quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Homilia na Solenidade da Dedicação da Catedral de Lisboa

No último dia 25 de outubro o Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel Clemente, celebrou a Santa Missa na Catedral Patriarcal de Santa Maria em Lisboa, por ocasião da Solenidade do aniversário da sua Dedicação. Publicamos aqui sua homilia:

Homilia na Solenidade da Dedicação da Sé
Longe ou perto, o necessário é mostrar Cristo presente!

«Arrasai este templo, e eu o levantarei em três dias. […] Jesus falava do templo do seu corpo». Assim acabamos de ouvir no Evangelho. Assim o havemos de entender cada vez mais e melhor, como agora celebrando a Dedicação da nossa Sé de Lisboa.
Jesus referia-se primeiro ao templo de Jerusalém. Referia-se depois à sua ressurreição, ao terceiro dia. Para relermos este trecho, entendamos que se refere também a nós, como aqui estamos hoje.
O templo de Jerusalém, na reconstrução de Herodes, era efetivamente espantoso. Sucedia a outros anteriores, começando pelo de Salomão e ao que se fizera depois do exílio de Babilônia. Templos levantados e templos destruídos, como voltaria a acontecer. Resta o muro ocidental, impropriamente chamado “das lamentações”, a que continuam a acorrer muitos judeus atuais. 
É uma memória viva e – mesmo para nós – relevante. São muitas as páginas bíblicas que nos falam do templo de Jerusalém, como sinal da presença de Deus no meio do seu povo, como apelo ao povo para se centrar no seu Deus. Os salmos de peregrinação adivinhavam no templo antigo a promessa do “Deus conosco”, ontem como hoje, realização dum pleno encontro existencial de que não queremos desistir.
“Deus conosco”, Emanuel, que Jesus foi e indicava em si próprio. Assim o reconhecemos nós, os cristãos, daí tirando a necessária consequência. Podemos traduzi-la assim: Templo significa lugar de encontro, com Deus e com os outros. Um lugar de encontro cultual, apelando a um encontro total. Em plena recepção da Constituição Sinodal de Lisboa, fixamo-nos este ano no seu número 47, assim formulado: “Viver a Liturgia como lugar de encontro com Deus e também da comunidade cristã enquanto Povo de Deus que celebra”.
Sabemos por experiência própria que os encontros plenos são os que se realizam pessoa a pessoa, quando somos realmente pessoas para os outros e quando alguém o é para nós. Já no Antigo Testamento os profetas lembravam que o templo não valeria por si, se não fosse lugar de encontro com o Senhor do Templo. Se não fosse lugar de conversão verdadeira à sua Lei, com tudo o que tal implicava de religião solidária. Porque assim não foi, também o templo ruiu, uma e outra vez. Como voltaria a ruir, pouco tempo depois das advertências não atendidas de Jesus.

Lições de ontem, lições de hoje. Esta mesma sé, erguida de raiz nos primeiros tempos portugueses, sucedeu-se a outras, entretanto desaparecidas, de romanos, visigodos e moçárabes. Mas o que assinala, tão vivamente assinala, é uma comunidade persistente que em todas essas épocas viveu e transmitiu o Evangelho vivo, que sempre sobra e nos reconstrói agora. 
Aqui entrou, ainda no século XII, um menino que se chamou depois Santo António e bem podemos tomar como emblema do que a Igreja de Lisboa foi e há de ser no seu melhor, como terra onde se nasce e vive, como terra de muitas partidas, ingressos e regressos, sempre mais além. 
Chamaram-lhe justamente “o santo de todo o mundo”, como de Lisboa se navegou depois para o mundo inteiro – e como o mundo inteiro parece chegar agora a Lisboa. De Lisboa a Coimbra e depois, já franciscano, a Marrocos, à Sicília, à Itália, à França e outra vez Itália, António conclamou incansavelmente a conversão evangélica a Deus e ao próximo – ao próximo em quem Deus nos espera. 
Séculos depois, perto daqui também, nasceram António Vieira e São João de Brito, que no Brasil ou na Índia lhe repetiam o clamor. Aqui entrariam eles e tantos mais, cujas orações ecoam nas que elevamos hoje. Aqui se ouviu o Evangelho e se celebraram os ritos que sacramentalmente o atualizam para existencialmente o reproduzirem nas nossas próprias vidas. É esta persistência que nos garante o templo, porque só a caridade nunca acabará. Dito doutro modo, que tudo nos transforme em Cristo, de palavra, sentimento e ação, pois é Ele o novo templo levantado, no terceiro dia da Páscoa em que revivemos. Tudo o que é material é indispensável para vivermos e convivermos, ainda que efémero. O espirito que o faz é imortal, se participa no Espírito de Cristo. 
Falando do seu corpo como templo novo, Jesus falava de si mesmo, como vida entregue e assim mesmo alargada em quem o receber. Na arquitetura românica desta sé, isto mesmo se mostra, por ser como um corpo. O trecho longitudinal, do pórtico à cabeceira, alarga-se no transepto em dois braços abertos. No cruzamento está felizmente o altar, como coração de tudo o mais. 
Reparando bem, nós que aqui estamos incorporamo-nos no corpo arquitetônico deste templo inteiro. Feliz arquitetura onde a Liturgia se desenvolve e nos desenvolve a nós. A Palavra escutada vai-nos germinando, como semente em boa terra. O gesto sacramental de Cristo reparte-O como pão vivo que nos faz viver. Quase afirmaríamos que mais nos comunga Ele a nós do que nós a Ele, pois nos incorpora a si. Como São Paulo sentia e perguntava, com toda a exigência teológica e moral que isso mesmo implica: «- Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo?» (1Cor 6,15).

Irmãos caríssimos: Celebrar a Dedicação da Nossa Sé é reconhecer e dar graças por tudo quanto ela significa e induz, para nós que aqui vimos e para os outros que nos aguardam. Transporta-nos para Deus que nos espera em todos, especialmente nos que mais precisam de ser tocados pela caridade de Cristo, que se alonga em nós. 
Mais do que há oito séculos – mas como já prometia – Lisboa é terra de muitas gentes e a Diocese também cresce assim. Na cidade, entre residentes e de passagem, cruza-se uma centena de proveniências, de várias etnias, línguas e culturas. Da catedral às casas de cada um, aos mais diversos âmbitos da sociocultura, há de crescer um corpo, precisamente o de Cristo, cuja vida ressuscitada se quer alargar nos cristãos que a transportam. Vida aqui celebrada e ali repartida, onde for preciso acolher quem chega, cuidar de quem está, elevar o espírito e sustentar a esperança.
Templos, materialmente falando, são como formas do que neles se cria e subsistirá além deles. Naquele dia em Jerusalém, estava Cristo no templo. Não demorou muito até desaparecer o templo. Persistiu Cristo, que em si mesmo realizava tudo quanto o templo antigo quis significar como lugar de Deus entre o seu povo, anúncio do que seria para os povos todos. Persistiu Cristo, cujo anúncio aqui chegou, há tantos séculos já. Para se assinalar também nesta sé erguida. 
Retenhamos a lição: A Dedicação da Sé dedica-nos a nós, refeitos em Cristo para sermos Cristo na cidade. É também por isso que, com Santo António e São João de Brito, tudo aqui nos fala de missão. Como cantamos no nosso Sínodo Diocesano: «É o sonho missionário / de chegar a toda a gente. / Longe ou perto, o necessário / É mostrar Cristo presente!» Presente em toda a parte e simbolizado aqui - nesta bela catedral que nos incorpora nele e nele nos expande. 
Sé de Lisboa, 25 de outubro de 2018.

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Rosácea da Catedral representando Cristo e os Apóstolos

Fonte: Patriarcado de Lisboa

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