quinta-feira, 10 de novembro de 2022

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Deus Pai 18

Dentro das suas Catequeses sobre Deus Pai, após algumas meditações sobre “Deus Criador do céu e da terra”, o Papa São João Paulo II centra sua reflexão sobre a criação do homem. Confira a seguir sua Catequese n. 30, “O homem, criado à imagem de Deus”.

Para acessar o índice com os links para todas Catequeses sobre o Creio, clique aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM DEUS PAI

30. O homem, criado à imagem de Deus
João Paulo II - 09 de abril de 1986

1. O Símbolo da fé fala de Deus “Criador do céu e da terra, de todo as coisas visíveis e invisíveis”; não fala diretamente da criação do homem. O homem aparece, no contexto soteriológico do Símbolo, em relação com a Encarnação, como é evidente de modo particular no Símbolo Niceno-Constantinopolitano, quando se professa a fé em Jesus Cristo, Filho de Deus, que “por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus... e se fez homem”.
No entanto, devemos recordar que a ordem da salvação não só pressupõe a criação, mas que, mais ainda, tem origem nela. O Símbolo da fé nos remete, na sua concisão, ao conjunto da verdade revelada acerca da criação, para descobrir a posição realmente singular e excelsa que foi dada ao homem.

2. Como já recordamos nas Catequeses anteriores, o Livro do Gênesis contém duas narrações da criação do homem. Do ponto de vista cronológico, é anterior a descrição contida no segundo capítulo do Gênesis, enquanto, ao contrário, a do primeiro capítulo é posterior. No conjunto as duas descrições se integram mutuamente, contendo ambas elementos teologicamente muito ricos e preciosos.

Criação de Adão, detalhe
(Michelangelo, Capela Sistina)

3. Em Gn 1,26 lemos que no sexto dia Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e segundo a nossa semelhança. Que domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais na terra e tudo o que rasteja pela terra”.
É significativo que a criação do homem seja precedida por esta espécie de declaração com a qual Deus exprime a intenção de criar o homem à sua imagem, antes, “à nossa imagem”, no plural (em sintonia com o verbo “façamos”). Segundo alguns intérpretes, o plural indicaria o “Nós” divino do único Criador. Este seria, pois, de alguma forma, um primeiro sinal trinitário. Em todo caso, a criação do homem, segundo a descrição de Gênesis 1, é precedida de um particular “dirigir-se” a Si mesmo, “ad intra”, de Deus que cria.

4. Segue, pois, o ato criador. “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou” (Gn 1,27). Impressiona nesta frase o tríplice uso do verbo “criou” (“bará”), que parece testemunhar uma particular importância e intensidade do ato criador. Esta mesma indicação parece que se pode deduzir também do fato de que, enquanto cada dia da criação se conclui com a anotação: “Deus viu que era bom” (cf. Gn 1,3.10.12.18.21.25), depois da criação do homem, no sexto dia, se diz que “Deus viu tudo quanto havia afeito, e era muito bom” (Gn 1,31).

5. A descrição mais antiga, a “javista” de Gênesis 2, não utiliza a expressão “imagem de Deus”. Esta pertence exclusivamente ao texto posterior, que é mais “teológico”. Não obstante, a descrição javista apresenta, ainda que de modo indireto, a mesma verdade. É dito, com efeito, que o homem, criado por Deus-Yahweh, ao mesmo tempo e, que tem poder para “dar nome” aos animais (cf. Gn 2,19-20), não encontra entre todas as criaturas do mundo visível “um auxílio que lhe correspondesse”; isto é, constata sua singularidade. Ainda que não fale diretamente da “imagem” de Deus, o relato de Gênesis 2 apresenta alguns de seus elementos essenciais: a capacidade de autoconhecer-se, a experiência do próprio ser no mundo, a necessidade de preencher a própria solidão, a dependência de Deus.

6. Entre estes elementos, está também a indicação de que homem e mulher são iguais em natureza e dignidade. Com efeito, enquanto nenhuma criatura podia ser para o homem “um auxílio que lhe correspondesse”, ele encontra tal “auxílio” na mulher criada por Deus-Yahweh. Segundo Gn 2,21-22 Deus chama a mulher à existência tirando-a do corpo do homem: de “uma das costelas” do homem. Isto indica sua identidade na humanidade, sua semelhança essencial, ainda que na distinção. Posto que os dois participam da mesma natureza, ambos possuem a mesma dignidade de pessoa.

7. A verdade acerca do homem criado “à imagem de Deus” retorna também em outras passagens da Sagrada Escritura, seja no próprio Gênesis (“Deus fez o homem à sua imagem”: Gn 9,6) ou nos Livros Sapienciais. No Livro da Sabedoria se diz: “Deus criou o homem incorruptível e o fez à sua própria imagem e semelhança” (Sb 2,23). E no Livro do Sirácida [Eclesiástico] lemos: “Da terra Deus criou o homem e o formou à sua imagem” (Eclo 17,1).
O homem, pois, é criado para a imortalidade, e não cessa de ser imagem de Deus depois do pecado, ainda que esteja submetido à morte. Porta em si o reflexo do poder de Deus, que se manifesta sobretudo na faculdade da inteligência e da livre vontade. O homem é sujeito autônomo, fonte das próprias ações, embora mantendo as características da sua dependência de Deus, seu Criador (contingência ontológica).

8. Depois da criação do homem e da mulher o Criador “os abençoou e disse-lhes: ‘Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes... sobre as aves... e sobre todo ser vivo’” (Gn 1,28). A criação à imagem de Deus constitui o fundamento do domínio sobre as outras criaturas do mundo visível, as quais foram chamadas à existência em vista do homem e “para ele”.
Do domínio sobre o qual fala Gn 1,28 participam todos os homens, aos quais deram origem o primeiro homem e a primeira mulher. A isso alude também a redação javista (Gn 2,24), à qual teremos ainda ocasião de retornar. Transmitindo a vida aos próprios filhos, homem e mulher lhes dão em herança essa “imagem de Deus” que foi conferida ao primeiro homem no momento da criação.

9. Deste modo o homem se torna uma expressão particular da glória do Criador no mundo criado. “Gloria Dei vivens homo, vita autem hominis visio Dei” [“A glória de Deus é o homem vivo, a vida do homem é a visão de Deus”], escreverá Santo Irineu (Adversus Haereses, IV, 20, 7). Ele é glória do Criador enquanto criado à sua imagem e especialmente enquanto acede ao conhecimento verdadeiro do Deus vivente. Nisto encontram fundamento o particular valor da vida humana, assim como todos os direitos humanos (hoje tão enfatizados).

10. Mediante a criação à imagem de Deus, o homem é chamado a tornar-se um porta-voz da glória de Deus entre as criaturas do mundo visível e, em certo sentido, uma palavra da sua Glória.
O ensinamento sobre o homem presente nas primeiras páginas da Bíblia (Gn 1) vai ao encontro da revelação do Novo Testamento acerca da verdade de Cristo, que, como Verbo eterno, é “imagem do Deus invisível” e, ao mesmo tempo, “primogênito de toda criatura” (Cl 1,15). O homem criado à imagem de Deus adquire, no plano divino, uma relação especial com o Verbo, eterna imagem do Pai, que na plenitude dos tempos se fará carne. Adão - escreve São Paulo - “é figura d’Aquele que havia de vir” (Rm 5,14). Com efeito, “os que Ele (Deus Criador) conheceu desde sempre, também os predestinou a se configurarem com a imagem de seu Filho, para que este seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29).

11. Assim, pois, a verdade acerca do homem criado à imagem de Deus não só determina o seu lugar na totalidade da ordem da criação, mas também fala já do seu vínculo com a ordem da salvação em Cristo, que é a eterna e consubstancial “imagem de Deus” (2Cor 4,4): imagem do Pai. A criação do homem à imagem de Deus já desde o princípio do Livro do Gênesis dá testemunho da sua vocação.
Esta vocação se revela plenamente com a vinda de Cristo. Justamente então, graças à ação do “Espírito do Senhor”, se abre a perspectiva da plena transformação na imagem consubstancial de Deus, que é Cristo (cf. 2Cor 3,18). Assim, a “imagem” do Livro do Gênesis (Gn 1,27) alcança a plenitude do seu significado revelado.

Criação de Adão (Michelangelo, Capela Sistina)

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (09 de abril de 1986).

Nenhum comentário:

Postar um comentário