sábado, 26 de março de 2016

Homilia: Vigília Pascal

 São Leão Magno
Sermão 70: Sobre a Paixão do Senhor
Se sofremos com Ele, também com Ele seremos glorificados

Em Cristo nos foi concedido este dom singular: que na natureza passível não subsistisse a condição mortal que a essência impassível tinha assumido, de forma que em razão do que não podia morrer, ressuscitasse aquele que estava morto.
Temos de esforçar-vos, caríssimos, com a máxima intensidade de nosso corpo e de nossa alma, por sintonizar perfeitamente com este sacramento. Pois descuidar-se das festas pascais já é um gravíssimo sacrilégio, é ainda mais perigoso unir-se, sim, às assembleias litúrgicas, porém sem participar na paixão do Senhor. Pois se o Senhor diz: O que não carrega a sua cruz e não me segue não é digno de mim; e o apóstolo: Se sofremos com ele, com ele também seremos glorificados, quem honra verdadeiramente ao Cristo paciente, morto e ressuscitado, senão o que padece, morre e ressuscita?
Estas realidades já começaram em todos os filhos da Igreja, com o mesmo mistério da regeneração, no qual a morte do pecado é a vida do renascido, e no qual a tríplice imersão recorda os três dias da morte do Senhor. De modo que, extinto certo comportamento típico da sepultura, aqueles aos quais o seio da fonte recebeu velhos, os dá à luz, rejuvenescidos, a água do Batismo. Contudo, devemos realizar na vida o que se celebrou no sacramento, e os renascidos do Espírito Santo não conseguirão manter contidas o que neles restar de tendências mundanas se recusam aceitar a cruz.
Portanto, quando alguém se conscientiza de que ultrapassa os limites da disciplina cristã, e que suas paixões o arrastam até para que o lhe obrigaria a desviar-se do caminho reto, recorra à cruz do Senhor e crave no lenho da cruz da vida as tendências de sua má vontade. Invoque ao Senhor com as palavras do profeta, dizendo: Transpasse minha carne com os cravos de teu temor; eu respeito os teus mandamentos.
O que significa ter a carne transpassada com os cravos do temor de Deus senão manter os sentidos corporais afastados do atrativo dos desejos ilícitos por medo do juízo de Deus? De maneira que quem resiste ao pecado e dá morte às suas concupiscências para que não façam nada digno de morte, tenha a ousadia de repetir com o apóstolo: Deus me livre de gloriar-me a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, no qual eu estou crucificado para o mundo, e o mundo para mim.
Portanto, que o cristão se estabeleça onde Cristo o levou consigo, e oriente seus passos até onde foi salva a natureza humana. A paixão do Senhor se prolonga até o fim do mundo, e do mesmo modo que Cristo é honrado e amado em seus santos, é alimentado e vestido em seus pobres, também está compadecendo-se em todos os que sofrem perseguição por causa da justiça. A menos que devamos pensar que, difundida a fé pelo mundo todo, e diminuído o número dos ímpios, tenham-se acabado todas as perseguições e todos os combates aos quais anteriormente os santos mártires foram submetidos, como se a necessidade de levar a cruz somente incumbisse aos que foram submetidos aos atrozes suplícios na intenção de separá-los do amor de Cristo.
Deste modo, as almas sábias, que aprenderam a temer a um só Senhor, a amar e esperar em um único Deus, depois de ter mortificado suas paixões e crucificado seus sentidos corporais, não se curvam ante o temor de inimigo algum, nem se deixam subornar por nenhum benefício. Inclusive, colocaram a vontade de Deus acima de qualquer preferência pessoal, e amam-se tanto mais quanto, por amor de Deus, menos se amam.
Caríssimos, em tais membros do corpo de Cristo celebra-se legitimamente a santa Páscoa, e não estão privados de nenhum dos triunfos adquiridos pela paixão do Salvador. Creio, amadíssimos, que por hoje já vos falei bastante no que se refere a participação da cruz, de modo que o sacramento pascal possa celebrar-se dignamente nos membros do corpo de Cristo.


Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp. 587-589. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.

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