O Padre Paulo
Ricardo de Azevedo Júnior, da Arquidiocese de Cuiabá (MT), publicou no dia 02 de dezembro de 2013 uma
vídeo-aula comentando o Dies irae (Dia de ira), antiga sequência das Missas dos defuntos, atualmente proposto como hino facultativo da Liturgia das Horas para a última semana
do Ano Litúrgico.
Para acessar nossa postagem sobre o Dies irae, clique aqui.
Juízo final (Hans Memling) |
O comentário
recorda a interpretação do hino feita por Wolfgang Amadeus Mozart (†1791) em sua famosa Missa de Réquiem
(no vídeo da aula é possível ouvir o trecho intercalando os comentários).
A aula infelizmente não encontra-se mais disponível no Youtube, mas pode ser acessada no site do Padre Paulo Ricardo. A seguir publicamos seu texto, presente no mesmo site (em negrito encontra-se o texto do hino em latim com sua tradução).
Dies irae: Uma meditação sobre o fim dos tempos
A expressão Dies
irae (“dia da ira”) é extraída da Bíblia: “Esse dia será um dia da ira, dia de angústia e de aflição, dia de ruína
e de devastação; dia de trevas e escuridão, dia de nuvens e de névoas espessas,
dia de trombeta e de alarme, contra as cidades fortes e as torres elevadas” (Sf
1,15-16).
A “ira” de Deus
consiste em uma expressão do seu amor, em uma forma de recordar aos homens que
suas ações têm consequências. Faz parte da pedagogia de Deus corrigir o homem,
enquanto se encontra neste mundo, a fim de que se salve. Infelizmente, tem quem
teime em encaixar a ira divina apenas no Antigo Testamento, acabando por cair
no erro do heresiarca Marcião, cuja doutrina gnóstica distinguia o “deus” da
lei judaica do “deus” do Novo Testamento. Ora, é evidente que, para os
cristãos, que “veneram o Antigo Testamento como verdadeira Palavra de Deus” (Catecismo
da Igreja Católica, n. 123), não há diferença alguma entre o Deus de Abraão, de
Isaac e de Jacó e o Deus que se revelou em Jesus Cristo. “Por isso a sã doutrina cristã sempre recusou
qualquer forma emergente de marcionismo, que tende de diversos modos a
contrapor entre si o Antigo e o Novo Testamento” (Papa Bento XVI,
Exortação Apostólica Verbum Domini, n. 40).
Dies irae
Canta o hino:
“Dies irae, dies illa / solvet saeclum
in favílla, / teste David cum Sibýlla”;
“Dia da ira, dia aquele / O
mundo se dissolve em cinza, / Como foi atestado por Davi e pela Sibila”.
“Como
foi atestado por Davi”, quer dizer, como foi confirmado pelo próprio Antigo Testamento; “e pela Sibila”, isto é, até mesmo as religiões pagãs reconheceram
a existência deste “dia final”. Ninguém ignora a existência do fim dos tempos.
“Quantus tremor est futúrus, / quando
iudex est ventúrus / cuncta stricte discussúrus!”
“Quanto tremor
acontecerá, / Quando o juiz vier / Para tudo julgar estritamente!”.
Narra o Evangelho que “os homens desmaiarão
de medo e ansiedade, pelo que vai acontecer no universo” (Lc 21,26). Nestes
primeiros versos, o Dies irae canta
justamente este aspecto terrível do Juízo: o tremor das criaturas diante
d'Aquele que é o Rei de todo o universo.
Tuba mirum
Na peça de Mozart,
neste momento, o barítono (aquele com a voz mais grave) imita o som da
trombeta, da qual fala São Paulo a Tessalônica: “Quando for dado o sinal, à voz
do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor descerá do céu...” (1Ts
4,16):
“Tuba mirum spargens sonum /
per sepúlcra regiónum, / coget omnes ante thronum”;
“A trombeta
espalhando o som admirável / Pela região dos sepulcros, / Leva todos diante do
trono”.
Segue-se, então, a
ressurreição dos mortos (ibid.):
“Mors stupébit et natúra, / cum resúrget
creatúra / iudicánti responsúra”;
“A morte e a natureza se espantarão,
/ Quando a criatura ressurgir / Respondendo ao que irá julgar”.
Aqui, Tomás
de Celano utiliza-se de uma prosopopeia: ele dá características humanas à morte
e à natureza, que “se espantarão” diante da ressurreição dos mortos, diante da
glorificação daquela matéria sobre a qual dominava a concupiscência. Iudicánti responsúra: os mortos se levantarão à simples voz do Juiz, para respondê-Lo prontamente.
“Liber scriptus proferétur, / in quo
totum continétur / unde mundus iudicétur”;
“Será trazido um livro
escrito, / No qual tudo está contido / A partir do qual o mundo será julgado”.
Trata-se, por assim dizer, da memória de
Deus, o “livro da vida” do qual fala o livro do Apocalipse: “Os mortos foram
julgados conforme o que estava escrito nesse livro, segundo as suas obras” (Ap
20,12). Este é o acusador diante do tribunal de Deus: os nossos atos e
omissões.
“Iudex ergo cum sedébit, / quicquid latet
apparébit; / nil inúltum remanébit”;
“Quando o juiz então se sentar,
/ Tudo o que está escondido aparecerá; / Nada permanecerá sem vingança”.
Quando Deus se sentar em Seu trono, tudo aquilo que permanecia oculto
será revelado. Tudo aquilo que de bom e ruim os homens realizaram será colocado
às claras. Para os eleitos, isto será motivo de grande júbilo; para os
condenados, porém, de grande vergonha.
Deus fará justiça:
a maldade e o pecado serão, enfim, derrotados. Isto deve ser motivo de grande
consolação. O importante é que, na hora de condenação, quando a morte e o mal
forem precipitados no inferno, nós não estejamos apegados a eles e venhamos
também a ser lançados no fogo. Deus ama o homem, e é precisamente por amá-lo
que virá com uma espada para separá-lo pecado, a fim de que ele possa entrar no
Céu.
“Quid sum miser tunc dictúrus, / quem
patrónum rogatúrus, / cum vix iustus sit secúrus?”;
“O que então eu
miserável direi, / A quem clamarei como advogado, / Quando nem mesmo o justo
estiver seguro?”.
Naquele
dia, “nem mesmo o justo” estará seguro. Isto não significa que quem já foi
salvo, após o juízo particular, corre o risco de condenar-se. Este verso quer
mostrar, antes, a condição miserável de todas as criaturas diante da majestade
divina, a pequenez de todos os homens - até os mais santos - na presença de
Deus.
Rex treméndae
Surge, então, o advogado
da humanidade, o “mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo” (1Tm 2,5):
“Rex treméndae maiestátis, / qui
salvándos salvas gratis, / salva me, fons pietátis”;
“Rei de tremenda
majestade, / Que salvas de graça os que devem ser salvos / Salva-me, ó fonte de
piedade”.
Mozart coloca, aqui, toda a potência do coro, para cantar a
majestade de Deus. É uma entrada triunfal e majestosa para um “Rei de tremenda
majestade”. Contrastando com esta ostentação surge o último verso: “Salve-me, ó
fonte de piedade”. A voz humilde e contrita deste verso expõe a confiança que
perpassa toda a letra e composição deste hino. O mesmo que virá julgar todos os povos é o advogado, aquele que os
defenderá.
Recordáre
Brota, então, do
coração humano, uma profunda esperança:
“Recordáre,
Iesu pie, / quod sum causa tuae viae, / ne me perdas illa die”;
“Recorda-te, ó Jesus piedoso / Que sou a causa de teu peregrinar, / Não me
percais naquele dia”.
“Quaerens me sedísti lassus, / redemísti
crucem passus; / tantus labor non sit cassus”;
“Ao me buscar sentaste
cansado, / Redimiste sofrendo a cruz; / Tanto sofrimento não seja em vão”.
Para implorar a misericórdia de Jesus, o
réu recorre não aos méritos que ele porventura possua, mas aos méritos de
Cristo Crucificado; ele pede que todo o Seu suplício neste mundo não seja
desperdiçado.
“Iuste iudex ultiónis, / donum fac
remissiónis / ante diem ratiónis”;
“Justo juiz de vingança, / Concede o
dom da remissão / Antes do dia da prestação de contas”.
Agora, a invocação tem como finalidade
pedir a remissão dos pecados antes do dia do Juízo e, em última instância,
antes da própria morte, já que, como ensina o Catecismo, “a morte é o fim
(...) do tempo de graça e de misericórdia que Deus lhe oferece (...) para
decidir seu destino último” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1013).
Ingemísco
O pedido é feito
com confiança na misericórdia de Deus, à qual o homem entrega toda a sua
miséria e indignidade:
“Ingemísco
tamquam reus, / culpa rubet vultus meus; / supplicánti parce, Deus”;
“Eu gemo como um réu, / A culpa torna meu
rosto vermelho; / Ó Deus, tem piedade do que suplica”.
“Qui Mariam absolvisti / et latrónem
exaudísti, / mihi quoque spem dedísti”;
“Tu que absolveste Maria, / E
ouviste o ladrão, / Também a mim deste esperança”.
A reforma
litúrgica trocou o verso “Qui Mariam
absolvisti”por “Peccatrícem qui
solvísti”(“Tu que absolveste a pecadora”) por uma questão simplesmente
exegética, já que os estudiosos contemporâneos tendem a não identificar Maria
Madalena como a mulher adúltera do Evangelho (cf. Jo 8,1-11).
O pecador lembra ao
Senhor a sua piedade para com essa mulher e para com o bom ladrão, tendo
esperança que também ele seja absolvido, ainda que sua prece seja indigna:
“Preces
meae non sunt dignae, / sed tu, bonus, fac benígne / ne perénni cremer igne.
Inter oves locum praesta / et ab haedis me sequéstra, / státuens in parte
dextra”;
“Minhas preces não são dignas, / Mas tu, ó bondoso, age
benignamente / Que eu não queime no fogo eterno.
Concede um lugar entre as
ovelhas / Rapta-me do inferno, / Colocando-me do lado direito”.
Confutátis
Os versos finais do
hino Dies irae retratam, por fim, a
sentença do Juízo Final:
“Confutátis
maledíctis, / flammis ácribus addíctis, / voca me cum benedíctis”;
“Refutados os malditos, / Entregues às chamas ardentes, / Chama-me com os
benditos”.
As palavras duras
da letra só não são mais severas que as indicações do próprio Jesus: “Ele se
voltará (...) para os da sua esquerda e lhes dirá: ‘Retirai-vos de mim,
malditos, ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos’” (Mt
25,41). Quem acoima este belo hino medieval de “quadrado” ou supersticioso, na
verdade, perdeu de vista o próprio fio pelo qual Cristo conduz toda a pregação
da boa nova: a salvação daqueles que fazem a Sua vontade e o eterno castigo
daqueles que a rejeitam obstinadamente.
“Oro supplex et acclínis, / cor contrítum
quasi cinis, / gere curam mei finis”;
“Suplicando e inclinado eu peço,
/ Com o coração contrito como cinza, / Cuida de meu fim”.
O réu pede a Jesus que cuide do seu destino
e fá-lo “com o coração contrito como cinza”, isto é, com o coração
macerado, à semelhança de um vaso quebrado e pisoteado a ponto de tornar-se pó.
Eis a bela figura que expressa a condição com a qual o homem deve apresentar-se
diante de Deus.
Lacrimósa
Enfim, chega-se à
conclusão do canto, que finda com um lamento, com um luto:
“Lacrimósa dies illa, / qua resúrget ex favílla / iudicándus homo
reus. / Huic ergo parce, Deus.
Pie Iesu Domine, / dona eis requiem. Amen”.
“Lacrimoso aquele dia, / No qual ressurgirá das cinzas / O homem réu a ser
julgado. / Tem dele piedade, ó Deus, / Piedoso Senhor Jesus, / Dá-lhes o
repouso. Amém”.
Cantando este belo hino - acompanhado pela composição majestosa de Mozart -, o homem é colocado diante do Deus justo e misericordioso, tão bem representado no ícone do site Padre Paulo Ricardo. “Reúnem-se num só rosto, de forma paradoxal, as duas formas de Deus nos amar: a compaixão e a ira”. “A misericórdia, porém, triunfa do juízo” (Tg 2,13).
Fonte: Padre Paulo Ricardo.
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