Dando continuidade às reflexões sobre a criação, trazemos nesta postagem as Catequeses nn. 28-29 do Papa São João Paulo II sobre Deus Pai.
Para acessar a postagem introdutória às suas Catequeses sobre o Creio, clique aqui.
Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI
28.
A criação é revelação da glória de Deus
João Paulo II - 12 de março de
1986
1. A verdade de fé acerca da criação
do nada (“ex nihilo”), sobre a qual
nos detivemos nas Catequeses anteriores, nos introduz nas profundezas do mistério
de Deus, Criador “do céu e da terra”. Segundo a expressão do Símbolo
Apostólico: “Creio em Deus, Pai todo-poderoso, Criador...”, a criação é
atribuída principalmente ao Pai.
Na realidade ela é obra das Três Pessoas da Trindade, segundo o ensinamento já
presente de algum modo no Antigo Testamento e revelado plenamente no Novo,
particularmente nos textos de Paulo e João.
2. À luz destes textos
apostólicos, podemos afirmar que a criação do
mundo encontra seu modelo na eterna geração do Verbo, do Filho,
da mesma substância do Pai, e sua fonte no Amor que é o Espírito Santo. É este Amor-Pessoa,
consubstancial ao Pai e ao Filho, juntamente com o Padre e com o Filho, fonte da criação do mundo do
nada, isto é, do dom da existência
a cada ser. Deste dom gratuito participa toda a multiplicidade dos seres “visíveis e invisíveis”,
tão variada que parece quase ilimitada, e tudo o que a linguagem da cosmologia
indica como “macrocosmo” e “microcosmo”.
Deus Pai em majestade (Basílica de Santo Estêvão - Budapeste, Hungria) |
3. A verdade de fé acerca da criação
do mundo, fazendo-nos mergulhar nas profundezas do mistério trinitário, nos desvela o que a Bíblia chama “Glória
de Deus” (Kabod Yahweh, Doxa tou Theou). A Glória de Deus está antes
de tudo n’Ele mesmo: é a glória “interior”, que, por dizer assim, preenche
a profundidade ilimitada e a infinita perfeição da única Divindade na Trindade
das Pessoas. Esta perfeição infinita, enquanto plenitude absoluta de Ser e de
Santidade, é também plenitude de
Verdade e de Amor no contemplar-se e doar-se recíproco (e, portanto,
na comunhão) do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Mediante a obra da criação a
gloria interior de Deus, que brota do próprio mistério da Divindade, é de certo
modo, transladada “para fora”: para as criaturas do mundo visível e do mundo invisível,
proporcionalmente a seu grau de perfeição.
4. Com a criação do mundo (visível
e invisível) começa como que uma
nova dimensão da glória de Deus, chamada “exterior” para distingui-la da
precedente. A Sagrada Escritura fala dela em muitas passagens: bastam-nos
alguns exemplos.
O Salmo 18 diz: “Os céus proclamam
a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos... Por toda
a terra se difunde o seu som [a sua voz], e até os confins do mundo vai sua
mensagem” (Sl 18/19,1.5). O Livro do Sirácida [Eclesiástico], por sua vez, afirma: “O sol brilhante contempla
todas as coisas, e a obra do Senhor
está cheia da sua glória” (Eclo
42,16). O Livro de Baruc possui uma
expressão muito singular e sugestiva: “As estrelas brilham alegres, cada qual
em seu lugar. Deus chama e elas respondem: ‘Aqui estamos!’, brilhando com
alegria para Aquele que as fez” (Br 3,34-35).
5. Em outros lugares, o texto bíblico
soa como um apelo dirigido às criaturas, a
fim de que proclamem a glória de Deus
Criador: por exemplo, no Livro de Daniel: “Bendizei ao
Senhor todas as obras do Senhor; aclamai-O e exaltai-O pelos séculos” (Dn 3,57); ou no Salmo 65: “Aclamai a Deus,
ó terra inteira, entoai salmos à glória do seu nome, glorificai-o em seu
louvor. Dizei a Deus: ‘Quão assombrosas são tuas obras! (...) Toda terra te
adore e te cante salmos, entoe salmos ao teu nome’” (Sl 65/66,1-4).
A
Sagrada Escritura está cheia de expressões
semelhantes: “Quão numerosas as tuas obras, Senhor! Todas fizeste com sabedoria,
e a terra encheu-se das tuas criaturas” (Sl 103/104,24). Todo o
universo criado é um multiforme, potente e incessante apelo a proclamar a glória do Criador: “Por
minha vida e pela glória do Senhor que enche a terra inteira” (Nm 14,21);
pois “tuas são a riqueza e a glória” (cf.
1Cr 29,12).
6. Este hino de glória, inscrito na
criação, espera um ser capaz de dar-lhe uma adequada expressão conceitual e verbal, um ser
que louve o santo nome de Deus e narre a grandeza das suas obras (cf. Eclo 17,8). Este ser no
mundo visível é o homem. A
ele se dirige o apelo que brota do universo; o homem é o porta-voz das
criaturas e o seu intérprete diante de Deus.
7. Retornemos ainda por um
instante às palavras com as quais o
Concílio Vaticano I formula a verdade acerca da criação e acerca do
Criador do mundo: “Este único e verdadeiro Deus, por sua bondade e ‘força
onipotente’, não para aumentar sua beatitude ou para adquiri-la, mas a fim de manifestar a sua perfeição pelos
bens que prodigaliza às criaturas, por decisão sumamente livre, ciou simultaneamente
desde o princípio do tempo, do nada, ambas as criaturas: a espiritual e a
corporal...” (Denzinger, n. 3002).
Este texto explicita com uma
linguagem própria a mesma verdade
acerca da criação e de sua finalidade que encontramos presente nos
textos bíblicos. O Criador não
busca na obra da criação nenhum “complemento” a Si mesmo. Tal modo de raciocinar estaria em aberta
contradição com o que Deus é em Si mesmo. Ele, com efeito, é o Ser totalmente e infinitamente perfeito. Portanto,
não tem necessidade alguma do mundo. As criaturas, as visíveis e as invisíveis,
não podem “acrescentar” nada à Divindade do Deus Uno e Trino.
8. No entanto, Deus cria! As criaturas, chamadas por
Deus à existência com uma decisão plenamente livre e soberana, participam de modo real, ainda que limitado e parcial, da perfeição da
absoluta plenitude de Deus. Elas se diferenciam entre si pelo grau de perfeição
que receberam, partindo dos seres inanimados, passando pelos animados, até chegar
ao homem; e, ainda mais alto, até as criaturas de natureza puramente
espiritual. O conjunto das criaturas constitui o universo: o cosmos visível e invisível, em cuja totalidade e em cujas
partes se reflete a eterna Sabedoria e
se manifesta o inesgotável Amor
do Criador.
9. Na revelação da Sabedoria e do
Amor de Deus está o fim primeiro e
principal da criação e nela se realiza o mistério da glória de Deus, segundo a
palavra da Escritura: “Bendizei ao Senhor, todas as obras do Senhor” (Dn 3,57).
No mistério da glória todas as
criaturas adquirem o seu significado transcendental: “ultrapassam” a si
mesmas para abrir-se Àquele no qual têm o seu começo... e a sua meta.
Admiremos, pois, com fé a obra do
Criador e louvemos a sua grandeza: “Quão numerosas as tuas obras, Senhor! Todas
fizeste com sabedoria, e a terra encheu-se das tuas criaturas. Seja para sempre
a glória do Senhor, alegre-se o Senhor em suas obras. Cantarei ao Senhor por
toda a minha vida, salmodiarei ao meu Deus enquanto eu existir” (Sl 103/104,24.31.33).
29. A criação e a legítima autonomia das coisas criadas
João Paulo II - 02 de abril de
1986
1. A criação, sobre cujo fim
meditamos na Catequese anterior do ponto de vista da dimensão “transcendental”,
exige também uma reflexão do ponto de vista da dimensão imanente. Isso é hoje particularmente necessário devido
ao progresso da ciência e da técnica, que introduziram mudanças significativas na
mentalidade de muitos homens do nosso tempo. Com efeito, “muitos de nossos
contemporâneos parecem temer que uma união mais íntima da atividade humana com a
religião impeça a autonomia dos
homens, das sociedades ou das ciências” (Constituição Gaudium et spes, n. 36).
O Concílio afrontou este problema,
que está intimamente ligado à
verdade de fé acerca da criação e do seu fim, propondo-lhe uma
explicação clara e convincente. Ouçamo-la.
2. “Se por autonomia das
realidades terrenas entendermos que as coisas criadas e as próprias sociedades gozam
de leis e valores próprios, que devem ser conhecidos, aplicados e ordenados
progressivamente pelo homem, é absolutamente necessário exigi-la. Isso não só é
solicitado pelos homens de nosso tempo, mas também está de acordo com a vontade
do Criador. Pois pela própria condição da criação, todas as coisas são dotadas
de próprio fundamento, verdade, bondade e próprias leis e ordens, que o homem
deve respeitar, reconhecendo os métodos específicos de cada ciência ou arte.
Por isso, a pesquisa metódica em todas as disciplinas, se for feita de maneira
verdadeiramente científica e segundo as normas morais, realmente jamais se oporá
à fé, porque as realidades profanas e as da fé originam-se do mesmo Deus.
E mais, quem se esforça por
perscrutar com humildade e constância os segredos das coisas, mesmo que disso
não tenha consciência, é como que conduzido pela mão de Deus, que sustenta todas
as coisas e faz que sejam o que são. Por isso, é permitido deplorar algumas
atitudes de espírito, que não faltaram às vezes entre os próprios cristãos, por
não reconhecerem suficientemente a legítima autonomia das ciências e, pelas
disputas e controvérsias daí suscitadas, levaram muitos espíritos a pensar que
a fé e a ciência se opõem.
Ao contrário, se pelas palavras ‘autonomia
das realidades terrenas’ se entender que as coisas criadas não dependem de Deus
e que o homem pode usá-las como se elas não se referissem ao Criador, ninguém
que reconhece a Deus deixa de perceber quão falsas sejam tais propostas. Ora,
sem o Criador, a criatura se esvai. De resto, todos os fiéis, de qualquer
religião, sempre ouviram a voz e a manifestação de Deus na linguagem das
criaturas. E mais, pelo esquecimento de Deus, a própria criatura se obscurece”
(Gaudium et spes, n.
36).
3. Até aqui o texto conciliar. Este
constitui um desenvolvimento do
ensinamento que a fé oferece sobre a criação e estabelece uma
confrontação iluminadora entre essa verdade de fé e a mentalidade dos homens do nosso tempo, fortemente
condicionada pelo desenvolvimento das ciências naturais e pelo progresso da
técnica. Busquemos recolher em uma síntese orgânica os principais pensamentos
contidos no parágrafo 36 da Constituição Gaudium et spes:
A) À luz da doutrina do Concílio
Vaticano II a verdade acerca da criação não
é apenas uma verdade de fé, baseada na Revelação do Antigo e do Novo
Testamento; ela é também uma verdade que une todos os homens que creem, “de qualquer religião”, isto
é, a todos que “sempre ouviram a voz e a manifestação de Deus na linguagem das
criaturas”.
B) Esta verdade, plenamente manifestada na Revelação, é todavia por
si acessível à razão humana. Isto pode ser deduzido do conjunto da argumentação
do texto conciliar e particularmente das frases: “sem o Criador, a criatura se
esvai. (...) pelo esquecimento de Deus, a própria criatura se obscurece”. Essas
expressões (ao menos de modo indireto) indicam que o mundo das criaturas tem necessidade da Razão Última e
da Causa Primeira. É por força da sua própria natureza que os seres
contingentes têm necessidade, para existir, de um apoio no Absoluto (no Ser
necessário), que é Existência por si (“Esse
subsistens”). O mundo contingente e fugaz “se esvai sem o Criador”.
C) Em relação à verdade acerca da criação
assim compreendida, o Concílio estabelece uma distinção fundamental entre autonomia “legítima” e “ilegítima” das
realidades terrenas. Ilegítima (isto é, não conforme à verdade da
Revelação) é a autonomia que proclama a independência das realidades criadas por Deus Criador, e
sustenta “que as coisas criadas não dependem de Deus e que o homem pode usá-las
como se elas não se referissem ao Criador”. Tal modo de entender e de comportar-se
nega e rechaça a verdade acerca da
criação; e, na maioria das vezes - se não mesmo por princípio - tal
posição é sustentada precisamente em
nome da “autonomia” do mundo, e do homem no mundo, do conhecimento
e da ação humana. É preciso acrescentar, porém, que no contexto de uma
“autonomia” assim entendida é o
homem quem, em realidade, fica privado da própria autonomia em relação ao mundo, e acaba
por encontrar-se de fato submetido a ele. É um tema sobre o qual voltaremos.
D) A “autonomia das realidades
terrenas” entendida deste modo é - segundo o texto citado da Constituição Gaudium
et spes - não apenas ilegítima,
mas também inútil. As coisas criadas efetivamente gozam de uma
autonomia própria “por vontade
do Criador”, que está enraizada em sua própria natureza, pertencendo ao
fim da criação (na sua dimensão imanente). “Pois pela própria condição da
criação, todas as coisas são dotadas de próprio fundamento, verdade, bondade e
próprias leis e ordens”. Se essa afirmação se refere a todas as criaturas do
mundo visível, se refere de modo eminente ao homem. O homem, com efeito, na mesma medida em que busca “conhecer,
aplicar e ordenar” de modo coerente as leis e os valores do cosmos, não só participa de maneira criativa na legítima autonomia
das cosas criadas, mas realiza de modo correto a autonomia que lhe é própria. E assim se encontra com a
finalidade imanente da criação, e indiretamente também com o Criador: “É como
que conduzido pela mão de Deus, que sustenta todas as coisas e faz que sejam o
que são” (Gaudium et spes, n. 36).
4. É preciso acrescentar que, com
o problema da “legítima autonomia das realidades terrenas”, se vincula também o problema, hoje mui
sentido, da “ecologia”, isto é, a preocupação pela proteção e
preservação do ambiente natural.
O desequilíbrio ecológico, que supõe
sempre uma forma de egoísmo anticomunitário, nasce de um uso arbitrário - e em
definitiva nocivo - das criaturas, cujas leis e ordem natural são violadas,
ignorando ou desprezando a finalidade que é imanente à obra da criação. Tal modo
de comportar-se deriva também de uma falsa interpretação da autonomia das coisas
terrenas. Quando o homem usa essas cosas “sem referi-las ao Criador” - para
utilizar também as palavras da Constituição conciliar -, ele causa a si mesmo
danos incalculáveis.
A solução do problema da ameaça
ecológica permanece em estreita relação com os princípios da “legítima
autonomia das realidades terrenas”, isto é, definitivamente, com a verdade acerca da criação e acerca do Criador do
mundo.
Deus Criador (Michelangelo, Capela Sistina) |
Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (12 de março e 02 de abril de 1986).
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