quarta-feira, 5 de julho de 2023

Leitura litúrgica da Carta aos Romanos (1)

“O Evangelho é força de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rm 1,16).

Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura já contemplamos cinco escritos de São Paulo: as duas Cartas aos Tessalonicenses e três das “grandes Cartas Paulinas” - a Carta aos Gálatas e as duas Cartas aos Coríntios.

Dando continuidade a esta proposta, concluiremos o bloco das “grandes Cartas” com a Carta aos Romanos (Rm) - Πρὸς Ρωμαίους.

São Paulo escrevendo (Valentin de Boulogne)

1. Breve introdução à Carta aos Romanos

Na Bíblia cristã as Cartas Paulinas estão organizadas em ordem decrescente de tamanho, razão pela qual a Carta aos Romanos, com 16 capítulos, ocupa o primeiro lugar.

Alguns estudiosos a consideram a máxima expressão da teologia paulina (embora nem todos os temas importantes para o Apóstolo estejam presentes). Está diretamente relacionada com a Carta aos Gálatas, refletindo sobre o tema da justificação pela fé, embora de maneira mais serena e aprofundada.

Paulo, com efeito, ainda não havia estado em Roma quando escreveu a Carta, cuja redação teria ocorrido provavelmente entre 57 e 58, durante sua terceira visita a Corinto. Não obstante, é possível que Apóstolo conhecesse alguns membros da comunidade cristã de Roma, saudados no capítulo 16 (embora alguns estudiosos considerem esse texto um acréscimo posterior).

A Carta pode ser dividida em duas grandes seções, uma doutrinal ou teológica (Rm 1–11), subdividida em três partes, e outra parenética ou exortativa (Rm 12–15), “emolduradas” por uma introdução e uma conclusão:
Introdução: Rm 1,1-15: Saudação (vv. 1-7), ação de graças (8-10) e proêmio (11-15);
Seção doutrinal:
a) Rm 1,16–4,25: A justiça de Deus revelada no Evangelho;
b) Rm 5–8: A salvação de Deus para os justificados pela fé;
c) Rm 9–11: As promessas de Deus a Israel;
Seção parenética: Rm 12–15,13: Conselhos para a vida cristã;
Conclusão: Rm 15,14–16,27: Projeto de viagem a Roma, saudações e doxologia.

Já no início da parte doutrinal há um resumo do argumento central da Carta: o Evangelho “é força de Deus para a salvação de todo aquele que crê”, seja este judeu ou grego (cf. Rm 1,16-17).

O Apóstolo afirma que tanto gentios quanto judeus pecaram; portanto, defende a gratuidade da justificação: “em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus” (Rm 3,24). Propondo o exemplo de Abraão, demonstra que a justificação não se dá pelas obras da Lei, mas sim pela fé.

Paulo aprofunda as consequências desta justificação pela graça na segunda parte da seção doutrinal, recorrendo à imagem de Cristo como “novo Adão”: pela desobediência de Adão o homem se tornou pecador, mas pela obediência de Cristo foi justificado (cf. Rm 5,19).

No capítulo 6 se demonstra que essa transformação ocorre pelo Batismo, no qual morremos para o pecado e ressuscitamos para uma vida nova em Cristo (cf. Rm 6,11).

Na terceira parte da seção doutrinal, ao refletir sobre a eleição de Israel, Paulo faz uma recapitulação, relativizando a distinção entre judeus e gregos: Cristo é o Senhor de todos. Os gentios foram “enxertados” junto ao “resto de Israel” e todos se tornaram destinatários da misericórdia de Deus.

Por fim, na seção exortativa, o Apóstolo oferece uma série de conselhos para a vida cristã, exortando à caridade (retomando a imagem do corpo de 1Cor), ao respeito pelas autoridades, ao amor pelos “mais fracos”.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem. Para a aparente oposição entre Paulo e Tiago sobre a relação entre fé e obras, confira nossas postagens sobre a Carta de Tiago e a Carta aos Gálatas.

“O Evangelho é força de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rm 1,16)

2. Leitura litúrgica da Carta aos Romanos: Composição harmônica

Como fizemos com as outras Cartas, analisaremos a leitura litúrgica de Romanos a partir dos dois critérios de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM): a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].

Iniciamos nosso percurso com o critério da composição harmônica: a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, começamos nossa análise pelos domingos do Tempo do Advento, nos quais “as leituras do Apóstolo contêm exortações e ensinamentos relativos às diversas características deste tempo” (ELM, n. 93) [2].

Assim, no I Domingo do Advento do ano A lemos Rm 13,11-14 [3], um trecho da seção exortativa, de caráter escatológico, expresso pela imagem do “dia que vem chegando”: “Agora a salvação está mais perto de nós... despojemo-nos das ações das trevas e vistamos as armas da luz”.

Na semana seguinte, no II Domingo do Advento do ano A, lê-se Rm 15,4-9 [4], uma exortação à esperança e à harmonia na comunidade.

No IV Domingo do Advento do ano A, por sua vez, propõe-se o início da Carta: Rm 1,1-7 [5], no qual Paulo atesta que Jesus Cristo é “descendente de Davi segundo a carne”. A afirmação está em sintonia com as demais leituras da celebração, sobre a ascendência davídica do Messias.

Do início da Carta passamos ao seu final com a leitura do IV Domingo do Advento do ano B, também no contexto do anúncio do Messias davídico: Rm 16,25-27 [6], a doxologia final, que louva a Deus por nos revelar o seu mistério em Jesus Cristo.

Seguimos nosso percurso com os domingos do Tempo da Quaresma, nos quais “as leituras do Apóstolo foram escolhidas de tal forma que tenham relação com as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento” (ELM, n. 97) [7].

No I Domingo da Quaresma do ano A lemos Rm 5,12-19 (ou, na sua forma breve, Rm 5,12.17-19) [8], sobre a relação entre Adão e Cristo, fazendo a “ponte” entre a 1ª leitura e o Evangelho: a desobediência de Adão no paraíso (Gn 2,7-9; 3,1-7) versus a obediência de Cristo durante as tentações no deserto (Mt 4,1-11).

A versão breve desta perícope (Rm 5,12.17-19) é indicada também para a Missa votiva do jejum do Senhor, que pode ser celebrada pelos peregrinos que visitam Jericó, junto ao deserto onde Jesus sofreu as tentações [9]. Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.

Tentações de Jesus (Duccio)

Para o III Domingo da Quaresma do ano A consta a leitura de Rm 5,1-2.5-8 [10], com a célebre expressão: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”.

Este “derramar” remete ao simbolismo da “água viva” presente no Evangelho da samaritana (Jo 4,5-42), com um alcance batismal, uma vez que neste domingo celebra-se o I Escrutínio em preparação aos sacramentos da Iniciação Cristã [11].

No V Domingo da Quaresma do ano A, por sua vez, lemos Rm 8,8-11 [12], sobre a ressurreição dos mortos pela ação do Espírito, em sintonia com o Evangelho da ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-45) e com o itinerário batismal. Neste domingo, com efeito, celebra-se o III Escrutínio dos catecúmenos [13].

Uma vez mencionado Lázaro, o Santuário de Betânia tem como celebração própria a Missa da ressurreição de Lázaro, com uma das leituras da nossa Carta: Rm 12,1-2.9-13 [14]. Aqui o Apóstolo nos exorta ao amor fraterno e ao serviço do Senhor, a exemplo dos irmãos Marta, Maria e Lázaro.

No II Domingo da Quaresma do ano B proclama-se o texto de Rm 8,31b-34 [15], com a afirmação de que Deus entregou o seu próprio Filho por amor a nós, como o fez Abraão por sua fidelidade a Deus, recordado na 1ª leitura (Gn 22,1-2.9a.10-13.15-18).

Por fim, o I Domingo da Quaresma do ano C traz a leitura de Rm 10,8-13 [16], sobre o valor da Escritura e da fé em Jesus Cristo: “Todo aquele que invocar o Nome do Senhor será salvo”. No Evangelho (Lc 4,1-13), com efeito, o próprio Jesus rebate as tentações citando a Escritura.

No Tríduo Pascal do Senhor Crucificado, Sepultado e Ressuscitado, coração do Ano Litúrgico, lemos um trecho da Carta aos Romanos na Vigília Pascal: Rm 6,3-11 [17]. Trata-se de um texto fortemente batismal, recordando-nos que através desse sacramento participamos do mistério da Morte-Ressurreição de Cristo.

Fazendo um paralelo com a Vigília Pascal, também na Vigília de Pentecostes a Epístola é tomada da Carta aos Romanos: Rm 8,22-27 [18], onde Paulo atesta que o Espírito “vem em socorro da nossa fraqueza”, ensinando-nos a rezar.

Para a Missa do Dia da Solenidade de Pentecostes, por sua vez, é possível ler como 2ª leitura à escolha para o ano C o texto de Rm 8,8-17 [19], com a exortação a colocar toda a nossa existência sob a condução do Espírito.

Após o Pentecostes, a Igreja celebra algumas Solenidades do Senhor que, embora pertençam ao Tempo Comum, são um eco do Tempo Pascal. A nossa Carta aparece nas Solenidades da Santíssima Trindade (domingo após o Pentecostes) e do Sagrado Coração de Jesus (sexta-feira da III semana após o Pentecostes):

- Solenidade da Santíssima Trindade (Ano B): Rm 8,14-17 [20]. Aqui o Apóstolo indica que, pelo Espírito, podemos chamar Deus de Pai, pois nos tornamos “coerdeiros de Cristo” (cf. também Gl 4,4-7).

- Solenidade da Santíssima Trindade (Ano C): Rm 5,1-5 [21]. O texto inicia proclamando a mediação de Jesus Cristo entre nós e o Pai e conclui atestando: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo”.

- Solenidade do Sagrado Coração de Jesus (Ano C): Rm 5,5b-11 [22], continuação da perícope anterior. Após recordar o amor de Deus derramado pelo Espírito, Paulo atesta: “A prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós”.

“O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito” (Rm 5,5)

Concluímos aqui a primeira parte da nossa pesquisa sobre a presença da Carta aos Romanos nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na próxima parte continuaremos analisando sua leitura em composição harmônica nas Missas dos Santos, para diversas necessidades e votivas e nos sacramentos da Iniciação Cristã.

Breve bibliografia sobre a Carta aos Romanos:

BARBAGLIO, Giuseppe. À Igreja de Roma. in: As Cartas de Paulo II: Tradução e comentários. São Paulo: Loyola, 1991, pp. 117-350. Coleção: Bíblica Loyola, v. 5.

BOSCH, Jordi Sánchez. A Carta aos Romanos. in: Escritos paulinos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2008, pp. 256-302. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 7.

BROWN, Raymond. Carta aos Romanos. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 737-768.

FITZMYER, Joseph A. A Carta aos Romanos. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.] Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011, pp. 515-591.

GARCÍA, Miguel Salvador. Carta aos Romanos. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Novo Testamento. São Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 407-443.

VOUGA, François. A epístola aos Romanos. in: MARGUERAT, Daniel [org.]. Novo Testamento: História, escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 207-232.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] ibid., p. 94.
[3] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994.
[4] ibid.
[5] ibid.
[6] ibid.
[7] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 97.
[8] LECIONÁRIO I, op. cit.
[9] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa.
Cada santuário da Terra Santa possui uma ou mais “Missas votivas do lugar”, nas quais os peregrinos contemplam os eventos da história da salvação a ele associados. Para saber mais, confira nossa série de postagens sobre as Missas votivas da Terra Santa.
No caso da Missa votiva do jejum do Senhor, própria do Santuário do Bom Pastor em Jericó, as leituras são adaptadas do I Domingo da Quaresma (Ano A).
[10] LECIONÁRIO I, op. cit.
[11] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 193.
[12] LECIONÁRIO I, op. cit.
[13] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS, p. 227.
[14] Fonte: Custódia Franciscana da Terra Santa. Para saber mais sobre o Santuário de Betânia, clique aqui.
[15] LECIONÁRIO I, op. cit.
[16] ibid.
[17] ibid.
[18] ibid.
[19] ibid.
[20] ibid.
[21] ibid.
[22] ibid.

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