São Doroteu de Gaza
Conferência sobre o temor de Deus
“Já não temo mais a Deus, mas o amo”
São João afirma
nas epístolas católicas: O amor perfeito
expulsa o temor. O que ele nos quer dizer com isto? De que amor nos fala e
de que temor? Pois o profeta diz no salmo: Todos
os seus santos temei ao Senhor. E nas santas Escrituras encontramos umas
mil passagens semelhantes. Portanto, se os santos que amam o Senhor de tal
maneira o temem, como São João pode dizer: O
amor expulsa o temor? Ele quer mostrar-nos que existem dois temores: um
inicial e outro perfeito.
O primeiro é o
dos que se iniciam na piedade, e o outro é o dos santos que chegaram à
perfeição e ao cume do santo amor. Por exemplo: o que cumpre a vontade de Deus
por temor dos castigos: ainda é principiante, tal como dissemos, já que não faz
o bem por si mesmo, mas por temor aos castigos. O outro cumpre a vontade de
Deus por que ama a Deus em si mesmo, e ama especialmente por ser-lhe
agradecido. Este sabe o que é o bem, conhece o que é estar com Deus. Este é o
que possui o amor verdadeiro, o amor perfeito como diz São João, e esse amor o
leva ao temor perfeito. Teme e guarda a vontade de Deus não para evitar os
açoites ou o castigo, mas porque, tendo degustado a doçura de estar com Deus,
como dissemos, abomina perde-la, teme ficar privado dela. Este temor perfeito,
nascido do amor, expulsa o temor inicial. E é por isso que São João diz que o
amor perfeito expulsa o temor. Mas é impossível chegar ao temor perfeito sem
passar pelo temor inicial.
Existe, de fato,
como afirma São Basílio, três estados nos quais podemos agradar a Deus: ou
realizamos o que agrada a Deus por temor do castigo, e então estamos na
condição de escravos; ou buscando vantagem de uma recompensa, cumprindo as
ordens recebidas em vista de nosso próprio proveito, assemelhando-nos, assim,
aos mercenários; ou, finalmente, cumprimos o bem pelo bem em si, e estamos
assim na condição de filhos. Porque o filho, ao chegar a uma idade madura,
cumpre a vontade de seu pai não por temor do castigo, nem para obter uma
recompensa, mas porque, amando ao seu pai, guarda para com ele o afeto e a
honra devida a um pai, com a convicção de que todos os bens de seu pai lhe
pertencem. Este merece ouvir que se lhe diga: Já não és mais escravo, mas filho e herdeiro de Deus por Cristo.
É evidente que
já não teme mais a Deus com aquele temor inicial, do qual falamos, mas ama como
dizia Santo Antão: “Já não temo mais a Deus, mas o amo”. Do mesmo modo o
Senhor, ao dizer a Abraão depois que este ofereceu a seu filho: agora sei que temes a Deus, querendo
referir-se a esse temor perfeito nascido do amor. Se não, como pode dizer-lhe:
agora sei...? Desculpem-me, mas Abraão tinha realizado tantas coisas! Tinha
obedecido a Deus, tinha abandonado todos os seus bens, tinha-se estabelecido em
uma terra estrangeira, em um povo idólatra, onde não havia nenhum sinal de
culto divino. Mas principalmente tinha suportado essa terrível prova do
sacrifício de seu filho. E depois de tudo isso o Senhor diz: agora sei que temes a Deus.
Está muito claro
que ali Deus fala do temor perfeito, o dos santos. Porque eles cumprem a
vontade de Deus não mais por temor a um castigo, ou para obter uma recompensa,
mas por amor, como já dissemos muitas vezes, temendo fazer qualquer coisa
contrária à vontade daqueles a quem amam. Por isso São João diz: O amor expulsa o temor. Os santos não
obram mais por temor, mas temem por amor.
Fonte: Lecionário
Patrístico Dominical, pp. 568-569. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.
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