quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 20

Dentro de suas Catequeses sobre Deus Pai, o Papa São João Paulo II dedicou nove encontros (nn. 33-41) ao tema da Divina Providência. Confira a seguir a primeira reflexão dessa seção.

Para acessar a postagem que serve de introdução e índice de todas as Catequeses sobre o Creio, clique aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

1.2 DEUS CRIADOR E PROVIDENTE

II. A Divina Providência (nn. 33-41)

33. A Divina Providência
João Paulo II - 30 de abril de 1986

1. “Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra”: o primeiro artigo do Creio não terminou de dar-nos suas extraordinárias riquezas. Com efeito, a fé em Deus como criador do mundo (das “coisas visíveis e invisíveis”) está organicamente unida à revelação da Divina Providência.
Começamos hoje, dentro da reflexão sobre a criação, uma série de catequeses cujo tema está ao mesmo tempo no coração da fé cristã e no coração do homem chamado à fé: o tema da Providência Divina, ou de Deus que, como Pai onipotente e sábio, está presente e atua no mundo, na história de cada uma de suas criaturas, para que cada criatura, e especificamente o homem, sua imagem, possa realizar a sua vida como um caminho guiado pela verdade e pelo amor rumo à meta da vida eterna n’Ele.
“Por que Deus nos criou?”, se pergunta a tradição cristã da catequese. Iluminados pela grande fé da Igreja, encontramo-nos repetindo, pequenos e grandes, estas palavras ou outras semelhantes: “Deus nos criou para conhecê-lo e amá-lo nesta vida e desfrutar para sempre d’Ele na outra”.

Deus Criador e Providente
(Alexey Korzukhin)

Mas precisamente esta enorme verdade de Deus, que com rosto sereno e mão segura guia a nossa história, paradoxalmente encontra no coração do homem um duplo sentimento contrastante: por um lado, o homem é levado a acolher e a confiar-se a este Deus Providente, como afirma o Salmista: “Mantive minha alma apaziguada e quieta, como a criança amamentada no seio de sua mãe” (Sl 130,2). Por outro lado, porém, o homem teme e duvida em abandonar-se a Deus como Senhor e Salvador da sua vida: ou porque, ofuscado pelas cosas, se esquece do Criador; ou porque, marcado pelo sofrimento, duvida d’Ele como Pai. Em ambos os casos a Providência de Deus é questionada pelo homem. É tal a condição do homem que na própria Escritura divina Jó não hesita em lamentar-se diante de Deus com sincera confiança; deste modo, a Palavra de Deus indica que a Providência se exprime dentro do próprio lamento dos seus filhos. Diz Jó, cheio de chagas no corpo e no coração: “Quem me dera saber onde encontrá-lo e poder aproximar-me do seu trono! Exporia ante Ele a minha causa e encheria minha boca de acusações” ( 23,3-4).

2. De fato, ao longo de toda a sua história, seja no pensamento dos filósofos, nas doutrinas das grandes religiões, ou na simples reflexão do homem da rua, não faltaram ao homem razões para tentar compreender, antes, de justificar a ação de Deus no mundo.
As soluções são diversas e evidentemente nem todas são aceitáveis, e nenhuma é plenamente exaustiva. Há quem, desde os tempos antigos, apela ao fado ou destino cego e caprichoso, à sorte de olhos vendados. Há quem, para afirmar Deus, comprometeram o livre arbítrio do homem; ou quem, sobretudo em nossa época, para afirmar o homem e sua liberdade, pensa que deve negar Deus. Soluções extremistas e unilaterais que nos fazem ao menos compreender quais laços fundamentais de vida entram em jogo quando dizemos “Divina Providência”: como se conjuga a ação onipotente de Deus com a nossa liberdade, e a nossa liberdade com seus projetos infalíveis? Qual será nosso destino futuro? Como interpretar e reconhecer a sua infinita sabedoria e bondade diante dos males do mundo, do mal moral do pecado e do sofrimento do inocente? Que sentido tem esta nossa história, com o desenrolar através dos séculos de acontecimentos, de catástrofes terríveis e de sublimes atos de grandeza e de santidade? O eterno e fatal retorno de tudo ao ponto de partida sem ter jamais um ponto de chegada, a não ser um cataclismo final que sepultará toda vida para sempre, ou - e aqui o coração sente ter maiores razões que as que sua pequena lógica tem a oferecer-lhe - há um Ser providente e positivo, a quem chamamos Deus, que nos circunda com a sua inteligência, ternura, sabedoria e guia “fortiter ac suaviter” (forte e suavemente) esta nossa existência - a realidade, o mundo, a história, nossas próprias vontades rebeldes, se permitimos - rumo ao repouso do “sétimo dia”, de uma criação que chega finalmente ao seu cumprimento?

3. Aqui, sobre esta linha sutil entre esperança e desespero, se coloca, para reforçar imensamente as razões da esperança, a Palavra de Deus, tão nova, ainda que invocada por todos, tão esplêndida que chega a ser humanamente inacreditável. A Palavra de Deus nunca assume tanta grandeza e fascinação como quando se confronta com as máximas interrogações do homem: Deus está aqui, é Emmanuel, Deus-conosco (Is 7,14), e em Jesus de Nazaré Morto e Ressuscitado, Filho de Deus e nosso irmão, Deus mostra que “armou sua tenda no meio de nós” (cf. Jo 1,14). Podemos dizer que todas as vicissitudes da Igreja no tempo consistem na busca constante e apaixonada de encontrar, aprofundar, propor, os sinais da presença de Deus, guiada pelo exemplo de Cristo e pela força do Espírito. Por isso a Igreja pode, a Igreja quer, a Igreja deve dizer e doar ao mundo a graça e o sentido da Providência de Deus, por amor ao homem, para livrá-lo do peso esmagador do enigma e confiá-lo a um Mistério de amor grande, incomensurável, decisivo, como é Deus. Assim, o vocabulário cristão se enriquece de expressões simples que constituem, hoje como ontem, o patrimônio de fé e de cultura dos discípulos de Cristo: Deus vê, Deus sabe, se Deus quiser, viver na presença de Deus, seja feita a sua vontade, Deus escreve certo mesmo por nossas linhas tortas... em suma: a Providência Divina.

4. A Igreja anuncia a Divina Providência não como uma invenção sua, ainda que inspirada por pensamentos de humanidade, mas porque Deus se manifestou assim, quando revelou na história do seu povo, que a sua ação criadora e a sua intervenção salvífica estão indissoluvelmente unidas, formam parte de um único plano projetado nos séculos eternos. Assim, a Sagrada Escritura se torna na sua totalidade o documento supremo da Divina Providência, manifestando a intervenção de Deus na natureza com a criação e a sua ainda mais maravilhosa intervenção com a redenção, que nos faz criaturas novas em um mundo renovado pelo amor de Deus em Cristo. A Bíblia, com efeito, fala de Providência Divina nos capítulos sobre a criação e naqueles mais especificamente dedicados à obra da salvação, no Gênesis e nos Profetas, (especialmente em Isaías), nos Salmos chamados “da criação” e nas profundas meditações de Paulo sobre os inescrutáveis desígnios de Deus que atua na história (cf. especialmente Efésios e Colossenses), nos Livros Sapienciais, tão atentos a encontrar os sinais de Deus no mundo, e no Apocalipse, totalmente dedicado a encontrar o descobrir do mundo em Deus. Resulta por fim que o conceito cristão de Providência não é simplesmente um capítulo de filosofia religiosa, mas que às grandes perguntas de Jó e de cada um dos homens como ele, a fé responde com a plenitude de uma visão que, apoiando os direitos da razão, faz justiça à mesma razão ancorando-a às certezas mais estáveis da teologia.
Nesse sentido, o nosso caminho vai ao encontro da incansável reflexão da Tradição, à qual nos referiremos oportunamente, colhendo no âmbito da perene verdade o esforço da Igreja por fazer-se companheira do homem que se interroga sobre a Providência sempre de novo e em termos novos. O Concílio Vaticano I e o Concílio Vaticano II, cada um a seu modo, são vozes preciosas do Espírito Santo que não podemos deixar de escutar, meditando sobre elas sem deixar-se intimidar pela densidade do pensamento, acolhendo a linfa vital da verdade que não morre.

5. Toda pergunta séria deve receber uma resposta séria, profunda, sólida. Por isso abordaremos os diversos aspectos do único tema vendo antes de tudo como a Providência Divina entra na grande obra da criação e é sua afirmação, revelando a múltipla e sempre atual riqueza da ação de Deus. Disso segue que a Providência se manifesta como Sabedoria transcendente que ama o homem e o chama a participar do desígnio de Deus, como primeiro destinatário do seu cuidado amoroso e ao mesmo tempo como seu inteligente cooperador.
A relação entre a Providência Divina e a liberdade do homem não é de antítese, mas de comunhão de amor. Mesmo o profundo problema do nosso destino futuro encontra na Revelação Divina, especificamente em Cristo, uma luz providencial que, embora mantendo intacto o mistério, nos assegura da vontade salvífica do Pai. Nesta perspectiva, a Divina Providência, longe de ser negada pela presença do mal e do sofrimento, se converte em baluarte da nossa esperança, permitindo-nos entrever como essa sabe tirar o bem mesmo do mal. Por fim, recordaremos a grande luz que o Vaticano II irradia sobre a Providência de Deus em relação à evolução e ao progresso do mundo, recolhendo na visão transcendente do Reino que cresce o ponto final do incessante e sábio agir no mundo do Deus Providente. “Quem é sábio, compreenda estas coisas, quem tem inteligência, as conheça! Pois retos são os caminhos do Senhor: os justos caminharão por eles, mas os rebeldes neles tropeçarão” (Os 14,10).

Vitral representando o "Olho da Providência"

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (30 de abril de 1986).

Observação: O olho dentro de um triângulo é o tradicional símbolo da Providência Divina (sendo o triângulo uma alusão à Trindade), com profundas raízes bíblicas e teológicas. O uso desse símbolo por outras tradições não anula o seu significado cristão.

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