sábado, 19 de março de 2016

A Misericórdia nos textos litúrgicos da Semana Santa

A Misericórdia nos textos litúrgicos da Semana Santa
Autor: André Florcovski

A Semana Santa, e mais especificamente “o sagrado Tríduo Pascal da Paixão e Ressurreição do Senhor resplandece como o ápice de todo o ano litúrgico [1]”. Neste Ano da Misericórdia convocado pelo Papa Francisco, merece especial relevância a celebração destes dias, como nos recorda o subsídio litúrgico do Jubileu:

Também neste Ano Santo se deve ter grande cuidado com a preparação das celebrações da Semana Santa, especialmente do Tríduo Pascal. Nelas, com efeito, através da valorização da linguagem litúrgica, feita de palavras, sinais, símbolos e gestos, e especialmente na adoração da Cruz na Sexta-feira Santa, emerge todo o mistério de amor e de justificação do Pai, com o sacrifício do Filho, em favor de toda a humanidade. Tais celebrações têm o seu ponto alto na Vigília Pascal, na narração da história da salvação, através da Liturgia da Palavra, e na celebração dos sacramentos que representam a solicitude do Pai nos conflitos dos seus filhos [2]”.


Neste artigo, iremos analisar a presença do tema da misericórdia nos textos litúrgicos das celebrações da Semana Santa (orações e leituras). Em cada dia desta semana a palavra misericórdia aparecerá ao menos uma vez nas celebrações, como que a recordar-nos diariamente que a misericórdia divina é uma realidade fundamental nos mistérios que celebramos.

Utilizaremos nesta análise apenas os textos litúrgicos em sua edição portuguesa para o Brasil (2ª edição típica do Missal Romano e Lecionário Dominical).

1. Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor

Oração sobre as oferendas
Ó Deus, pela paixão de nosso Senhor Jesus Cristo sejamos reconciliados convosco, de modo que, ajudados pela vossa misericórdia, alcancemos pelo sacrifício do vosso Filho o perdão que não merecemos por nossas obras. Por Cristo, nosso Senhor [3]”.

Nesta oração, retirada do Sacramentário Veronês [4] (século VI), a misericórdia divina é associada ao perdão dos pecados: pede-se a misericórdia como auxílio para obter o perdão e a reconciliação com Deus, que nos são concedidos pela Paixão de Cristo.

Bênção da Paixão (1ª invocação)
O Pai de misericórdia, que vos deu um exemplo de amor na paixão do seu Filho, vos conceda pela vossa dedicação a Deus e ao próximo, a graça de sua bênção [5]”.

Nesta bênção, própria para o Domingo de Ramos (podendo ser usada até a quarta-feira da Semana Santa), aparece a misericórdia como atributo de Deus, usando-se uma expressão recorrente na Liturgia: “Pai de misericórdia”. Esta expressão aparecerá novamente na Quinta-feira Santa, na Oração Eucarística I, como veremos adiante.

2. Da segunda à quarta-feira da Semana Santa

Segunda-feira: Oração depois da Comunhão
Visitai, ó Deus, o vosso povo e assisti com vosso amor de Pai aos que celebram os vossos mistérios, para que conservemos pela vossa proteção os remédios da salvação eterna que recebemos de vossa misericórdia. Por Cristo, nosso Senhor [6]”.

Terça-feira: Oração depois da Comunhão
Nutridos pelos dons que nos salvam, imploramos, ó Deus, vossa misericórdia, para que o mesmo sacramento que nos alimenta na terra nos faça participar da vida eterna. Por Cristo, nosso Senhor [7]”.

Quarta-feira: Oração sobre as oferendas
Acolhei, ó Deus, nossa oferenda e deixai agir vossa misericórdia, para que consigamos os frutos do sacramento em que celebramos a paixão do vosso Filho. Que vive e reina para sempre [8]”.

Nestes três dias que antecedem o Tríduo Pascal, a misericórdia divina é pedida a Deus associada aos frutos do sacramento que celebramos, isto é, pede-se a misericórdia para alcançar a salvação.

3. Missa da Ceia do Senhor

A Missa da Ceia do Senhor é a única celebração da Semana Santa em que a palavra “misericórdia” não aparece nos textos específicos da celebração. Porém, muito convém neste dia usar a Oração Eucarística I (Cânon Romano), inclusive com partes próprias para esta celebração [9], na qual a misericórdia aparece duas vezes:

Oração Eucarística I
Pai de misericórdia, a quem sobem nossos louvores, nós vos pedimos por Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, que abençoeis estas oferendas apresentadas ao vosso altar [10]”.

E a todos nós pecadores, que confiamos na vossa imensa misericórdia, concedei, não por nossos méritos, mas por vossa bondade, o convívio dos Apóstolos e Mártires... [11]”.

Esta Oração Eucarística, cuja origem remonta ao século IV, caracteriza-se pelos paralelismos. Por isso, o tema da misericórdia aparece logo no início, como atributo de Deus (Pai de misericórdia), e já próximo ao final, quase como uma exortação à confiança na misericórdia divina. As duas ocorrências do termo complementam-se: Deus é misericordioso e nós devemos confiar em sua misericórdia.

Papa Francisco na Missa da Ceia do Senhor (2013)
4. Celebração da Paixão do Senhor

Oração inicial (1ª opção)
Ó Deus, foi por nós que o Cristo, vosso Filho, derramando o seu sangue, instituiu o mistério da Páscoa. Lembrai-vos sempre de vossas misericórdias, e santificai-nos pela vossa constante proteção. Por Cristo, nosso Senhor [12]”.

Esta oração, a primeira do sóbrio rito da Celebração da Paixão do Senhor, associa a misericórdia divina aos temas da santidade e da proteção: é uma súplica a Deus para que “lembre-se” de suas misericórdias, a fim de santificar-nos e proteger-nos.

Segunda leitura (Hb 4,14-16; 5,7-9)
 “Aproximemo-nos então, com toda a confiança, do trono da graça, para conseguirmos misericórdia e alcançarmos a graça de um auxílio no momento oportuno [13]” (Hb 4,16).

A segunda leitura desta celebração, retirada da Carta aos Hebreus, quer recordar-nos a dimensão sacerdotal do sacrifício de Cristo na cruz. Ele é o perfeito mediador entre nós e o Pai: aproximemo-nos dele para alcançar misericórdia em tempo oportuno.

Oração Universal - IV intenção: Pelos Catecúmenos
Oremos pelos (nossos) catecúmenos: que o Senhor nosso Deus abra os seus corações e as portas da misericórdia, para que, tendo recebido nas águas do Batismo o perdão de todos os seus pecados, sejam incorporados no Cristo Jesus [14]”.

No antigo texto da Oração Universal, cuja origem remonta-se ao século V [15], encontramos a mais significativa expressão sobre a misericórdia neste Ano Santo. Na intenção pelos catecúmenos, pede-se que Deus abra-lhes as portas da misericórdia. Ora, o simbolismo da porta ocupa um lugar central no Jubileu. Aqui aparece associado ao sacramento do Batismo, pelo qual os catecúmenos receberão o perdão dos pecados.

Oração Universal - X oração: Por todos os que sofrem provações
Deus eterno e todo poderoso, sois a consolação dos aflitos e a força dos que labutam. Cheguem até vós as preces dos que clamam em sua aflição, sejam quais forem os seus sofrimentos, para que se alegrem em suas provações com o socorro da vossa misericórdia. Por Cristo, nosso Senhor [16]”.

Outra referência à misericórdia na Oração Universal está presente na oração pelos que sofrem provações. Sobre estes pede-se especialmente o socorro da misericórdia divina em suas aflições.

Oração depois da Comunhão
Ó Deus, que nos renovastes pela santa morte e ressurreição do vosso Cristo, conservai em nós a obra de vossa misericórdia, para que, pela participação deste mistério, vos consagremos sempre a nossa vida. Por Cristo, nosso Senhor [17]”.

Por fim, a Oração depois da Comunhão é um pedido a Deus para que a obra de sua misericórdia, isto é, a salvação que nos foi concedida pela morte de Cristo, frutifique em nós, a fim de que nossa vida seja sempre consagrada a Deus.

Papa Francisco na Celebração da Paixão (2015)
5. Vigília Pascal

Quarta leitura (Is 54,5-14)
Num momento de indignação, por um pouco ocultei de ti minha face, mas com misericórdia eterna compadeci-me de ti, diz teu salvador, o Senhor (...) Podem os montes recuar e as colinas abalar-se, mas minha misericórdia não se apartará de ti, nada fará mudar a aliança de minha paz, diz o teu misericordioso Senhor [18]” (Is 54,8.10).

Esta leitura da profecia de Isaías situa-se no contexto do final do exílio da Babilônia e da reconstrução de Jerusalém (século VI a.C.). Após a experiência do exílio, Deus estabelecerá uma nova aliança com seu povo, fundada em sua misericórdia.

Oração depois da sétima leitura (2ª opção)
Ó Deus, para celebrarmos o mistério da Páscoa, vós nos instruís com o Antigo e o Novo Testamento. Fazei-nos compreender a vossa misericórdia, para que, recebendo os bens que nos dais hoje, esperemos firmemente os que hão de vir. Por Cristo, nosso Senhor [19]”.

Esta oração, após a sétima leitura (Ez 36,16-28), é como que a ponte entre as leituras do Antigo Testamento e o canto do Glória. Aqui pede-se a Deus compreender sua misericórdia, expressa nas leituras ouvidas, a fim de que recebamos os bens que Deus nos concede e esperemos confiantemente aqueles que hão de vir.

Aclamação ao Evangelho (Sl 117(118),1-2.16ab-17.22-23)
Dai graças ao Senhor, porque ele é bom!
Eterna é a sua misericórdia!
A casa de Israel agora o diga:
Eterna é a sua misericórdia [20]” (Sl 117,1-2).

A aclamação ao Evangelho nesta celebração é feita de modo mais solene que de costume: entoa-se solenemente o Aleluia (omitido durante todo o período quaresmal) e segue-se o salmo 117(118), hino de ação de graças a Deus que proclama por duas vezes a eternidade de sua misericórdia.

Monição antes da Ladainha (se houver Batismo)
Caros fieis, apoiemos com as nossas preces a alegre esperança dos nossos irmãos e irmãs, para que Deus todo-poderoso acompanhe com sua misericórdia os que se aproximam da fonte do novo nascimento [21]”.

Esta monição, proferida se houver Batismo, é uma prece pelos catecúmenos, a fim de que Deus acompanhe com sua misericórdia os que irão à fonte da misericórdia, isto é, o sacramento do Batismo.

Bênção da água para aspersão do povo
Senhor nosso Deus, velai sobre o vosso povo e nesta noite santa em que celebramos a maravilha da nossa criação e a maravilha ainda maior da nossa redenção, dignai-vos abençoar esta água. Fostes vós que a criastes para fecundar a terra, para lavar nossos corpos e refazer nossas forças. Também a fizestes instrumento da vossa misericórdia: por ela libertastes o vosso povo do cativeiro e aplacastes no deserto a sua sede; por ela os profetas anunciaram a vossa aliança que era vosso desejo concluir com a humanidade; por ela finalmente, consagrada pelo Cristo no Jordão, renovastes, pelo banho do novo nascimento, a nossa natureza pecadora. Que esta água seja para nós uma recordação do nosso batismo e nos faça participar da alegria dos que foram batizados na Páscoa. Por Cristo, nosso Senhor [22]”.

Esta oração, proferida apenas se não houver Batismo ou se na igreja não há pia batismal, é um resumo da solene bênção da água batismal [23]. Aqui a água é referida como instrumento da misericórdia divina, recordando-se a experiência do êxodo (Ex 14,15-31), as profecias de uma nova aliança (por exemplo: Ez 36,25), e o batismo de Cristo no Jordão (Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21-22), que desce às águas para santificá-las [24].

Ainda nesta celebração, muito convém usar a Oração Eucarística I, o Cânon Romano, que inclusive possui partes próprias para este dia [25]. Nesta oração, aparecerem duas referências à misericórdia, como falamos acima ao tratar da Quinta-feira Santa.

6. Domingo de Páscoa na Ressurreição do Senhor

Salmo responsorial (Sl 117(118),1-2.16ab-17.22-23)
Dai graças ao Senhor, porque ele é bom!
Eterna é a sua misericórdia!
A casa de Israel agora o diga:
Eterna é a sua misericórdia [26]” (Sl 117,1-2).

Por fim, embora a Liturgia do Domingo de Páscoa não apresente o tema da misericórdia nas orações, este está presente no Salmo Responsorial, o mesmo já entoado como aclamação ao Evangelho na Vigília Pascal. Este mesmo salmo aparecerá ainda no II Domingo da Páscoa, o Domingo da Divina Misericórdia.

Papa Francisco na Vigília Pascal (2015)
Conclusão:
O tema da misericórdia é como que um refrão que permeia todas as celebrações da Semana Santa. Este artigo tratou apenas de um aspecto, isto é, da presença do termo “misericórdia” nos textos litúrgicos destes dias. Se fossemos considerar todos os ritos, muito poderia ser dito ainda do Lava pés, da Adoração da cruz, entre outros. Contudo, que o que foi dito aqui desperte nossa atenção para a beleza dos textos litúrgicos, muitas vezes ignorados, mas que constituem uma verdadeira “escola de oração”.

[1] Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, n. 18. In: Missal Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo; Paulus, 2006, p. 104.
[2] Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização. Celebrar a Misericórdia: Subsídio Litúrgico. São Paulo: Paulus/Paulinas, 2015, p. 17.
[3] Missal Romano, p. 230.
[4] Cf. Bergamini, Augusto. Cristo Festa da Igreja: O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 297.
[5] Missal Romano, p. 522.
[6] Ibid., p. 232.
[7] Ibid., p. 233.
[8] Ibid., p. 234.
[9] Sobretudo a narrativa da instituição: “Na noite em que ia ser entregue para padecer pela salvação de todos, isto é, hoje, ele tomou o pão em suas mãos...” (Missal Romano, p. 251).
[10] Missal Romano, p. 469.
[11] Ibid., p. 475.
[12] Ibid., p. 254.
[13] Lecionário Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2008, p. 160. 474. 788.
[14] Missal Romano, p. 257.
[15] Cf. Bergamini, op. cit., p. 333.
[16] Missal Romano, p. 260.
[17] Ibid., p. 268.
[18] Lecionário Dominical, p. 178. 492. 806.
[19] Missal Romano, p. 282.
[20] Lecionário Dominical, p. 186. 500. 814.
[21] Missal Romano, p. 283.
[22] Ibid., p. 288.
[23] Ibid., p. 286-287.
[24] Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 535-537.
[25] Missal Romano, p. 471-472.
[26] Lecionário Dominical, p. 189. 503. 817.

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