terça-feira, 28 de novembro de 2017

Dies irae: Uma meditação sobre o fim dos tempos

O Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, da Arquidiocese de Cuiabá (MT), publicou no dia 02 de dezembro de 2013 uma vídeo-aula comentando o Dies irae (Dia de ira), antiga sequência das Missas dos defuntos, atualmente proposto como hino facultativo da Liturgia das Horas para a última semana do Ano Litúrgico.

Para acessar nossa postagem sobre o Dies irae, clique aqui.

Juízo final (Hans Memling)

O comentário recorda a interpretação do hino feita por Wolfgang Amadeus Mozart (†1791) em sua famosa Missa de Réquiem (no vídeo da aula é possível ouvir o trecho intercalando os comentários).

A aula infelizmente não encontra-se mais disponível no Youtube, mas pode ser acessada no site do Padre Paulo Ricardo. A seguir publicamos seu texto, presente no mesmo site (em negrito encontra-se o texto do hino em latim com sua tradução).

Dies irae: Uma meditação sobre o fim dos tempos

A expressão Dies irae (“dia da ira”) é extraída da Bíblia: “Esse dia será um dia da ira, dia de angústia e de aflição, dia de ruína e de devastação; dia de trevas e escuridão, dia de nuvens e de névoas espessas, dia de trombeta e de alarme, contra as cidades fortes e as torres elevadas” (Sf 1,15-16).

A “ira” de Deus consiste em uma expressão do seu amor, em uma forma de recordar aos homens que suas ações têm consequências. Faz parte da pedagogia de Deus corrigir o homem, enquanto se encontra neste mundo, a fim de que se salve. Infelizmente, tem quem teime em encaixar a ira divina apenas no Antigo Testamento, acabando por cair no erro do heresiarca Marcião, cuja doutrina gnóstica distinguia o “deus” da lei judaica do “deus” do Novo Testamento. Ora, é evidente que, para os cristãos, que “veneram o Antigo Testamento como verdadeira Palavra de Deus” (Catecismo da Igreja Católica, n. 123), não há diferença alguma entre o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó e o Deus que se revelou em Jesus Cristo. “Por isso a sã doutrina cristã sempre recusou qualquer forma emergente de marcionismo, que tende de diversos modos a contrapor entre si o Antigo e o Novo Testamento” (Papa Bento XVI, Exortação Apostólica Verbum Domini, n. 40).

Dies irae

Canta o hino:
Dies irae, dies illa / solvet saeclum in favílla, / teste David cum Sibýlla”;
Dia da ira, dia aquele / O mundo se dissolve em cinza, / Como foi atestado por Davi e pela Sibila”.
“Como foi atestado por Davi”, quer dizer, como foi confirmado pelo próprio Antigo Testamento; “e pela Sibila”, isto é, até mesmo as religiões pagãs reconheceram a existência deste “dia final”. Ninguém ignora a existência do fim dos tempos.

Quantus tremor est futúrus, / quando iudex est ventúrus / cuncta stricte discussúrus!
Quanto tremor acontecerá, / Quando o juiz vier / Para tudo julgar estritamente!”.
Narra o Evangelho que “os homens desmaiarão de medo e ansiedade, pelo que vai acontecer no universo” (Lc 21,26). Nestes primeiros versos, o Dies irae canta justamente este aspecto terrível do Juízo: o tremor das criaturas diante d'Aquele que é o Rei de todo o universo.

Tuba mirum

Na peça de Mozart, neste momento, o barítono (aquele com a voz mais grave) imita o som da trombeta, da qual fala São Paulo a Tessalônica: “Quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor descerá do céu...” (1Ts 4,16):
Tuba mirum spargens sonum / per sepúlcra regiónum, / coget omnes ante thronum”;
A trombeta espalhando o som admirável / Pela região dos sepulcros, / Leva todos diante do trono”.

Segue-se, então, a ressurreição dos mortos (ibid.):
Mors stupébit et natúra, / cum resúrget creatúra / iudicánti responsúra”;
A morte e a natureza se espantarão, / Quando a criatura ressurgir / Respondendo ao que irá julgar”.
Aqui, Tomás de Celano utiliza-se de uma prosopopeia: ele dá características humanas à morte e à natureza, que “se espantarão” diante da ressurreição dos mortos, diante da glorificação daquela matéria sobre a qual dominava a concupiscência. Iudicánti responsúra: os mortos se levantarão à simples voz do Juiz, para respondê-Lo prontamente.

Liber scriptus

Liber scriptus proferétur, / in quo totum continétur / unde mundus iudicétur”;
Será trazido um livro escrito, / No qual tudo está contido / A partir do qual o mundo será julgado”.
Trata-se, por assim dizer, da memória de Deus, o “livro da vida” do qual fala o livro do Apocalipse: “Os mortos foram julgados conforme o que estava escrito nesse livro, segundo as suas obras” (Ap 20,12). Este é o acusador diante do tribunal de Deus: os nossos atos e omissões.

Iudex ergo cum sedébit, / quicquid latet apparébit; / nil inúltum remanébit”;
Quando o juiz então se sentar, / Tudo o que está escondido aparecerá; / Nada permanecerá sem vingança”.
Quando Deus se sentar em Seu trono, tudo aquilo que permanecia oculto será revelado. Tudo aquilo que de bom e ruim os homens realizaram será colocado às claras. Para os eleitos, isto será motivo de grande júbilo; para os condenados, porém, de grande vergonha.

Deus fará justiça: a maldade e o pecado serão, enfim, derrotados. Isto deve ser motivo de grande consolação. O importante é que, na hora de condenação, quando a morte e o mal forem precipitados no inferno, nós não estejamos apegados a eles e venhamos também a ser lançados no fogo. Deus ama o homem, e é precisamente por amá-lo que virá com uma espada para separá-lo pecado, a fim de que ele possa entrar no Céu.

Quid sum miser tunc dictúrus, / quem patrónum rogatúrus, / cum vix iustus sit secúrus?”;
O que então eu miserável direi, / A quem clamarei como advogado, / Quando nem mesmo o justo estiver seguro?”.
Naquele dia, “nem mesmo o justo” estará seguro. Isto não significa que quem já foi salvo, após o juízo particular, corre o risco de condenar-se. Este verso quer mostrar, antes, a condição miserável de todas as criaturas diante da majestade divina, a pequenez de todos os homens - até os mais santos - na presença de Deus.


Rex treméndae

Surge, então, o advogado da humanidade, o “mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo” (1Tm 2,5):
Rex treméndae maiestátis, / qui salvándos salvas gratis, / salva me, fons pietátis”;
Rei de tremenda majestade, / Que salvas de graça os que devem ser salvos / Salva-me, ó fonte de piedade”.
Mozart coloca, aqui, toda a potência do coro, para cantar a majestade de Deus. É uma entrada triunfal e majestosa para um “Rei de tremenda majestade”. Contrastando com esta ostentação surge o último verso: “Salve-me, ó fonte de piedade”. A voz humilde e contrita deste verso expõe a confiança que perpassa toda a letra e composição deste hino. O mesmo que virá julgar todos os povos é o advogado, aquele que os defenderá.

Recordáre

Brota, então, do coração humano, uma profunda esperança:
Recordáre, Iesu pie, / quod sum causa tuae viae, / ne me perdas illa die”;
Recorda-te, ó Jesus piedoso / Que sou a causa de teu peregrinar, / Não me percais naquele dia”.

Quaerens me sedísti lassus, / redemísti crucem passus; / tantus labor non sit cassus”;
Ao me buscar sentaste cansado, / Redimiste sofrendo a cruz; / Tanto sofrimento não seja em vão”.
Para implorar a misericórdia de Jesus, o réu recorre não aos méritos que ele porventura possua, mas aos méritos de Cristo Crucificado; ele pede que todo o Seu suplício neste mundo não seja desperdiçado.

Iuste iudex ultiónis, / donum fac remissiónis / ante diem ratiónis”;
Justo juiz de vingança, / Concede o dom da remissão / Antes do dia da prestação de contas”.
Agora, a invocação tem como finalidade pedir a remissão dos pecados antes do dia do Juízo e, em última instância, antes da própria morte, já que, como ensina o Catecismo, “a morte é o fim (...) do tempo de graça e de misericórdia que Deus lhe oferece (...) para decidir seu destino último” (Catecismo da Igreja Católica, n. 1013).

Ingemísco

O pedido é feito com confiança na misericórdia de Deus, à qual o homem entrega toda a sua miséria e indignidade:
Ingemísco tamquam reus, / culpa rubet vultus meus; / supplicánti parce, Deus”;
Eu gemo como um réu, / A culpa torna meu rosto vermelho; / Ó Deus, tem piedade do que suplica”.

Qui Mariam absolvisti / et latrónem exaudísti, / mihi quoque spem dedísti”;
Tu que absolveste Maria, / E ouviste o ladrão, / Também a mim deste esperança”.
A reforma litúrgica trocou o verso “Qui Mariam absolvisti”por “Peccatrícem qui solvísti”(“Tu que absolveste a pecadora”) por uma questão simplesmente exegética, já que os estudiosos contemporâneos tendem a não identificar Maria Madalena como a mulher adúltera do Evangelho (cf. Jo 8,1-11).

O pecador lembra ao Senhor a sua piedade para com essa mulher e para com o bom ladrão, tendo esperança que também ele seja absolvido, ainda que sua prece seja indigna:
Preces meae non sunt dignae, / sed tu, bonus, fac benígne / ne perénni cremer igne.
Inter oves locum praesta / et ab haedis me sequéstra, / státuens in parte dextra”;
Minhas preces não são dignas, / Mas tu, ó bondoso, age benignamente / Que eu não queime no fogo eterno.
Concede um lugar entre as ovelhas / Rapta-me do inferno, / Colocando-me do lado direito”.

Confutátis

Os versos finais do hino Dies irae retratam, por fim, a sentença do Juízo Final:
Confutátis maledíctis, / flammis ácribus addíctis, / voca me cum benedíctis”;
Refutados os malditos, / Entregues às chamas ardentes, / Chama-me com os benditos”.
As palavras duras da letra só não são mais severas que as indicações do próprio Jesus: “Ele se voltará (...) para os da sua esquerda e lhes dirá: ‘Retirai-vos de mim, malditos, ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos’” (Mt 25,41). Quem acoima este belo hino medieval de “quadrado” ou supersticioso, na verdade, perdeu de vista o próprio fio pelo qual Cristo conduz toda a pregação da boa nova: a salvação daqueles que fazem a Sua vontade e o eterno castigo daqueles que a rejeitam obstinadamente.

Oro supplex et acclínis, / cor contrítum quasi cinis, / gere curam mei finis”;
Suplicando e inclinado eu peço, / Com o coração contrito como cinza, / Cuida de meu fim”.
O réu pede a Jesus que cuide do seu destino e fá-lo “com o coração contrito como cinza”, isto é, com o coração macerado, à semelhança de um vaso quebrado e pisoteado a ponto de tornar-se pó. Eis a bela figura que expressa a condição com a qual o homem deve apresentar-se diante de Deus.

Lacrimósa

Enfim, chega-se à conclusão do canto, que finda com um lamento, com um luto:
Lacrimósa dies illa, / qua resúrget ex favílla / iudicándus homo reus. / Huic ergo parce, Deus.
Pie Iesu Domine, / dona eis requiem. Amen”.
Lacrimoso aquele dia, / No qual ressurgirá das cinzas / O homem réu a ser julgado. / Tem dele piedade, ó Deus, / Piedoso Senhor Jesus, / Dá-lhes o repouso. Amém”.

Cantando este belo hino - acompanhado pela composição majestosa de Mozart -, o homem é colocado diante do Deus justo e misericordioso, tão bem representado no ícone do site Padre Paulo Ricardo. “Reúnem-se num só rosto, de forma paradoxal, as duas formas de Deus nos amar: a compaixão e a ira”. “A misericórdia, porém, triunfa do juízo” (Tg 2,13).



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