Sermão 70: Sobre a Paixão do Senhor
“Se
sofremos com Ele, também com Ele seremos glorificados”
Em Cristo nos
foi concedido este dom singular: que na natureza passível não subsistisse a
condição mortal que a essência impassível tinha assumido, de forma que em razão
do que não podia morrer, ressuscitasse aquele que estava morto.
Temos de
esforçar-vos, caríssimos, com a máxima intensidade de nosso corpo e de nossa
alma, por sintonizar perfeitamente com este sacramento. Pois descuidar-se das
festas pascais já é um gravíssimo sacrilégio, é ainda mais perigoso unir-se,
sim, às assembleias litúrgicas, porém sem participar na paixão do Senhor. Pois
se o Senhor diz: O que não carrega a sua
cruz e não me segue não é digno de mim; e o apóstolo: Se sofremos com ele, com ele também seremos glorificados, quem
honra verdadeiramente ao Cristo paciente, morto e ressuscitado, senão o que
padece, morre e ressuscita?
Estas realidades
já começaram em todos os filhos da Igreja, com o mesmo mistério da regeneração,
no qual a morte do pecado é a vida do renascido, e no qual a tríplice imersão
recorda os três dias da morte do Senhor. De modo que, extinto certo
comportamento típico da sepultura, aqueles aos quais o seio da fonte recebeu
velhos, os dá à luz, rejuvenescidos, a água do Batismo. Contudo, devemos
realizar na vida o que se celebrou no sacramento, e os renascidos do Espírito
Santo não conseguirão manter contidas o que neles restar de tendências mundanas
se recusam aceitar a cruz.
Portanto, quando
alguém se conscientiza de que ultrapassa os limites da disciplina cristã, e que
suas paixões o arrastam até para que o lhe obrigaria a desviar-se do caminho
reto, recorra à cruz do Senhor e crave no lenho da cruz da vida as tendências
de sua má vontade. Invoque ao Senhor com as palavras do profeta, dizendo: Transpasse minha carne com os cravos de teu
temor; eu respeito os teus mandamentos.
O que significa
ter a carne transpassada com os cravos do temor de Deus senão manter os
sentidos corporais afastados do atrativo dos desejos ilícitos por medo do juízo
de Deus? De maneira que quem resiste ao pecado e dá morte às suas
concupiscências para que não façam nada digno de morte, tenha a ousadia de
repetir com o apóstolo: Deus me livre de
gloriar-me a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, no qual eu estou
crucificado para o mundo, e o mundo para mim.
Portanto, que o
cristão se estabeleça onde Cristo o levou consigo, e oriente seus passos até
onde foi salva a natureza humana. A paixão do Senhor se prolonga até o fim do
mundo, e do mesmo modo que Cristo é honrado e amado em seus santos, é
alimentado e vestido em seus pobres, também está compadecendo-se em todos os
que sofrem perseguição por causa da justiça. A menos que devamos pensar que,
difundida a fé pelo mundo todo, e diminuído o número dos ímpios, tenham-se
acabado todas as perseguições e todos os combates aos quais anteriormente os
santos mártires foram submetidos, como se a necessidade de levar a cruz somente
incumbisse aos que foram submetidos aos atrozes suplícios na intenção de
separá-los do amor de Cristo.
Deste modo, as
almas sábias, que aprenderam a temer a um só Senhor, a amar e esperar em um
único Deus, depois de ter mortificado suas paixões e crucificado seus sentidos
corporais, não se curvam ante o temor de inimigo algum, nem se deixam subornar
por nenhum benefício. Inclusive, colocaram a vontade de Deus acima de qualquer
preferência pessoal, e amam-se tanto mais quanto, por amor de Deus, menos se
amam.
Caríssimos, em
tais membros do corpo de Cristo celebra-se legitimamente a santa Páscoa, e não
estão privados de nenhum dos triunfos adquiridos pela paixão do Salvador.
Creio, amadíssimos, que por hoje já vos falei bastante no que se refere a
participação da cruz, de modo que o sacramento pascal possa celebrar-se
dignamente nos membros do corpo de Cristo.
Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp.
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