Homilia do Domingo de Ramos na
Paixão do Senhor
É
ouvindo o brado que recebemos o Espírito
Caríssimos irmãos
Chegados à Semana
Maior, entremos verdadeiramente na paixão, morte e ressurreição do Senhor
Jesus, verdadeira substância da Páscoa. É por excelência tempo de graça, uma
vez que a Liturgia nos oferece palavras e ritos essenciais, para que realmente
nos transformemos com eles. Trata-se de “passar” com Cristo para o Pai,
Trata-se dum caminho a percorrer. Caminho estreito, como nos foi advertido pelo
Senhor, que queremos acompanhar sobremaneira nestes dias: «Como é estreita a
porta e quão apertado é o caminho que conduz à vida, e como são poucos os que o
encontram!» (Mt 7,14).
É certo que hoje participamos no júbilo daquele dia em Jerusalém, quando Jesus foi aclamado com ramos e hosanas. Como os jovens de então, também os de hoje O aclamarão especialmente. Mas ai de nós se nos ficamos por aí, nessa alegria imediata, que geralmente dura pouco.
É certo que hoje participamos no júbilo daquele dia em Jerusalém, quando Jesus foi aclamado com ramos e hosanas. Como os jovens de então, também os de hoje O aclamarão especialmente. Mas ai de nós se nos ficamos por aí, nessa alegria imediata, que geralmente dura pouco.
Jesus dissera e
fizera coisas admiráveis, e muitos esperavam que o antigo reino de David
regressasse com ele, porventura mais glorioso ainda. Seria assim e seria fácil.
Rapidamente se desenganaram, quando tudo refluiu para a verdade autêntica de
Jesus, como a apresentaria dias depois diante de Pilatos e entre apupos da
multidão. Nem sabemos quantos dos que lhe levantaram ramos se juntaram depois
aos que lhe levantaram a cruz… Ilusões geram desilusões, pseudo-conversões dão
grandes abandonos.
Caríssimos irmãos: A Páscoa de Jesus ou se leva a sério ou redunda em nada, no que a nós respeita. Jesus nunca recuou um passo no caminho que abriu. Nunca aligeirou a proposta de seguimento total. Aproximou-se de todos, em especial dos que ninguém queria, atacados pelas lepras do corpo ou da vida. Mas para os tirar daí, com conversões radicais ao Evangelho que propunha.
Caríssimos irmãos: A Páscoa de Jesus ou se leva a sério ou redunda em nada, no que a nós respeita. Jesus nunca recuou um passo no caminho que abriu. Nunca aligeirou a proposta de seguimento total. Aproximou-se de todos, em especial dos que ninguém queria, atacados pelas lepras do corpo ou da vida. Mas para os tirar daí, com conversões radicais ao Evangelho que propunha.
Assim conosco,
sempre e também agora. Especialmente quando uma certa habituação ao calendário
“cristão” lhe reduz o significado e o dilui em antigos ou requentados
paganismos. Quando tal acontece, e se usa e abusa do nome de Cristo para lhe
anular a cruz, nem acontece Páscoa nem se mudam as vidas. Usando um vulgarismo,
ficamos “cada vez mais na mesma”, presos a equinócios primaveris, distrações
variadas e especialidades da época. Mesmo quando sejam coisas relativamente
boas, são absolutamente insuficientes, para nós e de nós para os outros.
Podemos chamar-lhes sonolência espiritual. Também atingiu os próprios discípulos, mesmo os que tinham estado mais perto de Jesus, do que fizera e dissera. Na hora definitiva, pediu-lhes companhia e puseram-se a dormir. Lembremos o trecho, pois é também de nós que se trata: Jesus chega ao Getsêmani e pede a Pedro, Tiago e João para ficaram ali e atentos. - O que sucedeu depois? «Foi ter com os discípulos e encontrou-os a dormir…»
Podemos chamar-lhes sonolência espiritual. Também atingiu os próprios discípulos, mesmo os que tinham estado mais perto de Jesus, do que fizera e dissera. Na hora definitiva, pediu-lhes companhia e puseram-se a dormir. Lembremos o trecho, pois é também de nós que se trata: Jesus chega ao Getsêmani e pede a Pedro, Tiago e João para ficaram ali e atentos. - O que sucedeu depois? «Foi ter com os discípulos e encontrou-os a dormir…»
O que sucedera
entretanto? Precisamente o diálogo essencial de Jesus com o Pai, o âmago da
oração cristã propriamente dita, como nos manda rezar no Pai Nosso: «Seja feita
a vossa vontade assim na terra como no céu». Recordemos o trecho:
«Adiantando-se um pouco, caiu por terra e orou para que, se fosse possível, se
afastasse dele aquela hora: Jesus dizia: “Abá, Pai, tudo Te é possível: afasta
de mim este cálice. Contudo, não se faça o que Eu quero, mas o que Tu queres”».
Caríssimos irmãos: Quanto rezarmos assim, em cada momento e circunstância,
passamos com Jesus para o Pai e temos Páscoa. Quando o não fizermos, dormimos
como os discípulos, hoje como ontem.
Reparemos que Jesus diz “Abá”, expressão da sua língua materna, referida a um Pai de ternura e intimidade. Assim mesmo o sabia e sentia, o Jesus do Getsêmani, como em toda a sua vida terrena. Disse noutro passo evangélico: «Aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixou só…» (Jo 8,29). E ainda: «Eu e o Pai somos Um… Ficareis a compreender que o Pai está em mim e Eu no Pai» (Jo 10, 30.38). O segredo de Jesus, o que o leva por diante no seu propósito de salvar a humanidade que assume com a divindade que oferece, é a comunhão absoluta do cálice que o Pai lhe dá a beber, do propósito que traz para cumprir.
Reparemos que Jesus diz “Abá”, expressão da sua língua materna, referida a um Pai de ternura e intimidade. Assim mesmo o sabia e sentia, o Jesus do Getsêmani, como em toda a sua vida terrena. Disse noutro passo evangélico: «Aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixou só…» (Jo 8,29). E ainda: «Eu e o Pai somos Um… Ficareis a compreender que o Pai está em mim e Eu no Pai» (Jo 10, 30.38). O segredo de Jesus, o que o leva por diante no seu propósito de salvar a humanidade que assume com a divindade que oferece, é a comunhão absoluta do cálice que o Pai lhe dá a beber, do propósito que traz para cumprir.
Sim, vão tirar-lhe
brutalmente a vida. Mas, também sim, já a queria dar. Como dissera: «É por isto
que meu Pai me tem amor: por Eu oferecer a minha vida, para a retomar depois.
Ninguém ma tira, mas sou Eu que a ofereço livremente. Tenho poder de a oferecer
e poder de a retomar. Tal é o encargo que recebi de meu Pai» (Jo 10,17-19).
No horto Jesus pôde
estremecer por causa do sofrimento que aí vinha, mas nunca desistiu de
prosseguir até ao fim. É esta a qualidade da vida divina: Inteira partilha de
tudo o que se é, entre o Pai e o Filho no amor do Espírito. Foi esta a tradução
que teve na cruz: O Pai entrega o Filho a cada um de nós, o Filho retribui-se
por nós na entrega ao Pai. E o Espírito nos incluirá nesse lance de amor.
Caríssimos irmãos:
Não nos pareça estranho o que é afinal a verdadeira lei da vida, que apenas se
garante na entrega de si. E sempre com Cristo, em qualquer Getsêmani que nos
surja, digamos que sim e sigamos em frente. Acaba por ser mais uma ocasião de
crescimento, com Deus para os outros e com todos para Deus.
É esta a Páscoa que
Cristo nos oferece. Hoje mesmo, nas circunstâncias e vicissitudes da vida
própria e alheia, não nos alheemos de nós nem dos outros. Bem pelo contrário,
entreguemo-nos sempre, entreguemo-nos mais no sentido do bem. Não o
conseguiremos sozinhos. A segurança está em Deus, que nos sustenta. Cristo
dirige-nos as palavras que dirigiu a Simão (Pedro) e aos outros: «Simão, estás
a dormir? Não pudeste vigiar uma hora? Vigiai e orai, para não entrardes em
tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca».
Como estamos agora?
Podemos e devemos perguntar-nos ao iniciar a Semana Santa. “Santa” quer dizer
de Deus, preenchida de oração e atenção espiritual. Que nada nos distraia do
essencial, que é o seguimento de Cristo, da Ceia até ao Horto, do Horto até à
Cruz. Aí lhe ouviremos por fim o grande brado com que expirou, ou seja, deu o
Espírito. O brado que ressoa em todas as cruzes deste mundo e que teremos de
acolher, no realismo dos Gólgotas de ontem e de hoje. É ouvindo o brado que
recebemos o Espírito, para ressuscitar também.
Sé de Lisboa, 25 de março de 2018
Homilia na Missa Crismal
O ano da graça da parte do Senhor
«O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu
para anunciar a boa nova aos pobres. Ele me enviou a proclamar a redenção aos
cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar
o ano da graça da parte do Senhor».
Naquele sábado, como acabamos de ouvir, Jesus leu na
sinagoga de Nazaré o anúncio do “ano da graça”, o jubileu. Mas não o leu
apenas, declarou-o começado, realizando-o nele próprio e em seu redor: «Cumpriu-se
hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».
Era uma marcação antiga, o jubileu, que de cinquenta em
cinquenta anos deveria ser como um recomeço absoluto do Povo de Deus, fazendo
jus a tal nome. Povo reconciliado com o seu Deus e entre todos e cada um dos
seus membros, escravidões abolidas, terras restituídas, gente congraçada (cf.
Lv 25,8ss). Um mundo como Deus não deixava de o querer, onde todos tivessem
lugar primeiro, verdadeiramente irmãos.
Apesar de anunciado há tanto tempo, nunca acontecera
realmente. Agora Jesus proclamava-o como certo e a acontecer de súbito. Nele
próprio, com certeza, absolutamente de Deus e de Deus para todos. E o que fez a
partir de então, até à cruz que lhe levantaram em Jerusalém, foi conforme ao
anúncio. O jubileu concretizou-se por palavras de inteira justiça e gestos de
verdadeira paz. Quando o quiseram impedir e mesmo encerrar com a grande pedra
do sepulcro, ainda mais irradiou numa ressurreição que não deixa de alastrar –
e de que nós próprios seremos hoje o sinal.
Por isso e só por isso estamos aqui, preparando a Páscoa e
celebrando-a sempre, num tempo repleto, o ano da graça da parte do Senhor.
Dizendo tradicionalmente, no “ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de
2018”.
Caríssimos padres, caríssimos irmãos e irmãs: Lembrar as
palavras de Jesus na sinagoga de Nazaré da Galileia, lembrá-las em Missa
Crismal, para que o Espírito e os óleos sacramentais santifiquem muitas vidas,
tudo isto só pode incluir-nos ainda mais na realidade e missão de Jesus, por
isso mesmo o “Cristo” (ungido).
Tudo partirá de Deus, assim recomecemos com Ele, como Jesus
a partir do Pai. Não só um pouco melhor do que é costume, mas sim tudo melhor
porque é de Cristo. Não negamos, antes reconhecemos, quanto de bom há neste mundo,
que é constante criação divina. A humanidade não deixa de ser imagem de Deus,
mesmo quando Lhe perca ou diminua a semelhança. Nem temos, nós cristãos, o
exclusivo do bem, que felizmente se assinala em tantas pessoas de boa vontade.
O próprio Jesus o disse a um discípulo mais cioso, que se queixava porque
alguém fora do grupo praticava igualmente o bem. Advertiu-o o Mestre: «Não o
impeçais, pois quem não é contra nós é por nós» (Lc 9,50). É por nós – e
predisposto ao que Cristo traz como totalidade, primeira e última.
O ponto verdadeiramente cristão é retomar agora a perfeição
do princípio, outro modo de dizer a intenção divina que restaura e garante a
verdade das coisas. O pecado, original e originante, é, muito pelo contrário, o
afastamento da Fonte, que nos resseca depois. Esquecemos o princípio e
perdemos-lhe o fim, a finalidade e o sentido. Desvinculados de Deus,
perdemo-nos a nós e esquecemos os outros.
O Espírito restaura-nos em Cristo, na perfeita filiação e na
fraternidade autêntica. É este o ano da graça e o jubileu realizado. Onde a
vida é respeitada e nunca cerceada, quando nova e quando idosa, quando saudável
e quando frágil. Onde a justiça é prioritária, dando realmente a cada um o que
lhe é devido, em termos de habitação e trabalho, de educação e saúde. Onde quem
chega seja bem acolhido e integrado.
Usando a linguagem do Papa Francisco, teremos de passar do
pecado que nos isola à vinculação que nos refaz. Isto em relação a Deus, aos
outros e à criação inteira: «O grande risco do mundo atual, com a sua múltipla
e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do
coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais,
da consciência isolada». Efetivamente, as coisas são boas, mas não têm em si mesmas
nem a sua causa nem a sua finalidade. São ocasiões de fruição e comunhão, dando
graças a Deus e repartindo com todos. Se as retemos em nós, como se fossem
tudo, o resultado é triste, continua o Papa: «Quando a vida interior se fecha
nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os
pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu
amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem» (Evangelii Gaudium, n. 2).
Os outros e a criação inteira são o campo total do nosso
jubileu vinculativo. Para realizarmos aquela “ecologia integral” que a
encíclica Laudato si’ tanto urgiu.
Vinculados à vida, respeitando-a inteiramente da concepção à morte natural;
vinculados aos outros na dignidade efetivamente reconhecida; vinculados à
criação inteira, casa comum de todos. Acolhamos a advertência papal: «Quando,
na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião
humano, de uma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos -,
dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está
interligado. Se o ser humano se declara autónomo da realidade e se constitui
dominador absoluto, desmorona-se a própria base da sua existência…» (Laudato si’, n. 117).
Por isso o Papa Francisco insiste tanto na necessidade duma
vinculação que previna e ultrapasse qualquer deriva egoísta. Vinculação que
tenha como lugar original e pedagógico a família, para nascer, crescer e
aprender a conviver.
Devemos fazer deste ponto uma prioridade irrecusável na
pastoral da Igreja. O Papa está tão convencido desta prioridade de vincular as
famílias para vincular a sociedade que ainda este ano insistiu, falando ao
corpo diplomático acreditado no Vaticano, a 8 de janeiro: «… não se mantém de
pé uma casa construída sobre a areia de relacionamentos frágeis e volúveis, mas
é preciso a rocha, sobre a qual assentar bases sólidas. E a rocha é
precisamente aquela comunhão de amor, fiel e indissolúvel, que une o homem e a
mulher, comunhão essa que tem uma beleza austera, um caráter sacro e inviolável
e uma função natural na ordem social».
Caríssimos sacerdotes e pastores do Povo de Deus no
Patriarcado de Lisboa, com os nossos irmãos diáconos e todos os batizados: Os
compromissos sacerdotais renovados, os óleos sacramentais abençoados, tudo se
ordena ao ano da graça começado em Cristo e agora prosseguido, com o mesmo
Espírito. Continua a ser a recriação do mundo, o jubileu ansiado. Aprendamos a
conviver com Deus, com os outros, com a criação inteira, reforçando cada comunidade
familiar por ação da Igreja, família espiritual de todos.
O que implica duas atitudes básicas, pastoralmente falando:
Primeiro – e porque é a Palavra de Deus que nos suscita a fé, como lembramos e
cumprimos com a Constituição Sinodal de Lisboa em plena recepção – apresentemos
sempre e com toda a clareza o ensinamento de Cristo sobre o matrimónio (cf. Mt
19,1ss; Mc 10,1ss). Tal não diminui a atenção devida às situações de
fragilidade neste campo, mas acompanha-as em “discernimento dinâmico”, rumo à efetivação
dos ditames evangélicos. Ao mesmo tempo, é-nos pedido um reforçado empenho na
preparação e acompanhamento do matrimónio e das famílias.
Numa fórmula feliz e programática, o Papa cita a seguinte
proposição sinodal: «A principal contribuição para a pastoral familiar é
oferecida pela paróquia, que é uma família de famílias» (Amoris Laetitia, n. 202). Para insistir, mais à frente: «Tanto a
pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma
pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer
o amor quer a superar os momentos duros» (n. 211).
A celebração plena e coerente da Missa Crismal há de
levar-nos, no Espírito de Cristo, ao cumprimento do jubileu que o mundo espera,
do ano da graça da parte do Senhor, proclamado naquele sábado em Nazaré da
Galileia. Trata-se da vinculação geral, outro nome da aliança plena, nossa com
Deus, com tudo e com todos. Da família à comunidade cristã, da vida respeitada
e promovida no seu arco existencial completo à inclusão de cada um,
especialmente dos mais frágeis.
O prefácio da primeira Missa da Reconciliação proclama-o
excelentemente. Dando graças a Deus por sempre nos chamar a uma vida mais
feliz, continua assim: «Apesar de tantas vezes termos sido infiéis à vossa
aliança, não Vos afastais de nós; antes, por Jesus Cristo, Vosso Filho, Nosso
Senhor, estabelecestes entre Vós e a família humana um vínculo tão forte que
nada o poderá destruir». - Da parte de Deus, o vínculo está seguro. No Espírito
de Cristo, também o estará da nossa!
Sé de Lisboa, 29 de
março de 2018
Homilia na Missa Vespertina da Ceia do Senhor
«Compreendeis o que vos fiz?»
Acabamos de escutar o que demoraremos a entender. Parecendo
simples, ultrapassa completamente a nossa previsão – como ultrapassou a dos
discípulos na Última Ceia.
Jesus levanta-se da mesa. Tira o manto e toma uma toalha,
que põe à cintura… Já isto era surpreendente, sendo gesto de servo e servo
humílimo. Mais ainda o que fez a seguir, deitando água numa bacia e começando a
lavar os pés aos discípulos, enxugando-os coma toalha…
Foi normal a recusa de Pedro, ao chegar a sua vez: – Como
podia aceitar tal inversão de papéis e que o seu Senhor se fizesse seu servo?
Mais decisiva foi a resposta de Jesus: «Se não tos lavar, não terás parte
comigo!» Ainda hoje será difícil de entender a atitude de Jesus, mesmo que as
clivagens sociais não sejam tão profundas, legalmente falando. Ainda assim
estranharíamos que o principal do grupo nos aparecesse de súbito como o último
de todos e no último dos serviços.
No entanto, dois milénios cristãos já nos deviam ter
convencido. Todos quantos viveram no Espírito de Cristo repetiram-lhe o gesto
daquela Ceia que agora celebramos. Não só o repetiram, mas assim mesmo
demonstraram ser autenticamente seus discípulos. Quando Saulo se converteu em
Paulo, considerando como lixo tudo quanto fora antes, para se sujeitar a tantos
trabalhos para servir a muitos com o anúncio evangélico. Quando Francisco de
Assis deixou a vida abastada que levava, para servir a “Senhora Pobreza” e se
tornar no menor dos irmãos. Quando, mais tarde, João de Deus albergou no seu
hospital de Granada os pobres doentes que já albergara no seu coração. Quando,
bem perto de nós, Teresa de Calcutá se dedicou aos últimos dos últimos, como
eram os moribundos daquela cidade imensa…
Sim, já devíamos estar inteiramente convencidos. Coisa,
aliás, só possível se, como eles, nos deixarmos convencer inteiramente por
Cristo - pela sua verdade, que é outro nome da sua caridade.
Convenhamos que não é fácil. Desde que a humanidade se
conhece, sempre tendeu a olhar Deus como se olha a si própria. Em geral,
projeta a grandeza que não tem, mas gostaria de ter. Figura-se em grande, em
mil e uma representações que no essencial andam em torno do mesmo. Das ruínas
de antigas civilizações à moderna cinematografia, repetem-se figuras
fantásticas de poder e domínio.
Esta persistência tolda-nos o horizonte e deixa-nos pouco
disponíveis para a revelação divina propriamente dita. A história bíblica - de
Abraão a Moisés, de Moisés aos antigos reis e destes ao tempo de Jesus -
apresenta-nos uma tensão contínua entre a diferença absoluta de Deus e a
insistência do povo em apropriá-Lo ao seu desejo e figura.
Não admira que alguns considerassem blasfema a afirmação de
Jesus como “Filho de Deus”. – Como podia ser tão simples e tão próximo Aquele
em que projetavam os seus próprios fumos de grandeza?
Não admira que Pedro, e os outros certamente, não admitissem
que Aquele que já entreviam divino se apresentasse assim, não só como um deles,
mas como servo de todos…
Foi preciso que Jesus insistisse com Pedro: «Se não te lavar
os pés, não terás parte comigo». Ter parte é participar, partilhar a vida e o
futuro de alguém a quem se quer. Assim queriam Pedro e os outros, saídos das
suas terras para seguirem a Cristo. Mas foi-lhes preciso aprender o que era
realmente a vida de Cristo, como modo tão imprevisto de ser Deus Conosco. Esse
modo concretiza-se em humildade e serviço. Já uma inesquecível página bíblica
dissera que, quando o profeta Elias reencontrou a Deus no monte Horeb, tal sucedeu
em grande contraste com antigas teofanias. Nem na ventania impetuosa que fendia
as montanhas e quebrava os rochedos, nem no tremor de terra, nem num grande
fogo. Foi «no murmúrio de uma brisa suave» (1Rs 19,12).
É também assim que Deus está na nossa vida, humilde e quase
impercetível no seu poder criador, com que agora mesmo nos faz estar aqui.
Corremos o risco de não dar por isso, de não darmos por Ele, de não agradecer o
seu amor – e podemos até dizer o seu serviço. Em Cristo é assim mesmo que Se
apresenta: «Eu estou no meio de vós como aquele que serve» (Lc 22,27).
E com uma conclusão lógica e obrigatória: Se Deus é serviço,
com Ele aprendemos o que toda a nossa vida há de ser, como serviço também. A
única maneira de Lhe agradecer a vida que nos concede é reparti-la com os
outros. Por isso continua Cristo: «Compreendeis o que vos fiz? […] Se Eu, que
sou Mestre e Senhor, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos
outros. Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz, vós façais também».
Viver eucaristicamente é agradecer a Deus a vida que nos
concede e partilhá-la com os outros. Como Cristo nos ensinou a viver, do Pai
para os outros e com todos para o Pai, no movimento do Espírito.
Do modo mais concreto e simples, no dia-a-dia da celebração e
da caridade. Neste sentido, são muito claras as palavras do Papa Francisco,
ainda há pouco (Audiência Geral de 7 de março): «O significado desta Oração
[Eucarística] é que toda a assembleia dos fiéis se una com Cristo para
magnificar as grandes obras de Deus e para oferecer o sacrifício. E para nos
unir devemos compreender. Por isso, a Igreja quis celebrar a Missa na língua
que as pessoas entendem, a fim de que cada um possa unir-se a este louvor e a
esta grande oração juntamente com o sacerdote». Para sublinhar depois as três
atitudes decorrentes: «primeira, aprender a “dar graças, sempre e em todos os
lugares”, e não só em determinadas ocasiões, quando tudo corre bem; segunda,
fazer da nossa vida um dom de amor, livre e gratuito; terceira, fazer comunhão
concreta, na Igreja e com todos».
Concluamos serem verdadeiramente assim a Eucaristia de
Cristo, o sacerdócio comum e o ministerial que a celebram, o mandato recebido e
a cumprir.
Como está anunciado, dedicaremos o próximo ano pastoral à
recepção ativa do número 47 da Constituição Sinodal de Lisboa, para melhor
compreendermos e vivermos a liturgia como lugar de encontro com Deus e como
comunidade celebrante. Insistiremos numa «catequese mistagógica que introduza
toda a comunidade na vivência dos tempos litúrgicos e na compreensão dos seus
símbolos e ritos. […] As comunidades cristãs são chamadas a recuperar o sentido
profundo do Dia do Senhor, pela participação na Eucaristia e pela escuta da
Palavra e encontrando formas de viver a fraternidade e a alegria cristãs».
Começando agora o Tríduo Pascal, respondamos com mais
certeza à premente pergunta do Senhor: «- Compreendeis o que vos fiz?» Para
renovar em cada Eucaristia a disposição mais forte de agradecer e servir.
Sigamo-Lo agora no rito, para O imitarmos continuamente na vida.
Sé de Lisboa, 29 de
março de 2018
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
Ser da verdade, para ser de
verdade
«Disse-Lhe Pilatos: “Então, Tu és rei?” Jesus respondeu-lhe:
“É como dizes: sou rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho
da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz”».
Um diálogo tão rápido, como este entre Pilatos e Jesus,
caríssimos irmãos, é o segredo da nossa presença aqui, quase dois milénios
depois. Da nossa presença aqui, quando podemos celebrar em boa paz e bom espaço
a Paixão do Senhor.
Mas também – e com maior realismo ainda – a mesma celebração
noutros espaços por esse mundo além, entre guerras e destruições, imensas
tristezas e grandes abandonos. Tenhamos isto bem presente, e aos irmãos que aí
mesmo ouvem hoje a Paixão do Senhor e nela reveem as suas próprias vidas. Assim
também os nossos irmãos dos Lugares santificados pela presença terrena de
Cristo, a cuja manutenção se destina a coleta deste dia. Todos estamos e
queremos estar na verdade de Cristo, escutando a sua voz.
Expressão original e muito sua, que importa reter. É típica
do Quarto Evangelho, como no trecho que ouvimos. Jesus veio ao mundo «a fim de
dar testemunho da verdade». Modo de dizer que a verdade reside nele mesmo, como
se manifesta e afirma.
A verdade do império que Pilatos figurava impunha-se pela
força das armas. A verdade que Jesus testificava era a da sua própria pessoa e
da adesão ao que dizia e fazia. Precisamente a que nos reúne agora aqui, sem
qualquer coação e em plena consciência. Em plena consciência, ou seja, no que
mais intimamente sentimos e sabemos, e por isso mesmo somos: «Todo aquele que é
da verdade escuta a minha voz». Para o evangelista João, a verdade subsiste em
Jesus Cristo, no que diz e testemunha, tudo sendo expressão de Deus.
Aprofundemos um pouco mais estas palavras, pois traduzem a
substância da nossa fé. Aprofundemo-las com a mente, mas sobretudo com o
coração. Sintamo-las, para percebermos que Reino é o seu, como nos mantém
vitoriosamente consigo, como estamos agora e como estaremos sempre, aconteça o
que acontecer…
Noutro passo do mesmo Evangelho, Jesus compara-se a um
pastor cuja voz reconhecemos e assim nos chama e reúne em seu redor: «As minhas
ovelhas escutam a minha voz: Eu conheço-as e elas seguem-me. Dou-lhes a vida
eterna, e nem elas hão de perecer jamais, nem ninguém as arrancará da minha
mão. O que o meu Pai me deu vale mais que tudo e ninguém o pode arrancar da mão
do Pai. Eu e o Pai somos Um» (Jo 10,27-30).
Trecho de suma importância para percebermos o que se passa
conosco e há de passar com muitos mais, em termos de realeza de Cristo. Porque
escutamos a sua voz. Escutamo-la, de facto, pois nos ressoa diferente de todas
as outras, mais decisiva e profunda. Na recepção da Constituição Sinodal de
Lisboa, como estamos a fazer neste ano, insistimos na Palavra de Deus como
“lugar onde nasce a fé” (CSL, 38) – maneira de dizer com São Paulo que «a fé
surge da pregação, e a pregação surge pela palavra de Cristo» (Rm 10,17).
Ouvida em casa, quando tivemos a graça de nascer numa
família realmente cristã; ouvida na catequese e nas celebrações comunitárias;
ouvida de algum amigo que verdadeiramente o foi; lida nas Escrituras que as
primeiras gerações cristãs nos deixaram… A palavra de Cristo, e o próprio
Cristo como Palavra de Deus, inteiramente dita e feita, tomou-nos conta do
coração, esclareceu-nos a inteligência e determinou-nos a vontade. Somos seus,
inteiramente seus, definitivamente seus. E ninguém nos arranca de ao pé da sua
Cruz, onde divisamos todas as cruzes deste mundo, mas também o fulgor da sua
vitória sobre a morte e todo o tipo de morte.
Radica também aqui a liberdade cristã. Venha o que vier,
estamos seguros em Cristo, qual “mão” que o Pai nos estende. Escutamo-lo
atentamente, como seus discípulos. Aprendemos sobretudo que a liberdade
ganha-se com Deus, que é tudo, e não sozinhos, que seríamos nada.
A Palavra que Deus nos dirige em Cristo é tão perfeita
comunhão que até da morte faz vida. Como a sua Cruz, que tanto nos eleva para o
Pai como nos alarga a todos. Sendo isto mesmo a liberdade perfeita, sem
cativeiros de alma que nos detenham a entrega. Noutro passo do Quarto
Evangelho, diz-nos assim: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis
verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará
livres» (Jo 8,31-32).
O mundo em que vivemos está tão cheio de palavras e
contrapalavras, tão denso de figuras e contrafiguras, que dificilmente nos
agarra já, para além dalgum alvoroço imediato. No entanto, nós estamos hoje
aqui, como muitos por esse mundo além, celebrando a Paixão de Cristo,
transmitida por palavras antigas que não perderam vigor e figurada numa simples
Cruz, como a adoraremos de seguida. Como Ele próprio anunciara: «Quando
tiverdes erguido ao alto o Filho do Homem, então ficareis a saber que Eu sou»
(Jo 8,28). E ainda: «Eu, quando for erguido da terra, atrairei todos a mim» (Jo
12,32).
- Que verdade tão grande, esta que aqui nos certifica, de
corpo e alma rendidos ao mistério da Cruz do Senhor. Nela nos sentimos salvos,
porque nenhuma esperança e nenhum sofrimento ficaram de fora da Paixão de
Cristo. Tudo inteiramente conosco, tudo inteiramente com Deus, tudo
inteiramente salvo. Nele já e em nós em esperança, que é verdade garantida.
A concentração desta tarde na Cruz do Senhor não é obra nossa,
mas unicamente de Deus Pai que, pelo Espírito, nos fixa em Jesus. Como também
disse: «Ninguém pode vir a mim, se isso não lhe for concedido pelo Pai» (Jo
6,65). Reconheçamos agora e agradeçamos sempre o impulso divino que nos traz
aqui, junto de Cristo e da sua Cruz, trono do Reino e centro do mundo.
Para que também na Cruz de Cristo divisemos a cruz do mundo,
em tudo quanto nos faz sofrer – a nós e aos outros. Aí mesmo onde Cristo nos
espera, para ser reconhecido e servido. Realmente, se dentro em pouco O vamos
adorar aqui, é para depois continuarmos a adorá-lo e a servi-lo em quem sofra
neste mundo de todos os dias, locais e circunstâncias.
Por isso nos diz ainda São João, na sua primeira epístola:
«Não amemos com palavras nem com a boca, mas com obras e com verdade. Por isso
conheceremos que somos da verdade e, na sua presença, sentir-se-á tranquilo o
nosso coração» (1Jo 3,18-19).
A verdade é mais do que a simples adequação da mente ao
objeto. É objetivar na vida e na convivência atenta e solidária a religião da
Cruz que nos salvou. Para sermos da verdade e para de verdade o sermos sempre.
Sé de Lisboa, 30 de
março de 2018
Homilia na Vigília Pascal
Mortos para o pecado e vivos para
Deus
«Na morte que sofreu, Cristo morreu para o pecado de uma vez
para sempre; mas a sua vida é uma vida para Deus. Assim vós também
considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus, em Cristo Jesus».
Estas palavras que ouvimos a São Paulo, entre tantas outras
que preenchem a Vigília que celebramos, pedem-nos agora uma particular atenção.
Num momento em que a graça batismal retoma a sua fonte e o
seu ápice, importa considerar que significado tem em nós. Melhor dizendo, o
significado que o batismo há de ganhar em cada um de nós, como sinal vivo de
ressurreição para todos. Antes de mais, reparemos na própria vida de Cristo.
Nada o separou de Deus Pai, nada o distraiu dos outros, especialmente dos que
mais lhe urgiam atenção e serviço. Nisto mesmo demonstrou perfeita coincidência
com o Pai, dispensador da vida de cada um e que nada mais quer senão que nos
realizemos absolutamente todos. Como dissera a Nicodemos: «Tanto amou Deus o
mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que crê nele
não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16).
Cristo recuperou em si mesmo a nossa humanidade em Deus,
Fonte da Vida. Tão totalmente, que a própria morte se tornou vida. Vida pelo
modo como morreu, fazendo da própria morte vida também. Geralmente a morte
isola e destrói a comunhão com os outros. Muito pelo contrário, a morte de
Cristo foi comunhão total: Morre a perdoar aos inimigos, morre a partilhar o
seu Espírito e a sua Mãe. Morre nas mãos do Pai, que lhe sustentam a cruz.
Morre também às mãos dos homens, para lhes pagar em bem o mal que lhe fizeram.
E foi assim, transformado o abandono em comunhão, que venceu a morte, como O
celebramos agora, irrompendo como luz no negrume de todas as noites.
Caríssimos irmãos, o caminho está aberto. O caminho que
levou aquelas mulheres até ao sepulcro. Aí mesmo, onde a morte dera lugar à
vida. Para ouvirem, como nós também acabámos de ouvir: «Procurais a Jesus de
Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou: não está aqui».
Que será ressuscitar? Não o conseguimos abarcar totalmente
agora, presos que estamos em cada lugar e duração, que tanto nos constituem um
a um como nos podem isolar dos outros. E isto não se resolve apenas
quantitativamente. Assim como a vida eterna não significa o tempo alongado, mas
o tempo transcendido, ressuscitar não significará deixar de ser quem somos, mas
sermos nós próprios doutro modo – do modo de Cristo, como absoluta comunhão com
Deus, com todos e com tudo.
São Paulo disse, como ouvimos, que estaremos mortos para o
pecado e vivos para Deus, em Cristo Jesus. Recebendo o seu Espírito, recebemos
a sua caridade. Morrer para o pecado é morrer para a própria morte, que é o seu
amargo fruto. Morte da alma que se fecha em si própria e morte do corpo que é a
nossa comunicação assim desfeita. Muito pelo contrário, a caridade sempre
persiste, como o verdadeiro amor que nos eterniza nos outros – e no Deus de
todos.
Com Cristo e no Espírito de Cristo, tudo ressurge como vida
compartilhada, outro modo de dizer Céu, plena verdade do que Deus é em si
mesmo, do Pai e do Filho na unidade do Espírito. Sendo que o Filho é como que o
modelo da criação inteira e da nossa condição filial, frutos que somos da
benevolência divina.
É experiência certa e confirmada que todos os momentos de
verdadeira caridade assinalam a vida eterna. Não nos faltam testemunhos fortes
disto mesmo, como os que ouvimos a quem corresponde com generosidade às
necessidades materiais e espirituais dos outros, a quem parte e a quem fica,
unicamente determinado pelo bem a fazer.
A verdadeira prova da ressurreição de Cristo é a vida em
ressurreição de quantos, movidos pelo seu Espírito, vão vencendo a morte pela
prática do bem. Não têm pressa, senão para servir. Não têm medo, senão de ficar
aquém. Não querem vida, senão para a doar e sempre mais. Assim mesmo a garantem
além de si, assim mesmo a eternizam em Deus Amor.
Quem deu pela ressurreição de Cristo, naquela madrugada de
Jerusalém? Pilatos já nem se lembraria de mais um dos que tão facilmente
condenava ao suplício da cruz. Anás, Caifás, os outros que o condenaram também,
estariam até contentes por terem vencido alguma hesitação do procurador romano.
Tudo estaria resolvido e encerrado com aquela grande pedra do sepulcro… Dois
milénios transcorridos, todos esses passaram, como muitos outros que condenaram
inocentes para se guardarem apenas a si próprios, por segurança ou
conveniência.
Entretanto, aquelas mulheres deram por isso. Também os
discípulos acabaram por perceber. E assim começaram uma cadeia de vivências e
testemunhos que constituem a substância da Igreja e da nossa condição batismal.
Sim, a vida de Jesus venceu a morte. Sim, o seu Espírito reproduz em nós a
mesma vitória. Sim, o que celebramos nesta noite tornou-se a alvorada do mundo.
E de qual mundo, podemos perguntar? Deste nosso mundo, e
como cabe precisamente a cada um. Ouvimos a indicação do jovem de branco,
sentado no sepulcro vazio: «Ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que Ele vai
adiante de vós para a Galileia. Lá o vereis, como vos disse».
A Galileia era a terra deles, donde tinham partido. Aquela
terra bem concreta, com nomes de cidades, gentes e ofícios. A terra deles, como
a terra de cada um de nós, na vida de todos os dias. Onde também não faltam
nomes, pessoas e tarefas, tudo aí mesmo, como está e como requer presença,
atenção e cuidado. Aí mesmo nos espera o Ressuscitado. Aí mesmo O veremos e
testemunharemos, precisamente agora. Aí mesmo, onde houver vida a proteger, da
concepção à morte natural. Aí mesmo, onde houver pessoas a acompanhar, com
prioridade para os mais pobres, mais frágeis ou mais sós. Aí mesmo, onde tantos
nos esperam e o próprio Cristo nos aguarda.
Aí mesmo, em todo o tempo e circunstância que requerem
testemunhas autênticas da ressurreição de Cristo. Como seremos nós e tanto mais
quanto compartilharmos a sua caridade, o seu ser para os outros, maneira total
de permanecermos na Vida que vence a morte, a Vida que não tem fim, porque «o
amor jamais passará»! (1Cor 13,8).- Sim, caríssimos irmãos, também por nós, a
ressurreição de Cristo alegrará o mundo!
Sé de Lisboa, 31 de
março - 1 de abril de 2018
Homilia do Domingo de Páscoa
Se Cristo nos espera, porque
demoramos nós?
«Maria Madalena correu então e foi ter com Simão Pedro e com
o discípulo predileto de Jesus e disse-lhes. “Levaram o Senhor do sepulcro e
não sabemos onde O puseram.” Pedro partiu com o outro discípulo e foram ambos a
sepulcro. Corriam os dois juntos, mas o outro discípulo antecipou-se, correndo
mais depressa que Pedro…»
Detenhamo-nos um pouco nesta passagem do Evangelho que
ouvimos. Ou dizendo melhor, porventura, corramos também nós espiritualmente ao
sepulcro, como o fizeram fisicamente os discípulos, alertados por Maria
Madalena, que também correra a avisá-los.
É intencional a insistência do evangelista na pressa de
qualquer deles. Como é salutar o convite a imitá-los. Para encontramos o túmulo
vazio. Para sermos encontrados pelo Ressuscitado, como aconteceu com eles
depois.
Desde aquela madrugada é isto mesmo que nos define como
crentes, ou seja, a urgência em divisar a presença do Ressuscitado e sermos
encontrados por Ele. São Paulo definia-se nesses termos, ou na mesma corrida:
«… Assim posso conhecer a Cristo, na força da sua ressurreição e na comunhão
com os seus sofrimentos, conformando-me com ele na morte, para ver se atinjo a
ressurreição dos mortos. Não que já o tenha alcançado ou já seja perfeito; mas
corro, para ver se o alcanço, já que fui alcançado por Cristo Jesus» (Fl
3,10-13).
Urgência de alcançar a Cristo, que já nos alcançou a nós.
Ansiou pela chegada daquela hora absoluta em que nos encontrou no mais profundo
e dramático da condição humana, para nos salvar de vez. Acolhamos a exortação
de Paulo, ainda há pouco ouvida: «Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da
terra. Porque vós morrestes, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus».
É a afeição às coisas do alto, isso mesmo que só Cristo nos
conseguiu e oferece, que explica e incita a nossa corrida espiritual de todos
os dias, sempre e só ao seu encontro. E o túmulo vazio que os primeiros
discípulos encontraram foi apenas o sinal da presença total com que hoje
corresponde à nossa procura.
Cristão, podemos dizer, é quem anseia deparar com o
Ressuscitado em cada momento da sua vida – para vir a dizer, também com São
Paulo: «Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim» (Gl 2,20). Para
ressuscitar com o Ressuscitado. Esse mesmo que nos prometeu: «Eu estarei sempre
convosco até ao fim dos tempos» (Mt 28,20).
Certamente que o Tríduo Pascal, que Deus nos concedeu celebrar mais uma vez, tanto nos encheu a alma como agora nos reforça o propósito. Graças são encargos e a graça pascal redunda em procura e missão, sempre mais urgentes. Procura do Ressuscitado nos sinais mais garantidos da sua presença; missão de os repercutir na vida do mundo, do pequeno mundo de cada um ao grande mundo de nós todos.
Certamente que o Tríduo Pascal, que Deus nos concedeu celebrar mais uma vez, tanto nos encheu a alma como agora nos reforça o propósito. Graças são encargos e a graça pascal redunda em procura e missão, sempre mais urgentes. Procura do Ressuscitado nos sinais mais garantidos da sua presença; missão de os repercutir na vida do mundo, do pequeno mundo de cada um ao grande mundo de nós todos.
Lembremos brevemente os sinais garantidos da presença do
Ressuscitado, como a eles devemos acorrer todos os dias, com particular
referência ao Tempo Pascal que hoje começa. Falando da sua união conosco, Jesus
usou esta comparação: «Eu sou a videira; vós os ramos. Quem permanece em mim e
eu nele, esse dá muito fruto […] Se permanecerdes em mim e as minhas palavras
permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e assim vos acontecerá. Nisto se
manifesta a glória do meu Pai: em que deis muito fruto e vos comporteis como
meus discípulos» (Jo 15,5-8).
Caríssimos: Este é o primeiro sinal que devemos ativar todos
os dias: a Palavra de Cristo ouvida, meditada e assimilada. Quando tal
acontece, tudo muda de figura, passando a ser visto a partir de Deus, o único
que absolutamente conhece o coração do homem e o sentido das coisas. Palavra
ressuscitadora, uma vez que ressoa no silêncio que fizermos, como o anúncio da
Ressurreição de Cristo soou no túmulo vazio. Precisamente com esta condição
silenciosa e acolhedora, todos os dias exercitada e de cada vez correspondida
por Cristo Palavra de Deus.
Outro sinal – ou a decorrência do primeiro – é a Eucaristia
para que nos convida. É também no Evangelho de João que encontramos esta alusão
ao Ressuscitado, aparecendo aos discípulos que tinham voltado à sua faina de
pescadores - mas igualmente a cada um de nós, na faina de todos os dias:
«Disse-lhes Jesus: “Vinde almoçar.” E nenhum dos discípulos se atrevia a
perguntar-lhe: “Quem és tu?”, porque bem sabiam que era o Senhor. Jesus
aproximou-se, tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com o peixe» (Jo
21,12-13).
A alusão é certamente eucarística, pelo gesto de “tomar o
pão e dá-lo”. E traz outra referência importante, uma vez que o “peixe” era
para os primeiros cristãos um modo de designar o próprio Cristo. Significando
isto que num sacramento – na Eucaristia como em todos os outros - é da própria
pessoa de Cristo que se trata, requerendo tanta correspondência e coerência da
nossa parte, como da sua é a entrega.
Mais dois sinais da presença do Ressuscitado, a que devemos
acorrer, encontramo-los no Evangelho de Mateus, sobremaneira eclesial. Um é
mantermo-nos em oração, especialmente a comunitária: «Se dois de entre vós se
unirem, na Terra, para pedir qualquer coisa, hão de obtê-la de meu Pai que está
no Céu. Pois, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, eu estou no
meio deles» (Mt 18,19-20).
Também, e por excelência, a caridade ativa, que nos leve ao
encontro das necessidades dos outros, assim mesmo encontrando o Ressuscitado
que em cada um nos espera. Mencionando as fomes que saciamos, as sedes que
dessedentamos, os peregrinos que recolhemos, os nus que vestimos, os doentes e
presos que visitamos, responde peremptoriamente: «Sempre que fizeste isto a um
destes irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40).
- Assim sendo, caríssimos irmãos, que nos falta ou retarda,
para vivermos plenamente em Páscoa, procurando e testemunhando a presença do
Ressuscitado, como garantidamente se oferece? Para que também dos vazios tumulares
deste mundo a sua presença irrompa, tão forte e luminosa como na madrugada
daquele primeiro dia. - Se Cristo nos espera, porque demoramos nós?
Sé de Lisboa, 1 de
abril de 2018
+ Manuel,
Cardeal-Patriarca
Fonte: Patriarcado de Lisboa
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