quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 19

Concluindo a seção sobre a criação, em suas Catequeses nn. 31-32 sobre Deus Pai o Papa São João Paulo II prosseguiu sua reflexão sobre a criação do homem, iniciada na Catequese anterior (n. 30).

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Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

31. O homem, imagem de Deus, é um ser espiritual e corporal
João Paulo II - 16 de abril de 1986

1. O homem criado à imagem de Deus é um ser ao mesmo tempo corporal e espiritual, isto é, um ser que, por um lado, está vinculado ao mundo exterior e, por outro, o transcende. Enquanto espírito, ademais de corpo, ele é pessoa. Esta verdade sobre o homem é objeto de nossa fé, assim como o é a verdade bíblica sobre a constituição “à imagem e semelhança” de Deus; e é uma verdade constantemente apresentada, ao longo dos séculos, pelo Magistério da Igreja.
A verdade acerca do homem não cessa de ser na história objeto de análise intelectual, não só no âmbito da filosofia, mas também no de várias outras ciências humanas: em uma palavra, objeto da antropologia.

2. Que o homem seja espírito encarnado - ou então, corpo informado por um espírito imortal - já pode ser deduzido de alguma forma da descrição da criação contida no Livro do Gênesis, em particular da narração “javista”, que faz uso, por assim dizer, de uma “mise en scène” e de imagens antropomórficas. Lemos que “o Senhor Deus modelou, com o pó do solo, o homem e soprou-lhe nas narinas o sopro da vida, e o homem tornou-se um ser vivo” (Gn 2,7). A continuação do texto bíblico nos permite compreender claramente que o homem, criado desta forma, se distingue de todo o mundo visível, e em particular do mundo dos animais. O “sopro da vida” tornou o homem capaz de conhecer estes seres, de impor-lhes o nome e de reconhecer-se distinto deles (cf. Gn 2,18-20). Ainda que na descrição “javista” não se fale da “alma”, é fácil deduzir que a vida doada ao homem no ato da criação é de tal natureza que transcende a simples dimensão corporal (própria dos animais). Ela toca, para além da materialidade, a dimensão do espírito, na qual está o fundamento essencial daquela “imagem de Deus” que Gn 1,27 vê no homem.

Criação de Adão (Catedral de Monreale, Itália)

3. O homem é uma unidade: é alguém uno consigo mesmo. Mas nesta unidade está presente uma dualidade. A Sagrada Escritura apresenta tanto a unidade (a pessoa) como a dualidade (a alma e o corpo). Pensemos, por exemplo, no Livro do Sirácida [Eclesiástico], que diz: “Da terra Deus criou o homem e o formou à sua imagem” (Eclo 17,1); e mais adiante: “Concedeu ao homem discernimento, língua, olhos, ouvidos e um coração para pensar; encheu-o de inteligência e instrução. Deu-lhe ainda o conhecimento do espírito, encheu o seu coração de bom senso e mostrou-lhe o bem e o mal” (vv. 5-6).
Particularmente significativo, desde esse ponto de vista, é o Salmo 8, que exalta a “obra-prima” que é o homem, dirigindo-se a Deus com as seguintes palavras: “Que é o homem, para dele te lembrares, o filho do homem para que o visites? Tu o fizeste pouco menos que os anjos, de glória e de honra o coroaste, e o constituíste acima das obras de tuas mãos. Tudo sujeitaste aos seus pés” (Sl 8,5-7).

4. Muitas vezes se enfatiza que a tradição bíblica destaca sobretudo a unidade pessoal do homem, servindo-se do termo “corpo” para designar o homem todo (cf. Sl 144/145,21; Jl 3,1; Is 66,23; Jo 1,14). A observação é correta. Mas isto não significa que na tradição bíblica também não esteja presente, às vezes de modo muito claro, a dualidade do homem. Esta tradição é refletida nas palavras de Cristo: “Não tenhais medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma! Pelo contrário, temei aquele que pode destruir a alma e o corpo na Geenna!” (Mt 10,28).

5. As fontes bíblicas autorizam a ver o homem como unidade pessoal e ao mesmo tempo como dualidade de alma e corpo: conceito que encontrou expressão em toda a Tradição e no ensinamento da Igreja. Este ensinamento acolheu não só as fontes bíblicas, mas também as interpretações teológicas que foram dadas delas, desenvolvendo as análises realizadas por certas escolas da filosofia grega (sobretudo Aristóteles).
Foi um lento trabalho de reflexão, que culminou principalmente - sob a influência de Santo Tomás de Aquino - nos pronunciamentos do Concílio de Viena (1312), onde a alma é chamada “forma” do corpo: “forma corporis humani per se et essentialiter” (Denzinger, n. 902). A “forma”, como fator que determina a substância do ser “homem”, é de natureza espiritual. E tal “forma” espiritual, a alma, é imortal. É o que recordou em seguida, com autoridade, o V Concílio Lateranense (1513): a alma é imortal, diferentemente do corpo, que está submetido à morte (cf. Denzinger, n. 1440). Ao mesmo tempo, a escola tomista destaca que, em virtude da união substancial do corpo e da alma, esta última, inclusive depois da morte, não cessa de “aspirar” a unir-se ao corpo, o que encontra confirmação na verdade revelada acerca da ressurreição do corpo.

6. Ainda que a terminologia filosófica utilizada para expressar a unidade e a complexidade (dualidade) do homem seja às vezes objeto de crítica, está fora de dúvida que a doutrina sobre a unidade da pessoa humana e ao mesmo tempo sobre a dualidade espiritual-corporal do homem está plenamente enraizada na Sagrada Escritura e na Tradição. E, não obstante se exprima muitas vezes a convicção de que o homem é “imagem de Deus” graças à alma, não está ausente da doutrina tradicional a convicção de que também o corpo participa, a sua maneira, da dignidade da “imagem de Deus”, assim como participa da dignidade da pessoa.

7. Nos tempos modernos uma dificuldade particular contra a doutrina revelada acerca da criação do homem como ser composto de alma e corpo foi levantada pela teoria da evolução. Muitos especialistas em ciências naturais que, com seus métodos próprios, estudam o problema do início da vida humana na terra, sustentam - contra outros colegas seus - não só a existência de um vínculo do homem com a natureza como um todo, mas também sua derivação de espécies animais superiores. Este problema, que tem ocupado os cientistas desde o século XIX, afeta várias camadas da opinião pública. A resposta do Magistério foi oferecida na Encíclica Humani generis de Pio XII no ano de 1950. Nela lemos: “O Magistério da Igreja não proíbe que nas investigações e disputas entre homens doutos de ambos os campos se trate da doutrina do evolucionismo, que busca em matéria viva preexistente a origem do corpo humano. Quanto às almas, a fé nos obriga a reter que são criadas diretamente por Deus...” (Denzinger, n. 3896).
Portanto, se pode dizer que, do ponto de vista da doutrina da fé, não há dificuldade em explicar a origem do homem, enquanto corpo, mediante a hipótese do evolucionismo. No entanto, é preciso acrescentar que a hipótese propõe apenas uma probabilidade, não uma certeza científica. A doutrina da fé, ao contrário, afirma invariavelmente que a alma espiritual do homem foi criada diretamente por Deus. Ou seja, é possível, segundo a hipótese mencionada, que o corpo humano, seguindo a ordem impressa pelo Criador nas energias da vida, tenha sido gradativamente preparado nas formas de seres vivos precedentes. A alma humana, porém, da qual depende em definitiva a humanidade do homem, sendo espiritual, não pode ter surgido da matéria.

8. Uma bela síntese da criação como exposta acima se encontra no Concílio Vaticano II: “Ser uno, composto de corpo e alma, por sua própria condição corporal o homem sintetiza em si os elementos do mundo material, de tal forma que, por meio dele, atingem sua plenitude” (Gaudium et spes,  n. 14). E mais adiante: “O homem não se engana quando se reconhece superior às coisas materiais e não se considera somente uma partícula da natureza... Com efeito, por sua interioridade excede a universalidade das coisas” (ibid.). Eis, pois, como a mesma verdade sobre a unidade e a dualidade (a complexidade) da natureza humana pode ser expressa com uma linguagem mais próxima à mentalidade contemporânea.

32. O homem, imagem de Deus, é sujeito de conhecimento e de liberdade
João Paulo II - 23 de abril de 1986

1. “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gn 1,27).
O homem e a mulher, criados com igual dignidade de pessoas como unidade de espírito e corpo, se diversificam por sua estrutura psicofisiológica. O ser humano, com efeito, porta o sinal da masculinidade e da feminilidade.

2. Ao mesmo tempo em que é sinal de diversidade, é também indicador de complementariedade. É o que se deduz da leitura do texto “javista”, onde o homem, ao ver a mulher recém-criada, exclama: “Desta vez é osso dos meus ossos e carne da minha carne!” (Gn 2,23). São palavras de contentamento e também de êxtase do homem ao ver um ser essencialmente semelhante a si. A diversidade e ao mesmo tempo a complementariedade psicofísica estão na origem da particular riqueza de humanidade que é própria dos descendentes de Adão em toda a sua história. Daqui ganha vida o matrimônio, instituído pelo Criador “desde o princípio”: “Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne” (Gn 2,24).

3. A este texto de Gn 2,24 corresponde a bênção da fecundidade relatada em Gn 1,28: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a!”. A instituição do matrimônio e da família, contida no mistério da criação do homem, parece estar vinculada com o mandato de “submeter” a terra, confiado pelo Criador ao primeiro casal humano.
O homem, chamado a “submeter a terra” - lembre-se: “submetê-la”, não devastá-la, porque a criação é um dom de Deus e, como tal, merece respeito -, o homem é imagem de Deus não só como “homem e mulher”, mas também em virtude da relação recíproca dos dois sexos. Esta relação recíproca constitui a alma da “comunhão de pessoas” que se estabelece no matrimônio e apresenta certa semelhança com a união das Três Pessoas Divinas.

4. O Concílio Vaticano II nos diz a respeito: “Deus não criou o homem sozinho, pois, desde o início ‘homem e mulher Ele os criou’ (Gn 1,27) e esta união constituiu a primeira forma de comunhão de pessoas. De fato, por sua natureza íntima, o homem é um ser social, e sem relações com os outros não pode viver nem desenvolver suas qualidades” (Gaudium et spes, n. 12).
Assim, a criação comporta para o homem tanto a relação com o mundo como a relação com o outro ser humano (a relação homem-mulher), bem como com os outros seus semelhantes. O “submeter a terra” evidencia o caráter “relacional” da existência humana. As dimensões “com os outros, “entre os outros” e “para os outros”, próprias da pessoa humana enquanto “imagem de Deus”, estabelecem desde o princípio o lugar do homem entre as criaturas. Para isso o homem é chamado à existência como sujeito (como “eu” concreto), dotado de consciência intelectual e de liberdade.

5. A capacidade do conhecimento intelectual distingue radicalmente o homem de todo o mundo dos animais, no qual a capacidade cognoscitiva se limita aos sentidos. O conhecimento intelectual torna o homem capaz de discernir, de distinguir entre a verdade e a “não verdade”, abrindo diante de si os campos da ciência, do pensamento crítico, da investigação metódica sobre a verdade acerca da realidade. O homem possui dentro de si uma relação essencial com a verdade, que determina seu caráter de ser transcendental. O conhecimento da verdade permeia toda a esfera das relações do homem com o mundo e com os outros homens, e estabelece as premissas indispensáveis de toda forma de cultura.

6. Juntamente com o conhecimento intelectual e sua relação com a verdade está a liberdade da vontade humana, intrinsicamente vinculada ao bem. Os atos humanos portam em si o sinal da autodeterminação (do “querer”) e da escolha. Daqui deriva toda a esfera da moral: o homem, com efeito, é capaz de escolher entre o bem e o mal, sustentado nisso pela voz da consciência, que impulsiona ao bem e dissuade do mal.
Como o conhecimento da verdade, assim também a capacidade de escolha - isto é, o livre arbítrio - permeia toda a esfera das relações do homem com o mundo e especialmente com os outros homens, e se estende mais além.

7. O homem, com efeito, graças à sua natureza espiritual e à capacidade de conhecimento intelectual e de liberdade de escolha e de ação, se encontra, desde o princípio, em uma particular relação com Deus. A descrição da criação (cf. Gn 1–3) nos permite constatar que a “imagem de Deus” se manifesta sobretudo na relação do “eu” humano com o “Tu” divino. O homem conhece Deus, e o seu coração e a sua vontade são capazes de unir-se com Deus (“homo est capax Dei”). O homem pode dizer “sim” a Deus, mas também pode lhe dizer “não”; tem capacidade de acolher Deus e a sua santa vontade, mas também a capacidade de opor-se a ela.

8. Tudo isso está inscrito no significado de “imagem de Deus” que nos apresenta, entre outros, o Livro do Sirácida [Eclesiástico]: “Da terra Deus criou o homem e o formou à sua imagem. (...) dando-lhe autoridade sobre tudo o que há sobre a terra. Em todo ser vivo incutiu o medo do homem, fazendo-o dominar sobre as feras e os pássaros. Concedeu ao homem discernimento, língua, olhos, ouvidos e um coração para pensar; encheu-o de inteligência e instrução. Deu-lhe ainda o conhecimento do espírito, encheu o seu coração de bom senso e mostrou-lhe o bem e o mal. Infundiu o seu temor em seu coração, mostrando-lhe a grandeza de suas obras. (...) Concedeu-lhe ainda a instrução e entregou-lhe por herança a Lei da vida. Firmou com ele uma aliança eterna e mostrou-lhe sua justiça e seus julgamentos” (Eclo 17,1.3-7.9-10). São palavras ricas e profundas que nos fazem refletir.

9. O Concílio Vaticano II exprime a mesma verdade sobre o homem com uma linguagem que é ao mesmo tempo perene e contemporânea: “O homem só pode converter-se ao bem livremente... a dignidade do homem exige que proceda de acordo com uma opção consciente e livre...” (Gaudium et spes, n. 17). “Por sua interioridade excede a universalidade das coisas: retorna para essa profunda interioridade quando se volta para o coração, onde o espera Deus, que perscruta os corações (1Rs 16,7; Jr 17,10) e onde ele mesmo, sob o olhar de Deus, decide a própria sorte” (ibid., n. 14). “A verdadeira liberdade é um excelente sinal da imagem divina no homem” (ibid., n. 17). A verdadeira liberdade é a liberdade na verdade, inscrita, desde o princípio, na realidade da “imagem divina”.

10. Em virtude desta “imagem”, o homem, como sujeito de conhecimento e liberdade, não só é chamado a transformar o mundo segundo a medida de suas justas necessidades, não só é chamado à comunhão de pessoas própria do matrimônio (“communio personarum”), na qual tem origem a família, e consequentemente toda a sociedade, mas também é chamado à aliança com Deus. Com efeito, ele não é apenas criatura do seu Criador, mas também imagem de seu Deus. É criatura como imagem de Deus, e é imagem de Deus como criatura. A descrição da criação em Gn 1–3 está unida à da primeira aliança de Deus com o homem. Esta aliança (assim como a criação) é uma iniciativa totalmente soberana de Deus Criador, e permanecerá imutável ao longo da história da salvação, até a aliança definitiva e eterna que Deus realizará com a humanidade em Jesus Cristo.

11. O homem é sujeito idôneo para a aliança porque foi criado “à imagem” de Deus, capaz de conhecimento e de liberdade. O pensamento cristão viu na “semelhança” do homem com Deus o fundamento para o seu chamado a participar na vida interior de Deus, a sua abertura ao sobrenatural.
Assim, pois, a verdade revelada acerca do homem, que na criação foi feito “à imagem e semelhança de Deus”, contém não só tudo o que nele é “humanum”, e portanto essencial à sua humanidade, mas potencialmente também o que é “divinum”, e portanto gratuito, isto é, contém também o que Deus - Pai e Filho e Espírito Santo - previu de fato para o homem como dimensão sobrenatural da sua existência, sem a qual o homem não pode atingir toda a plenitude que lhe está destinada pelo Criador.

Deus apresenta Eva a Adão (Catedral de Monreale, Itália)

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (16 de abril e 23 de abril de 1986).

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