São Pedro Crisólogo
Sermão 139
O
número prescrito não limita, mas amplia o perdão
Assim como o
ouro fica escondido na terra, assim também o sentido divino se oculta nas
palavras humanas. Por isso, sempre que nos é proclamada a palavra evangélica, a
mente deve colocar-se alerta e o espírito deve prestar atenção, para que o
entendimento possa penetrar o segredo da ciência celeste. Digamos por que o
Senhor começa hoje com estas palavras: Tenham
cuidado, se teu irmão te ofende, repreende-o, se ele se arrepende, perdoa-o.
Coragem, irmão! Deus te ordena: perdoa, perdoa os pecados; sê misericordioso
frente ao delito, perdoa as ofensas de que fostes objeto, não percas agora os
poderes divinos que tens; tudo o que tu não perdoares em outro, o negas a ti
mesmo.
Repreende-o como
juiz, perdoa-o como irmão, pois a caridade unida à liberdade e a liberdade
fundida com a caridade expele o terror e anima ao irmão. Quando o irmão te fere
está exaltado, quando comete um delito, está enfurecido, está fora de si,
perdeu todo sentimento de humanidade; quem não o socorre pela compaixão, quem
não lhe cura mediante a paciência, quem não lhe sara perdoando-o, não está são,
está mal, enfermo, não tem comiseração, demonstra ter perdido os sentimentos
humanitários. O irmão está furioso, atribui à enfermidade: tu, ajuda-o como a
um irmão; tudo o que ele faça em semelhante situação atribui à sua perturbação,
e o ocorrido não poderás imputá-lo ao irmão; e tu prudentemente lançarás a
culpa à enfermidade, e ao irmão, o perdão; desta forma, sua saúde redundará em
tua honra e o perdão te acarretará o prêmio.
Se teu irmão te ofende, repreende-o; se ele
se arrepende, perdoa-o. Perdoa ao que peca, perdoa ao que se arrepende,
para que, quando tu, por sua vez, pecares, o perdão te seja concedido como
compensação, não como doação. Sempre é bom o perdão, porém quando é devido,
torna-se duplamente doce. Aquele que, perdoando, já se assegurou o perdão antes
de pecar, evitou o castigo, tem inclinado ao juiz em seu favor, enganou o
juízo.
Se te ofende sete vezes em um dia, e sete
vezes volta a dizer-te: “sinto muito”, o perdoarás. Por que constrange com
a lei, reduz no número e coloca um limite de perdão Aquele que tanto nos
favorece pela misericórdia e que tão facilmente concede pela graça? E se em
lugar de sete te ofende oito vezes? Vai prevalecer o número sobre a graça? Pode
contrapor-se o cálculo à bondade? Pode uma só culpa condenar ao castigo a quem
sete vezes consecutivas obtém o perdão? De jeito nenhum. Se é proclamado feliz
aquele que perdoou sete vezes, muito mais feliz será aquele que perdoa setenta
vezes sete.
Esquecido deste
mandato, Pedro interroga ao Senhor, dizendo: Se meu irmão me ofende, quantas vezes devo perdoá-lo? Até sete vezes?
Jesus lhe responde: Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete.
Portanto, o número prescrito não limita, mas amplia o perdão, e ao que o
preceito coloca um limite, o assume ilimitadamente a livre vontade; de maneira
que se perdoares até o limite do que ordena o preceito, outro tanto te será
contado à obediência, te será contado ao prêmio. E se o número sete setuplicado
por dias, meses e anos implica a concessão da totalidade do perdão, calcule o
cristão e julgue o ouvinte que cotas não alcançará o número sete setuplicado
setenta vezes sete. Então realmente vai cessar toda forma contratual de débitos
e créditos; então se abolirá de verdade qualquer condição servil; então chegará
àquela liberdade sem fim; então será recuperado o campo eterno e imortal; então
chegará o verdadeiro perdão quando será inclusive abolida a própria necessidade
de pecar, quando, cancelada toda imundície, o mundo deixará de ser imundo,
quando com o retorno da vida deixará de existir a morte, quando estabelecido o
reinado de Cristo, o diabo perecerá definitivamente.
Orai, irmãos,
para que o Senhor aumente em nós a fé e possamos finalmente crer, ver e possuir
estes bens.
Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp. 213-214. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.
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