No último dia 25 de outubro o Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel Clemente, celebrou a Santa Missa na Catedral Patriarcal de Santa Maria em Lisboa, por ocasião da Solenidade do aniversário da sua Dedicação. Publicamos aqui sua homilia:
Homilia na Solenidade da Dedicação da Sé
Longe ou perto, o necessário é
mostrar Cristo presente!
«Arrasai este templo, e eu o levantarei em três dias. […]
Jesus falava do templo do seu corpo». Assim acabamos de ouvir no Evangelho.
Assim o havemos de entender cada vez mais e melhor, como agora celebrando a
Dedicação da nossa Sé de Lisboa.
Jesus referia-se primeiro ao templo de Jerusalém. Referia-se depois à sua
ressurreição, ao terceiro dia. Para relermos este trecho, entendamos que se
refere também a nós, como aqui estamos hoje.
O templo de Jerusalém, na reconstrução de Herodes, era
efetivamente espantoso. Sucedia a outros anteriores, começando pelo de Salomão
e ao que se fizera depois do exílio de Babilônia. Templos levantados e templos
destruídos, como voltaria a acontecer. Resta o muro ocidental, impropriamente
chamado “das lamentações”, a que continuam a acorrer muitos judeus
atuais.
É uma memória viva e – mesmo para nós – relevante. São muitas
as páginas bíblicas que nos falam do templo de Jerusalém, como sinal da
presença de Deus no meio do seu povo, como apelo ao povo para se centrar no seu
Deus. Os salmos de peregrinação adivinhavam no templo antigo a promessa do
“Deus conosco”, ontem como hoje, realização dum pleno encontro existencial de
que não queremos desistir.
“Deus conosco”, Emanuel, que Jesus foi e indicava em si próprio. Assim o
reconhecemos nós, os cristãos, daí tirando a necessária consequência. Podemos
traduzi-la assim: Templo significa lugar de encontro, com Deus e com os outros.
Um lugar de encontro cultual, apelando a um encontro total. Em plena recepção da
Constituição Sinodal de Lisboa, fixamo-nos este ano no seu número 47, assim
formulado: “Viver a Liturgia como lugar de encontro com Deus e também da
comunidade cristã enquanto Povo de Deus que celebra”.
Sabemos por experiência própria que os encontros plenos são
os que se realizam pessoa a pessoa, quando somos realmente pessoas para os
outros e quando alguém o é para nós. Já no Antigo Testamento os profetas
lembravam que o templo não valeria por si, se não fosse lugar de encontro com o
Senhor do Templo. Se não fosse lugar de conversão verdadeira à sua Lei, com
tudo o que tal implicava de religião solidária. Porque assim não foi, também o
templo ruiu, uma e outra vez. Como voltaria a ruir, pouco tempo depois das
advertências não atendidas de Jesus.
Lições de ontem, lições de hoje. Esta mesma sé, erguida de
raiz nos primeiros tempos portugueses, sucedeu-se a outras, entretanto
desaparecidas, de romanos, visigodos e moçárabes. Mas o que assinala, tão
vivamente assinala, é uma comunidade persistente que em todas essas épocas
viveu e transmitiu o Evangelho vivo, que sempre sobra e nos reconstrói
agora.
Aqui entrou, ainda no século XII, um menino que se chamou
depois Santo António e bem podemos tomar como emblema do que a Igreja de Lisboa
foi e há de ser no seu melhor, como terra onde se nasce e vive, como terra de
muitas partidas, ingressos e regressos, sempre mais além.
Chamaram-lhe justamente “o santo de todo o mundo”, como de
Lisboa se navegou depois para o mundo inteiro – e como o mundo inteiro parece
chegar agora a Lisboa. De Lisboa a Coimbra e depois, já franciscano, a
Marrocos, à Sicília, à Itália, à França e outra vez Itália, António conclamou
incansavelmente a conversão evangélica a Deus e ao próximo – ao próximo em quem
Deus nos espera.
Séculos depois, perto daqui também, nasceram António Vieira
e São João de Brito, que no Brasil ou na Índia lhe repetiam o clamor. Aqui entrariam
eles e tantos mais, cujas orações ecoam nas que elevamos hoje. Aqui se ouviu o
Evangelho e se celebraram os ritos que sacramentalmente o atualizam para
existencialmente o reproduzirem nas nossas próprias vidas. É esta persistência
que nos garante o templo, porque só a caridade nunca acabará. Dito doutro modo,
que tudo nos transforme em Cristo, de palavra, sentimento e ação, pois é Ele o
novo templo levantado, no terceiro dia da Páscoa em que revivemos. Tudo o que é
material é indispensável para vivermos e convivermos, ainda que efémero. O
espirito que o faz é imortal, se participa no Espírito de Cristo.
Falando do seu corpo como templo novo, Jesus falava de si
mesmo, como vida entregue e assim mesmo alargada em quem o receber. Na
arquitetura românica desta sé, isto mesmo se mostra, por ser como um corpo. O
trecho longitudinal, do pórtico à cabeceira, alarga-se no transepto em dois
braços abertos. No cruzamento está felizmente o altar, como coração de tudo o
mais.
Reparando bem, nós que aqui estamos incorporamo-nos no corpo
arquitetônico deste templo inteiro. Feliz arquitetura onde a Liturgia se
desenvolve e nos desenvolve a nós. A Palavra escutada vai-nos germinando, como
semente em boa terra. O gesto sacramental de Cristo reparte-O como pão vivo que
nos faz viver. Quase afirmaríamos que mais nos comunga Ele a nós do que nós a
Ele, pois nos incorpora a si. Como São Paulo sentia e perguntava, com toda a
exigência teológica e moral que isso mesmo implica: «- Não sabeis que os vossos
corpos são membros de Cristo?» (1Cor 6,15).
Irmãos caríssimos: Celebrar a Dedicação da Nossa Sé é reconhecer e dar graças
por tudo quanto ela significa e induz, para nós que aqui vimos e para os outros
que nos aguardam. Transporta-nos para Deus que nos espera em todos, especialmente
nos que mais precisam de ser tocados pela caridade de Cristo, que se alonga em
nós.
Mais do que há oito séculos – mas como já prometia – Lisboa é terra de muitas
gentes e a Diocese também cresce assim. Na cidade, entre residentes e de
passagem, cruza-se uma centena de proveniências, de várias etnias, línguas e
culturas. Da catedral às casas de cada um, aos mais diversos âmbitos da
sociocultura, há de crescer um corpo, precisamente o de Cristo, cuja vida
ressuscitada se quer alargar nos cristãos que a transportam. Vida aqui
celebrada e ali repartida, onde for preciso acolher quem chega, cuidar de quem
está, elevar o espírito e sustentar a esperança.
Templos, materialmente falando, são como formas do que neles se cria e
subsistirá além deles. Naquele dia em Jerusalém, estava Cristo no templo. Não
demorou muito até desaparecer o templo. Persistiu Cristo, que em si mesmo
realizava tudo quanto o templo antigo quis significar como lugar de Deus entre
o seu povo, anúncio do que seria para os povos todos. Persistiu Cristo, cujo
anúncio aqui chegou, há tantos séculos já. Para se assinalar também nesta sé
erguida.
Retenhamos a lição: A Dedicação da Sé dedica-nos a nós,
refeitos em Cristo para sermos Cristo na cidade. É também por isso que, com
Santo António e São João de Brito, tudo aqui nos fala de missão. Como cantamos
no nosso Sínodo Diocesano: «É o sonho missionário / de chegar a toda a gente. /
Longe ou perto, o necessário / É mostrar Cristo presente!» Presente em toda a
parte e simbolizado aqui - nesta bela catedral que nos incorpora nele e nele
nos expande.
Sé de Lisboa, 25 de
outubro de 2018.
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Rosácea da Catedral representando Cristo e os Apóstolos |
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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