidente quando se compara o projeto de Deus sobre o
matrimônio e a família com a sua aplicação prática na história do povo
escolhido. Para ficar no livro do Gênesis, o filho de Caim, Lameque, já viola a
lei da monogamia tomando duas esposas. Noé, com a sua família, se mostra uma
exceção em meio à corrupção geral do seu tempo. Os mesmos patriarcas Abraão e
Jacó têm filhos com mais de uma mulher. Moisés autoriza a prática do divórcio;
Davi e Salomão mantêm um verdadeiro harém de mulheres.
Mais do que nas transgressões
práticas específicas, o afastamento do ideal inicial é visível na concepção de
fundo que se tem do matrimônio em Israel. O principal obscurecimento se refere
a dois pilares. O primeiro é que o matrimônio, de fim, se torna meio. O Antigo
Testamento, como um todo, considera o matrimônio como uma estrutura de
autoridade patriarcal, destinada principalmente à perpetuação do clã. Neste
sentido, devem ser entendidas as instituições do levirato (Dt 25, 5-10), do
concubinato (Gn 16) e da poligamia provisória. O ideal de uma comunhão de vida
entre o homem e a mulher, fundada em uma relação pessoal e recíproca, não é
esquecido, mas passa a segundo plano em relação ao bem da prole. O segundo
grande obscurecimento se refere à condição da mulher: de companheira do homem,
dotada de igual dignidade, ela aparece cada vez mais subordinada ao homem e em
função do homem.
Um papel importante em manter
vivo o projeto inicial de Deus sobre o matrimônio é desempenhado pelos
profetas, em especial Oseias, Isaías, Jeremias e o Cântico dos Cânticos.
Assumindo a união do homem e da mulher como símbolo da aliança entre Deus e seu
povo, eles recolocavam em primeiro plano os valores do amor mútuo, da
fidelidade e da indissolubilidade que caracterizam a atitude de Deus para com
Israel.
Jesus, que veio “recapitular” a
história humana, recapitula também o matrimônio.
“Alguns fariseus se aproximaram
então para testá-lo e lhe perguntaram: É lícito a um homem repudiar a sua
mulher por qualquer motivo? E ele respondeu: Não lestes que o Criador desde o
princípio os fez homem e mulher (Gn 1, 27) e disse: Por esta razão, o homem
deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne?
(Gn 2, 24). Eles não são mais dois, e sim uma só carne. Portanto, o que Deus
uniu, o homem não separe” (Mt 19,3-6).
Os adversários se situam no
âmbito estreito da casuística de escola (se é lícito repudiar a mulher por
qualquer motivo ou se é preciso um motivo específico e sério). Jesus responde
desde o início a partir da raiz do problema. Em sua citação, Jesus se refere
aos dois relatos da instituição do matrimônio, toma elementos de um e do outro,
mas destaca especialmente o aspecto da comunhão das pessoas.
O que se segue no texto, sobre
o problema do divórcio, também vai nessa direção; reafirma a fidelidade e a
indissolubilidade do vínculo matrimonial acima do próprio bem da prole, que, no
passado, fora usado para justificar poligamia, levirato e divórcio:
“Eles objetaram: Por que então
Moisés ordenou dar-lhe carta de repúdio e mandá-la embora? Jesus lhes
respondeu: Por causa da dureza do vosso coração Moisés vos permitiu repudiar
vossas mulheres; mas no princípio não foi assim. Por isso vos digo que qualquer
um que repudia a sua mulher, exceto em caso de concubinato, e se casa com outra
comete adultério” (Mt 19, 7-9).
O texto paralelo de Marcos
mostra que, mesmo em caso de divórcio, o homem e a mulher se colocam, de acordo
com Jesus, em rigoroso pé de igualdade: “Quem repudia a sua mulher e se casa
com outra comete adultério contra ela; e se ela repudia o marido e se casa com
outro, comete adultério” (Mc 10, 11-12).
Com as palavras “O que Deus
uniu, o homem não separe”, Jesus afirma que há uma intervenção direta de Deus
em toda união matrimonial. A elevação do matrimônio a “sacramento”, isto é, a
sinal de uma ação de Deus, não se alicerça, portanto, unicamente no frágil
argumento da presença de Jesus nas bodas de Caná e no texto da carta aos
Efésios que fala do matrimônio como de um reflexo da união entre Cristo e a
Igreja (cf. Ef 5, 32); começa, implicitamente, com o Jesus terreno e faz parte
da sua religação das coisas com o início. João Paulo II define o matrimônio
como o “sacramento mais antigo”[2].
2. O que o ensinamento bíblico
nos diz hoje
Esta é, em resumo, a doutrina
da Bíblia, mas não podemos deter-nos nela. “A Escritura – dizia São Gregório
Magno – cresce com quem a lê” (cum legentibus crescit) [3]; revela novas
implicações à medida que novas perguntas são feitas. E, hoje, as novas
perguntas, ou provocações, sobre matrimônio e família são muitas.
Estamos diante de uma
contestação aparentemente global do projeto bíblico sobre sexualidade,
matrimônio e família. Como comportar-se em face deste fenômeno inquietante? O
concílio abriu um método novo que é de diálogo, não de confronto com o mundo; um
método que não exclui a autocrítica. Devemos, penso eu, aplicar este método
também à discussão dos problemas do matrimônio e da família. Aplicar este
método de diálogo significa tentar ver se, mesmo no fundo das contestações mais
radicais, não há uma instância positiva a ser acolhida.
A crítica ao modelo tradicional
de matrimônio e família que levou às hodiernas e inaceitáveis propostas de
desconstrucionismo começou com o iluminismo e o romantismo. Com intenções
diversas, esses dois movimentos se expressaram contra o matrimônio tradicional
visto exclusivamente nos seus “fins” objetivos: a prole, a sociedade, a Igreja,
e não o suficiente em si mesmo, no seu valor subjetivo e interpessoal. Tudo se
exigia dos futuros cônjuges exceto que se amassem e se escolhessem livremente
entre si. Ainda hoje, em muitas partes do mundo, há casais que se conhecem e se
veem pela primeira vez no dia das núpcias. A tal modelo, o iluminismo opôs o
matrimônio como pacto entre os cônjuges e o romantismo como comunhão de amor
entre os esposos.
Mas esta crítica não vai contra
a Bíblia, e sim a favor do seu sentido original! O concílio Vaticano II recebeu
esta instância quando reconheceu como bem igualmente primário do matrimônio o
amor e ajuda mútuos entre os cônjuges. São João Paulo II, na linha da Gaudium
et Spes, em uma das suas catequeses das quartas-feiras, disse:
“O corpo humano, com o seu
sexo, e a sua masculinidade e feminilidade (...) é não apenas fonte de
fecundidade e de procriação, como em toda a ordem natural, mas inclui, desde o
início, o atributo esponsal, isto é, de expressar o amor: aquele amor em que o
homem-pessoa se torna dom e, através desse dom, cumpre o próprio sentido do seu
ser e existir”[4].
Em sua encíclica "Deus
Caritas Est", o papa Bento XVI foi além, escrevendo coisas profundas e
novas sobre o eros no matrimônio e até nas relações entre Deus e o homem. “Esta
estreita ligação entre eros e matrimônio na Bíblia quase não tem paralelos na
literatura”, escreveu ele[5]. Um dos maiores erros que cometemos para com Deus
é transformar tudo o que diz respeito ao amor e à sexualidade em uma área
saturada de malícia, onde Deus não deve entrar. Como se satanás, e não Deus,
fosse o criador dos sexos e o especialista no amor.
Nós, crentes – e muitos não
crentes – estamos longe de aceitar as consequências que alguns tiram hoje
destas premissas: por exemplo, que bastaria qualquer tipo de eros para
constituir um matrimônio, inclusive o de pessoas do mesmo sexo; mas essa nossa
discordância assume outra força e credibilidade quando unida ao reconhecimento
da bondade de fundo da instância, e também a uma sadia autocrítica.
Não podemos silenciar a
contribuição que os cristãos deram à formação dessa visão puramente objetivista
do matrimônio contra a qual a cultura ocidental moderna se lançou com
veemência. A autoridade de Agostinho, reforçada neste ponto por Tomás de
Aquino, tinha acabado jogando uma luz negativa na união carnal dos cônjuges,
considerada o meio de transmissão do pecado original e não isenta, em si mesma,
de pecado “ao menos venial”. De acordo com o doutor de Hipona, cônjuges
deveriam realizar o ato conjugal “com pesar” (cum dolore) e só porque não havia
outra maneira de dar cidadãos ao Estado e membros à Igreja[6].
Outra instância moderna que
podemos tornar nossa própria é a da igual dignidade da mulher no matrimônio.
Essa igualdade, como vimos, está no cerne do projeto originário de Deus e do
pensamento de Cristo, mas foi muitas vezes desatendida ao longo dos séculos. A
palavra de Deus a Eva, “Ao homem se voltará o teu desejo e ele te dominará”,
teve cumprimento trágico na história.
Nos representantes da chamada
“revolução dos gêneros”, esta instância levou a propostas insanas, como a de
abolir a distinção dos sexos e substituí-la pela mais elástica e subjetiva
distinção de “gêneros” (masculino, feminino, variável), ou a de libertar as
mulheres da “escravidão da maternidade”, prevendo outros meios, inventados pelo
homem, para o nascimento dos filhos. Nos últimos tempos há uma sucessão de
notícias de que homens em breve poderão ficar grávidos e dará à luz um filho.
“Adão dá Eva à luz”, escreve-se sorrindo, quando seria de se chorar. Os antigos
teriam definido tudo isso com um termo: hybris, a arrogância do homem diante de
Deus.
É justamente a escolha do
diálogo e da autocrítica o que nos dá o direito de denunciar estes projetos
como “desumanos”, ou seja, contrários não só à vontade de Deus, mas também ao
bem da humanidade. Traduzidos na prática em larga escala, eles poderiam levar a
quedas humanas e sociais imprevisíveis. Nossa única esperança é que o bom senso
das pessoas, junto com o “desejo” natural do sexo oposto e com o instinto de
maternidade e paternidade que Deus inscreveu na natureza humana, resista a
essas tentativas de substituir Deus, ditadas mais por tardios sentimentos de
culpa do homem do que por genuíno respeito e amor à mulher.
3. Um ideal a ser redescoberto
Não menos importante que a
tarefa de defender o ideal bíblico do matrimônio e da família é a tarefa de
redescobri-lo e vivê-lo plenamente como cristãos, a fim de repropô-lo ao mundo
mais com fatos do que com palavras. Os primeiros cristãos, com seus costumes,
mudaram as leis do Estado sobre a família; nós não podemos pensar em fazer o
oposto, ou seja, em mudar os costumes das pessoas com as leis do Estado, ainda
que, como cidadãos, tenhamos o dever de ajudar o Estado a fazer leis justas.
Depois de Cristo, nós lemos
corretamente o relato da criação do homem e da mulher à luz da revelação da
Trindade. A esta luz, a frase “Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de
Deus o criou; homem e mulher os criou” revela finalmente o seu significado,
enigmático e incerto antes de Cristo. Que relação pode haver entre ser “à
imagem de Deus” e ser “homem e mulher”? O Deus da Bíblia não tem conotações
sexuais, não é nem homem nem mulher.
A semelhança consiste nisto.
Deus é amor e o amor exige comunhão, intercâmbio interpessoal; exige um “eu” e
um “tu”. Não há amor que não seja amor de alguém; onde só há um sujeito, não
pode haver amor, mas egoísmo ou narcisismo. Onde Deus é concebido como Lei ou
Poder Absoluto não há necessidade de uma pluralidade de pessoas (o poder pode
ser exercido sozinho). O Deus revelado por Jesus Cristo, sendo amor, é único,
mas não solitário; é uno e trino. Coexistem nele unidade e distinção: unidade
de natureza, de querer, da intenção, e distinção de características e de
pessoas.
Duas pessoas que se amam – e o
caso do homem e da mulher no matrimônio é o mais forte – reproduzem algo do que
acontece na Trindade. Lá, duas pessoas – o Pai e o Filho – se amam e “sopram” o
Espírito que é o amor que os funde. Houve quem chamasse o Espírito Santo de
“Nós divino”, ou seja, não a “terceira pessoa da Trindade”, mas a primeira
pessoa plural[7]. Precisamente nisto é que o casal humano é imagem de Deus.
Marido e mulher são, de fato, uma só carne, um só coração, uma só alma, ainda
que na diversidade de sexo e de personalidade. No casal se reconciliam entre si
a unidade e a diversidade.
A esta luz, descobre-se o
profundo significado da mensagem dos profetas sobre o matrimônio humano: que
ele é um símbolo e reflexo de outro amor, o de Deus pelo seu povo. Isto não
significava sobrecarregar de significado místico uma realidade puramente
mundana. Não é apenas fazer simbolismo; é, antes, revelar a verdadeira face e o
escopo último da criação do ser humano como homem e mulher.
Qual é a causa da incompletude
deixada pela união sexual, dentro e fora do matrimônio? Por que esta dinâmica
recai sempre sobre si própria e por que esta promessa de infinito e eterno é
sempre frustrada? Para esta desilusão se tenta um remédio que, no entanto, só
faz aumentá-la. Em vez de mudar a qualidade do ato, se aumenta a sua
quantidade, passando-se de um parceiro a outro. Chega-se assim à destruição do
dom de Deus que é a sexualidade, destruição em andamento na cultura e na
sociedade de hoje.
Queremos de vez, como cristãos,
procurar uma explicação para esta devastadora disfunção? A explicação é que a
união sexual não é vivida do jeito e com a intenção querida por Deus. Este
escopo era que, através do êxtase e da fusão de amor, o homem e a mulher se
elevassem acima do desejo e tivessem certa pregustação do infinito; que se
lembrassem de onde vieram e para onde eram direcionados.
O pecado, a começar pelo de
Adão e Eva bíblicos, atravessou este projeto; “profanou” aquele gesto, ou seja,
o destituiu do seu significado religioso. Fez dele um gesto que é fim de si
mesmo, conclusão em si mesmo e, portanto, “insatisfatório”. O símbolo foi
separado da realidade simbolizada, privado de seu dinamismo intrínseco e,
portanto, mutilado. Nunca como neste caso se experimenta a verdade do dito de
Agostinho: "Fizeste-nos para ti, ó Deus, e o nosso coração está inquieto
enquanto não repousa em ti". Não fomos criados, de fato, para viver num
eterno relacionamento de casal, mas para viver num eterno relacionamento com
Deus, com o Absoluto. Mesmo o Fausto de Goethe o descobre ao fim do seu longo
vagar; repensando em seu amor por Margarida, ele exclama no final do poema:
"Tudo o que passa é só uma parábola. Só aqui [no céu] o inatingível se
torna realidade".
No testemunho de alguns casais
que fizeram a experiência renovadora do Espírito Santo e vivem a vida cristã
carismaticamente, encontra-se algo do significado original do ato conjugal. Não
é de admirar que seja assim. O matrimônio é o sacramento do dom recíproco que
os esposos fazem de si mesmos um ao outro, e o Espírito Santo é, na Trindade, o
“dom”, ou melhor, o “doar-se” recíproco do Pai e do Filho, não um ato
passageiro, mas um estado permanente. Onde chega o Espírito Santo, nasce, ou
renasce, a capacidade de fazer-se dom. É assim que opera a “graça de estado” no
matrimônio.
4. Casados e consagrados na
Igreja
Embora nós, consagrados, não
vivamos a realidade do matrimônio, como eu disse anteriormente, nós temos de
conhecê-la para ajudar os que a vivem. Adiciono outra razão: precisamos
conhecê-la para ser, nós também, ajudados por eles! Falando de matrimônio e
virgindade, o Apóstolo diz: “Cada um tem o próprio dom (chárisma) de Deus, uns
de uma forma, outros de outra” (1 Cor 7, 7); ou seja: o casado tem seu carisma
e o que não se casa “por causa do Senhor” tem o dele.
O carisma – diz o mesmo
Apóstolo – é “uma manifestação particular do Espírito para o bem comum” (1 Cor
12, 7). Aplicado à relação entre casados e consagrados na Igreja, isto
significa que o celibato e a virgindade também são para os casados e que o
matrimônio também é para os consagrados, ou seja, para o seu bem. Esta é a
natureza intrínseca do carisma, aparentemente contraditória: algo de
"particular" ("uma manifestação particular do Espírito"),
mas que serve a todos ("para o bem comum").
Na comunidade cristã,
consagrados e casados podem "edificar" uns aos outros. As pessoas
casadas são chamadas, pelos consagrados, ao primado de Deus e daquilo que não
passa; são introduzidos no amor à Palavra de Deus que eles podem melhor
aprofundar e "compartilhar" com os leigos. Mas as pessoas consagradas
também aprendem algo das casadas. Aprendem a generosidade, a abnegação, o
serviço à vida e, muitas vezes, certa "humanidade" que vem do duro
contato com as realidades da existência.
Falo por experiência própria.
Eu pertenço a uma ordem religiosa em que, até alguns anos atrás, nos
levantávamos à noite para recitar o ofício "matutino", que durava
cerca de uma hora. Houve então o grande ponto de viragem na vida religiosa,
resultante do concílio. Parecia que o ritmo da vida moderna – o estudo para os
jovens e o ministério apostólico para os sacerdotes – não permitia mais aquele
levantar-se noturno que interrompia o sono, e, pouco a pouco, ele foi
abandonado, a não ser em alguns lugares de formação.
Quando, mais tarde, o Senhor me
deu a conhecer de perto, em meu ministério, várias famílias jovens, descobri
algo que salutarmente me sacudiu. Aqueles jovens papais e mamães tinham de se
levantar não uma, e sim duas, três ou mais vezes por noite para dar de comer,
dar remédios, embalar o bebê se ele chorasse, cuidar dele se estivesse com
febre. E, de manhã, um dos dois, ou ambos, na hora de sempre, tinham de correr
para o trabalho depois de levar a criança para a casa dos avós ou para a
creche. Havia um relógio-ponto para ser batido, fizesse bom ou mau tempo, com
saúde ou sem ela.
Então eu me disse: se não
corrermos para nos consertar, corremos grave perigo! O nosso modo de vida, se não
for regido pela observância autêntica da Regra e por certo rigor de horários e
hábitos, periga se tornar uma vida mansa e nos levar à dureza do coração. O que
os bons pais são capazes de fazer pelos filhos carnais, o grau de esquecimento
de si mesmos a que são capazes de chegar para cuidar da saúde deles, dos seus
estudos e da sua felicidade, deve ser a medida do que nós devemos fazer pelos
nossos filhos e irmãos espirituais. Temos o exemplo do apóstolo Paulo, que
dizia querer "consumir-se" pelos seus filhos de Corinto (cf. 2 Cor
12, 15).
Que o Espírito Santo, doador
dos carismas, ajudar a todos nós, casados ou consagrados, a colocar em prática
a exortação do apóstolo Pedro:
"Viva cada um segundo o
dom recebido, colocando-o a serviço dos outros, como bons administradores da
multiforme graça de Deus (...), para que em tudo seja Deus glorificado por meio
de Jesus Cristo, a quem pertencem a glória e o poder pelos séculos dos séculos.
Amém!" (1 Pd 4, 10-11).
[1] P.
Claudel, Le soulier de satin, a.III. sc.8 (ed. La Pléiade, II, Paris 1956, pág. 804).
[2] João Paulo II, Homem e
mulher os criou. Catequeses sobre o amor humano, Roma 1985, pág. 365.
[3] Gregorio Magno, Moralia
in Job, 20, 1, 1.
[4] João Paulo II, audiência de
16 de janeiro de 1980 (Insegnamenti di Giovanni Paolo II, Libreria Editrice
Vaticana 1980, pág. 148).
[5] Bento XVI, Deus caritas
est, 11.
[6] Cf. Santo Agostinho,
Discursos, 51, 25 (PL 38, 348).
[7] Cf. H. Mühlen , Der Heilige Geist als Person. Ich - Du - Wir,
Münster in W., 1963.
Fonte: Rádio Vaticana
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