quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 17

Dando continuidade às reflexões sobre a criação, trazemos nesta postagem as Catequeses nn. 28-29 do Papa São João Paulo II sobre Deus Pai.

Para acessar a postagem introdutória às suas Catequeses sobre o Creio, clique aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

28. A criação é revelação da glória de Deus
João Paulo II - 12 de março de 1986

1. A verdade de fé acerca da criação do nada (“ex nihilo”), sobre a qual nos detivemos nas Catequeses anteriores, nos introduz nas profundezas do mistério de Deus, Criador “do céu e da terra”. Segundo a expressão do Símbolo Apostólico: “Creio em Deus, Pai todo-poderoso, Criador...”, a criação é atribuída principalmente ao Pai. Na realidade ela é obra das Três Pessoas da Trindade, segundo o ensinamento já presente de algum modo no Antigo Testamento e revelado plenamente no Novo, particularmente nos textos de Paulo e João.

2. À luz destes textos apostólicos, podemos afirmar que a criação do mundo encontra seu modelo na eterna geração do Verbo, do Filho, da mesma substância do Pai, e sua fonte no Amor que é o Espírito Santo. É este Amor-Pessoa, consubstancial ao Pai e ao Filho, juntamente com o Padre e com o Filho, fonte da criação do mundo do nada, isto é, do dom da existência a cada ser. Deste dom gratuito participa toda a multiplicidade dos seres “visíveis e invisíveis”, tão variada que parece quase ilimitada, e tudo o que a linguagem da cosmologia indica como “macrocosmo” e “microcosmo”.

Deus Pai em majestade
(Basílica de Santo Estêvão - Budapeste, Hungria)

3. A verdade de fé acerca da criação do mundo, fazendo-nos mergulhar nas profundezas do mistério trinitário, nos desvela o que a Bíblia chama Glória de Deus” (Kabod Yahweh, Doxa tou Theou). A Glória de Deus está antes de tudo n’Ele mesmo: é a glória “interior”, que, por dizer assim, preenche a profundidade ilimitada e a infinita perfeição da única Divindade na Trindade das Pessoas. Esta perfeição infinita, enquanto plenitude absoluta de Ser e de Santidade, é também plenitude de Verdade e de Amor no contemplar-se e doar-se recíproco (e, portanto, na comunhão) do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Mediante a obra da criação a gloria interior de Deus, que brota do próprio mistério da Divindade, é de certo modo, transladada “para fora”: para as criaturas do mundo visível e do mundo invisível, proporcionalmente a seu grau de perfeição.

4. Com a criação do mundo (visível e invisível) começa como que uma nova dimensão da glória de Deus, chamada “exterior” para distingui-la da precedente. A Sagrada Escritura fala dela em muitas passagens: bastam-nos alguns exemplos.
O Salmo 18 diz: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos... Por toda a terra se difunde o seu som [a sua voz], e até os confins do mundo vai sua mensagem” (Sl 18/19,1.5). O Livro do Sirácida [Eclesiástico], por sua vez, afirma: “O sol brilhante contempla todas as coisas, e a obra do Senhor está cheia da sua glória” (Eclo 42,16). O Livro de Baruc possui uma expressão muito singular e sugestiva: “As estrelas brilham alegres, cada qual em seu lugar. Deus chama e elas respondem: ‘Aqui estamos!’, brilhando com alegria para Aquele que as fez” (Br 3,34-35).

5. Em outros lugares, o texto bíblico soa como um apelo dirigido às criaturas, a fim de que proclamem a glória de Deus Criador: por exemplo, no Livro de Daniel: “Bendizei ao Senhor todas as obras do Senhor; aclamai-O e exaltai-O pelos séculos” (Dn 3,57); ou no Salmo 65: “Aclamai a Deus, ó terra inteira, entoai salmos à glória do seu nome, glorificai-o em seu louvor. Dizei a Deus: ‘Quão assombrosas são tuas obras! (...) Toda terra te adore e te cante salmos, entoe salmos ao teu nome’” (Sl 65/66,1-4).
A Sagrada Escritura está cheia de expressões semelhantes: “Quão numerosas as tuas obras, Senhor! Todas fizeste com sabedoria, e a terra encheu-se das tuas criaturas” (Sl 103/104,24). Todo o universo criado é um multiforme, potente e incessante apelo a proclamar a glória do Criador: “Por minha vida e pela glória do Senhor que enche a terra inteira” (Nm 14,21); pois “tuas são a riqueza e a glória” (cf. 1Cr 29,12).

6. Este hino de glória, inscrito na criação, espera um ser capaz de dar-lhe uma adequada expressão conceitual e verbal, um ser que louve o santo nome de Deus e narre a grandeza das suas obras (cf. Eclo 17,8). Este ser no mundo visível é o homem. A ele se dirige o apelo que brota do universo; o homem é o porta-voz das criaturas e o seu intérprete diante de Deus.

7. Retornemos ainda por um instante às palavras com as quais o Concílio Vaticano I formula a verdade acerca da criação e acerca do Criador do mundo: “Este único e verdadeiro Deus, por sua bondade e ‘força onipotente’, não para aumentar sua beatitude ou para adquiri-la, mas a fim de manifestar a sua perfeição pelos bens que prodigaliza às criaturas, por decisão sumamente livre, ciou simultaneamente desde o princípio do tempo, do nada, ambas as criaturas: a espiritual e a corporal...” (Denzinger, n. 3002).
Este texto explicita com uma linguagem própria a mesma verdade acerca da criação e de sua finalidade que encontramos presente nos textos bíblicos. O Criador não busca na obra da criação nenhum “complemento” a Si mesmo. Tal modo de raciocinar estaria em aberta contradição com o que Deus é em Si mesmo. Ele, com efeito, é o Ser totalmente e infinitamente perfeito. Portanto, não tem necessidade alguma do mundo. As criaturas, as visíveis e as invisíveis, não podem “acrescentar” nada à Divindade do Deus Uno e Trino.

8. No entanto, Deus cria! As criaturas, chamadas por Deus à existência com uma decisão plenamente livre e soberana, participam de modo real, ainda que limitado e parcial, da perfeição da absoluta plenitude de Deus. Elas se diferenciam entre si pelo grau de perfeição que receberam, partindo dos seres inanimados, passando pelos animados, até chegar ao homem; e, ainda mais alto, até as criaturas de natureza puramente espiritual. O conjunto das criaturas constitui o universo: o cosmos visível e invisível, em cuja totalidade e em cujas partes se reflete a eterna Sabedoria e se manifesta o inesgotável Amor do Criador.

9. Na revelação da Sabedoria e do Amor de Deus está o fim primeiro e principal da criação e nela se realiza o mistério da glória de Deus, segundo a palavra da Escritura: “Bendizei ao Senhor, todas as obras do Senhor” (Dn 3,57). No mistério da glória todas as criaturas adquirem o seu significado transcendental: “ultrapassam” a si mesmas para abrir-se Àquele no qual têm o seu começo... e a sua meta.
Admiremos, pois, com fé a obra do Criador e louvemos a sua grandeza: “Quão numerosas as tuas obras, Senhor! Todas fizeste com sabedoria, e a terra encheu-se das tuas criaturas. Seja para sempre a glória do Senhor, alegre-se o Senhor em suas obras. Cantarei ao Senhor por toda a minha vida, salmodiarei ao meu Deus enquanto eu  existir” (Sl 103/104,24.31.33).

29. A criação e a legítima autonomia das coisas criadas
João Paulo II - 02 de abril de 1986

1. A criação, sobre cujo fim meditamos na Catequese anterior do ponto de vista da dimensão “transcendental”, exige também uma reflexão do ponto de vista da dimensão imanente. Isso é hoje particularmente necessário devido ao progresso da ciência e da técnica, que introduziram mudanças significativas na mentalidade de muitos homens do nosso tempo. Com efeito, “muitos de nossos contemporâneos parecem temer que uma união mais íntima da atividade humana com a religião impeça a autonomia dos homens, das sociedades ou das ciências” (Constituição Gaudium et spes, n. 36).
O Concílio afrontou este problema, que está intimamente ligado à verdade de fé acerca da criação e do seu fim, propondo-lhe uma explicação clara e convincente. Ouçamo-la.

2. “Se por autonomia das realidades terrenas entendermos que as coisas criadas e as próprias sociedades gozam de leis e valores próprios, que devem ser conhecidos, aplicados e ordenados progressivamente pelo homem, é absolutamente necessário exigi-la. Isso não só é solicitado pelos homens de nosso tempo, mas também está de acordo com a vontade do Criador. Pois pela própria condição da criação, todas as coisas são dotadas de próprio fundamento, verdade, bondade e próprias leis e ordens, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos específicos de cada ciência ou arte. Por isso, a pesquisa metódica em todas as disciplinas, se for feita de maneira verdadeiramente científica e segundo as normas morais, realmente jamais se oporá à fé, porque as realidades profanas e as da fé originam-se do mesmo Deus.
E mais, quem se esforça por perscrutar com humildade e constância os segredos das coisas, mesmo que disso não tenha consciência, é como que conduzido pela mão de Deus, que sustenta todas as coisas e faz que sejam o que são. Por isso, é permitido deplorar algumas atitudes de espírito, que não faltaram às vezes entre os próprios cristãos, por não reconhecerem suficientemente a legítima autonomia das ciências e, pelas disputas e controvérsias daí suscitadas, levaram muitos espíritos a pensar que a fé e a ciência se opõem.
Ao contrário, se pelas palavras ‘autonomia das realidades terrenas’ se entender que as coisas criadas não dependem de Deus e que o homem pode usá-las como se elas não se referissem ao Criador, ninguém que reconhece a Deus deixa de perceber quão falsas sejam tais propostas. Ora, sem o Criador, a criatura se esvai. De resto, todos os fiéis, de qualquer religião, sempre ouviram a voz e a manifestação de Deus na linguagem das criaturas. E mais, pelo esquecimento de Deus, a própria criatura se obscurece” (Gaudium et spes, n. 36).

3. Até aqui o texto conciliar. Este constitui um desenvolvimento do ensinamento que a fé oferece sobre a criação e estabelece uma confrontação iluminadora entre essa verdade de fé e a mentalidade dos homens do nosso tempo, fortemente condicionada pelo desenvolvimento das ciências naturais e pelo progresso da técnica. Busquemos recolher em uma síntese orgânica os principais pensamentos contidos no parágrafo 36 da Constituição Gaudium et spes:

A) À luz da doutrina do Concílio Vaticano II a verdade acerca da criação não é apenas uma verdade de fé, baseada na Revelação do Antigo e do Novo Testamento; ela é também uma verdade que une todos os homens que creem, “de qualquer religião”, isto é, a todos que “sempre ouviram a voz e a manifestação de Deus na linguagem das criaturas”.

B) Esta verdade, plenamente manifestada na Revelação, é todavia por si acessível à razão humana. Isto pode ser deduzido do conjunto da argumentação do texto conciliar e particularmente das frases: “sem o Criador, a criatura se esvai. (...) pelo esquecimento de Deus, a própria criatura se obscurece”. Essas expressões (ao menos de modo indireto) indicam que o mundo das criaturas tem necessidade da Razão Última e da Causa Primeira. É por força da sua própria natureza que os seres contingentes têm necessidade, para existir, de um apoio no Absoluto (no Ser necessário), que é Existência por si (“Esse subsistens”). O mundo contingente e fugaz “se esvai sem o Criador”.

C) Em relação à verdade acerca da criação assim compreendida, o Concílio estabelece uma distinção fundamental entre autonomia “legítima” e “ilegítima” das realidades terrenas. Ilegítima (isto é, não conforme à verdade da Revelação) é a autonomia que proclama a independência das realidades criadas por Deus Criador, e sustenta “que as coisas criadas não dependem de Deus e que o homem pode usá-las como se elas não se referissem ao Criador”. Tal modo de entender e de comportar-se nega e rechaça a verdade acerca da criação; e, na maioria das vezes - se não mesmo por princípio - tal posição é sustentada precisamente em nome da “autonomia” do mundo, e do homem no mundo, do conhecimento e da ação humana. É preciso acrescentar, porém, que no contexto de uma “autonomia” assim entendida é o homem quem, em realidade, fica privado da própria autonomia em relação ao mundo, e acaba por encontrar-se de fato submetido a ele. É um tema sobre o qual voltaremos.

D) A “autonomia das realidades terrenas” entendida deste modo é - segundo o texto citado da Constituição Gaudium et spes - não apenas ilegítima, mas também inútil. As coisas criadas efetivamente gozam de uma autonomia própria “por vontade do Criador”, que está enraizada em sua própria natureza, pertencendo ao fim da criação (na sua dimensão imanente). “Pois pela própria condição da criação, todas as coisas são dotadas de próprio fundamento, verdade, bondade e próprias leis e ordens”. Se essa afirmação se refere a todas as criaturas do mundo visível, se refere de modo eminente ao homem. O homem, com efeito, na mesma medida em que busca “conhecer, aplicar e ordenar” de modo coerente as leis e os valores do cosmos, não só participa de maneira criativa na legítima autonomia das cosas criadas, mas realiza de modo correto a autonomia que lhe é própria. E assim se encontra com a finalidade imanente da criação, e indiretamente também com o Criador: “É como que conduzido pela mão de Deus, que sustenta todas as coisas e faz que sejam o que são” (Gaudium et spes, n. 36).

4. É preciso acrescentar que, com o problema da “legítima autonomia das realidades terrenas”, se vincula também o problema, hoje mui sentido, da “ecologia”, isto é, a preocupação pela proteção e preservação do ambiente natural.
O desequilíbrio ecológico, que supõe sempre uma forma de egoísmo anticomunitário, nasce de um uso arbitrário - e em definitiva nocivo - das criaturas, cujas leis e ordem natural são violadas, ignorando ou desprezando a finalidade que é imanente à obra da criação. Tal modo de comportar-se deriva também de uma falsa interpretação da autonomia das coisas terrenas. Quando o homem usa essas cosas “sem referi-las ao Criador” - para utilizar também as palavras da Constituição conciliar -, ele causa a si mesmo danos incalculáveis.
A solução do problema da ameaça ecológica permanece em estreita relação com os princípios da “legítima autonomia das realidades terrenas”, isto é, definitivamente, com a verdade acerca da criação e acerca do Criador do mundo.

Deus Criador (Michelangelo, Capela Sistina)

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (12 de março e 02 de abril de 1986). 

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