A Misericórdia nos textos litúrgicos da
Semana Santa
Autor: André Florcovski
A Semana Santa,
e mais especificamente “o sagrado Tríduo Pascal da Paixão e Ressurreição do
Senhor resplandece como o ápice de todo o ano litúrgico [1]”. Neste Ano da
Misericórdia convocado pelo Papa Francisco, merece especial relevância a
celebração destes dias, como nos recorda o subsídio litúrgico do Jubileu:
“Também neste Ano Santo se deve ter grande
cuidado com a preparação das celebrações da Semana Santa, especialmente do
Tríduo Pascal. Nelas, com efeito, através da valorização da linguagem
litúrgica, feita de palavras, sinais, símbolos e gestos, e especialmente na
adoração da Cruz na Sexta-feira Santa, emerge todo o mistério de amor e de
justificação do Pai, com o sacrifício do Filho, em favor de toda a humanidade.
Tais celebrações têm o seu ponto alto na Vigília Pascal, na narração da
história da salvação, através da Liturgia da Palavra, e na celebração dos
sacramentos que representam a solicitude do Pai nos conflitos dos seus filhos [2]”.
Neste artigo,
iremos analisar a presença do tema da misericórdia nos textos litúrgicos das
celebrações da Semana Santa (orações e leituras). Em cada dia desta semana a
palavra misericórdia aparecerá ao menos uma vez nas celebrações, como que a
recordar-nos diariamente que a misericórdia divina é uma realidade fundamental
nos mistérios que celebramos.
Utilizaremos
nesta análise apenas os textos litúrgicos em sua edição portuguesa para o
Brasil (2ª edição típica do Missal Romano e Lecionário Dominical).
1. Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor
Oração sobre as oferendas
“Ó Deus, pela paixão de nosso Senhor Jesus
Cristo sejamos reconciliados convosco, de modo que, ajudados pela vossa misericórdia, alcancemos pelo
sacrifício do vosso Filho o perdão que não merecemos por nossas obras. Por
Cristo, nosso Senhor [3]”.
Nesta oração,
retirada do Sacramentário Veronês [4] (século VI), a misericórdia divina é
associada ao perdão dos pecados: pede-se a misericórdia como auxílio para obter
o perdão e a reconciliação com Deus, que nos são concedidos pela Paixão de
Cristo.
Bênção da Paixão (1ª invocação)
“O Pai de misericórdia, que vos deu um exemplo de amor na paixão do seu
Filho, vos conceda pela vossa dedicação a Deus e ao próximo, a graça de sua
bênção [5]”.
Nesta bênção,
própria para o Domingo de Ramos (podendo ser usada até a quarta-feira da Semana
Santa), aparece a misericórdia como atributo de Deus, usando-se uma expressão recorrente
na Liturgia: “Pai de misericórdia”. Esta expressão aparecerá novamente na
Quinta-feira Santa, na Oração Eucarística I, como veremos adiante.
2. Da segunda à quarta-feira da Semana
Santa
Segunda-feira: Oração depois da Comunhão
“Visitai, ó Deus, o vosso povo e assisti com
vosso amor de Pai aos que celebram os vossos mistérios, para que conservemos
pela vossa proteção os remédios da salvação eterna que recebemos de vossa misericórdia. Por Cristo, nosso Senhor [6]”.
Terça-feira: Oração depois da Comunhão
“Nutridos pelos dons que nos salvam,
imploramos, ó Deus, vossa misericórdia,
para que o mesmo sacramento que nos alimenta na terra nos faça participar da
vida eterna. Por Cristo, nosso Senhor [7]”.
Quarta-feira: Oração sobre as oferendas
“Acolhei, ó Deus, nossa oferenda e deixai
agir vossa misericórdia, para que
consigamos os frutos do sacramento em que celebramos a paixão do vosso Filho.
Que vive e reina para sempre [8]”.
Nestes três dias
que antecedem o Tríduo Pascal, a misericórdia divina é pedida a Deus associada
aos frutos do sacramento que celebramos, isto é, pede-se a misericórdia para
alcançar a salvação.
3. Missa da Ceia do Senhor
A Missa da Ceia
do Senhor é a única celebração da Semana Santa em que a palavra “misericórdia”
não aparece nos textos específicos da celebração. Porém, muito convém neste dia
usar a Oração Eucarística I (Cânon Romano), inclusive com partes próprias para
esta celebração [9], na qual a misericórdia aparece duas vezes:
Oração Eucarística I
“Pai de misericórdia,
a quem sobem nossos louvores, nós vos pedimos por Jesus Cristo, vosso Filho e
Senhor nosso, que abençoeis estas oferendas apresentadas ao vosso altar [10]”.
“E a todos nós pecadores, que confiamos na
vossa imensa misericórdia, concedei,
não por nossos méritos, mas por vossa bondade, o convívio dos Apóstolos e
Mártires... [11]”.
Esta Oração
Eucarística, cuja origem remonta ao século IV, caracteriza-se pelos
paralelismos. Por isso, o tema da misericórdia aparece logo no início, como
atributo de Deus (Pai de misericórdia), e já próximo ao final, quase como uma
exortação à confiança na misericórdia divina. As duas ocorrências do termo
complementam-se: Deus é misericordioso e nós devemos confiar em sua
misericórdia.
Papa Francisco na Missa da Ceia do Senhor (2013) |
4. Celebração da Paixão do Senhor
Oração inicial (1ª opção)
“Ó Deus, foi por nós que o Cristo, vosso
Filho, derramando o seu sangue, instituiu o mistério da Páscoa. Lembrai-vos
sempre de vossas misericórdias, e
santificai-nos pela vossa constante proteção. Por Cristo, nosso Senhor [12]”.
Esta oração, a
primeira do sóbrio rito da Celebração da Paixão do Senhor, associa a
misericórdia divina aos temas da santidade e da proteção: é uma súplica a Deus
para que “lembre-se” de suas misericórdias, a fim de santificar-nos e
proteger-nos.
Segunda leitura (Hb 4,14-16; 5,7-9)
“Aproximemo-nos
então, com toda a confiança, do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de
um auxílio no momento oportuno [13]” (Hb 4,16).
A segunda
leitura desta celebração, retirada da Carta aos Hebreus, quer recordar-nos a
dimensão sacerdotal do sacrifício de Cristo na cruz. Ele é o perfeito mediador
entre nós e o Pai: aproximemo-nos dele para alcançar misericórdia em tempo
oportuno.
Oração Universal - IV intenção: Pelos
Catecúmenos
“Oremos pelos (nossos) catecúmenos: que o
Senhor nosso Deus abra os seus corações e as portas da misericórdia, para que, tendo recebido nas águas do
Batismo o perdão de todos os seus pecados, sejam incorporados no Cristo Jesus [14]”.
No antigo texto
da Oração Universal, cuja origem remonta-se ao século V [15], encontramos a
mais significativa expressão sobre a misericórdia neste Ano Santo. Na intenção
pelos catecúmenos, pede-se que Deus abra-lhes as portas da misericórdia. Ora, o
simbolismo da porta ocupa um lugar central no Jubileu. Aqui aparece associado
ao sacramento do Batismo, pelo qual os catecúmenos receberão o perdão dos
pecados.
Oração Universal - X oração: Por todos os
que sofrem provações
“Deus eterno e todo poderoso, sois a
consolação dos aflitos e a força dos que labutam. Cheguem até vós as preces dos
que clamam em sua aflição, sejam quais forem os seus sofrimentos, para que se
alegrem em suas provações com o socorro da vossa misericórdia. Por Cristo, nosso Senhor [16]”.
Outra referência
à misericórdia na Oração Universal está presente na oração pelos que sofrem
provações. Sobre estes pede-se especialmente o socorro da misericórdia divina
em suas aflições.
Oração depois da Comunhão
“Ó Deus, que nos renovastes pela santa morte
e ressurreição do vosso Cristo, conservai em nós a obra de vossa misericórdia, para que, pela
participação deste mistério, vos consagremos sempre a nossa vida. Por Cristo,
nosso Senhor [17]”.
Por fim, a
Oração depois da Comunhão é um pedido a Deus para que a obra de sua
misericórdia, isto é, a salvação que nos foi concedida pela morte de Cristo,
frutifique em nós, a fim de que nossa vida seja sempre consagrada a Deus.
Papa Francisco na Celebração da Paixão (2015) |
5. Vigília Pascal
Quarta leitura (Is 54,5-14)
“Num momento de indignação, por um pouco
ocultei de ti minha face, mas com misericórdia
eterna compadeci-me de ti, diz teu salvador, o Senhor (...) Podem os montes recuar e as colinas
abalar-se, mas minha misericórdia
não se apartará de ti, nada fará mudar a aliança de minha paz, diz o teu misericordioso Senhor [18]” (Is
54,8.10).
Esta leitura da
profecia de Isaías situa-se no contexto do final do exílio da Babilônia e da
reconstrução de Jerusalém (século VI a.C.). Após a experiência do exílio, Deus
estabelecerá uma nova aliança com seu povo, fundada em sua misericórdia.
Oração depois da sétima leitura (2ª opção)
“Ó Deus, para celebrarmos o mistério da
Páscoa, vós nos instruís com o Antigo e o Novo Testamento. Fazei-nos
compreender a vossa misericórdia,
para que, recebendo os bens que nos dais hoje, esperemos firmemente os que hão
de vir. Por Cristo, nosso Senhor [19]”.
Esta oração,
após a sétima leitura (Ez 36,16-28), é como que a ponte entre as leituras do
Antigo Testamento e o canto do Glória. Aqui pede-se a Deus compreender sua
misericórdia, expressa nas leituras ouvidas, a fim de que recebamos os bens que
Deus nos concede e esperemos confiantemente aqueles que hão de vir.
Aclamação ao Evangelho (Sl
117(118),1-2.16ab-17.22-23)
“Dai graças ao Senhor, porque ele é bom!
Eterna é a sua misericórdia!
A casa de Israel agora o diga:
Eterna é a sua misericórdia [20]”
(Sl 117,1-2).
A aclamação ao
Evangelho nesta celebração é feita de modo mais solene que de costume: entoa-se
solenemente o Aleluia (omitido durante todo o período quaresmal) e segue-se o
salmo 117(118), hino de ação de graças a Deus que proclama por duas vezes a
eternidade de sua misericórdia.
Monição antes da Ladainha (se houver
Batismo)
“Caros fieis, apoiemos com as nossas preces a
alegre esperança dos nossos irmãos e irmãs, para que Deus todo-poderoso
acompanhe com sua misericórdia os
que se aproximam da fonte do novo nascimento [21]”.
Esta monição,
proferida se houver Batismo, é uma prece pelos catecúmenos, a fim de que Deus
acompanhe com sua misericórdia os que irão à fonte da misericórdia, isto é, o
sacramento do Batismo.
Bênção da água para aspersão do povo
“Senhor nosso Deus, velai sobre o vosso povo
e nesta noite santa em que celebramos a maravilha da nossa criação e a
maravilha ainda maior da nossa redenção, dignai-vos abençoar esta água. Fostes
vós que a criastes para fecundar a terra, para lavar nossos corpos e refazer
nossas forças. Também a fizestes instrumento da vossa misericórdia: por ela libertastes o vosso povo do cativeiro e
aplacastes no deserto a sua sede; por ela os profetas anunciaram a vossa
aliança que era vosso desejo concluir com a humanidade; por ela finalmente,
consagrada pelo Cristo no Jordão, renovastes, pelo banho do novo nascimento, a
nossa natureza pecadora. Que esta água seja para nós uma recordação do nosso
batismo e nos faça participar da alegria dos que foram batizados na Páscoa. Por
Cristo, nosso Senhor [22]”.
Esta oração,
proferida apenas se não houver Batismo ou se na igreja não há pia batismal, é
um resumo da solene bênção da água batismal [23]. Aqui a água é referida como
instrumento da misericórdia divina, recordando-se a experiência do êxodo (Ex
14,15-31), as profecias de uma nova aliança (por exemplo: Ez 36,25), e o
batismo de Cristo no Jordão (Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22), que desce às
águas para santificá-las [24].
Ainda nesta
celebração, muito convém usar a Oração Eucarística I, o Cânon Romano, que
inclusive possui partes próprias para este dia [25]. Nesta oração, aparecerem duas
referências à misericórdia, como falamos acima ao tratar da Quinta-feira Santa.
6. Domingo de Páscoa na Ressurreição do
Senhor
Salmo responsorial (Sl
117(118),1-2.16ab-17.22-23)
“Dai graças ao Senhor, porque ele é bom!
Eterna é a sua misericórdia!
A casa de Israel agora o diga:
Eterna é a sua misericórdia [26]”
(Sl 117,1-2).
Por fim, embora
a Liturgia do Domingo de Páscoa não apresente o tema da misericórdia nas
orações, este está presente no Salmo Responsorial, o mesmo já entoado como
aclamação ao Evangelho na Vigília Pascal. Este mesmo salmo aparecerá ainda no
II Domingo da Páscoa, o Domingo da Divina Misericórdia.
Papa Francisco na Vigília Pascal (2015) |
Conclusão:
O tema da
misericórdia é como que um refrão que permeia todas as celebrações da Semana
Santa. Este artigo tratou apenas de um aspecto, isto é, da presença do termo
“misericórdia” nos textos litúrgicos destes dias. Se fossemos considerar todos
os ritos, muito poderia ser dito ainda do Lava pés, da Adoração da cruz, entre
outros. Contudo, que o que foi dito aqui desperte nossa atenção para a beleza
dos textos litúrgicos, muitas vezes ignorados, mas que constituem uma
verdadeira “escola de oração”.
[1] Normas
Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, n. 18. In: Missal Romano.
Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo; Paulus, 2006,
p. 104.
[2] Pontifício
Conselho para a Promoção da Nova Evangelização. Celebrar a Misericórdia:
Subsídio Litúrgico. São Paulo: Paulus/Paulinas, 2015, p. 17.
[3] Missal
Romano, p. 230.
[4] Cf. Bergamini, Augusto. Cristo Festa da
Igreja: O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 297.
[5] Missal
Romano, p. 522.
[6] Ibid., p. 232.
[7] Ibid., p. 233.
[8] Ibid., p. 234.
[9] Sobretudo a narrativa da
instituição: “Na noite em que ia ser entregue para padecer pela salvação de
todos, isto é, hoje, ele tomou o pão
em suas mãos...” (Missal Romano, p. 251).
[10] Missal Romano, p. 469.
[11] Ibid., p. 475.
[12] Ibid., p. 254.
[13] Lecionário
Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 2008, p. 160. 474. 788.
[14] Missal
Romano, p. 257.
[15] Cf. Bergamini, op. cit., p. 333.
[16] Missal
Romano, p. 260.
[17] Ibid., p. 268.
[18] Lecionário
Dominical, p. 178. 492. 806.
[19] Missal
Romano, p. 282.
[20] Lecionário
Dominical, p. 186. 500. 814.
[21] Missal
Romano, p. 283.
[22] Ibid., p. 288.
[23] Ibid., p. 286-287.
[24] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n.
535-537.
[25] Missal
Romano, p. 471-472.
[26] Lecionário
Dominical, p. 189. 503. 817.
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