Entre os dias 05 e 08 de julho aconteceu em Londres a Conferência Internacional Sacra Liturgia. Geraram muitos comentários a declaração do Cardeal Sarah, Prefeito da Congregação para o Culto de Divino, sugerindo revalorizar a posição versus Deum para a celebração da Missa, algo perfeitamente possível na Forma Ordinária do Rito Romano (Missal de Paulo VI).
Vale a pena ler o discurso na íntegra, traduzido pela Associação Redemptionis Sacramentum:
SACRA LITURGIA UK 2016
Oratório
de São Filipe Néri (Oratório de Brompton),
Londres,
05 de julho de 2016
Em primeiro lugar quero expressar minha gratidão à Sua Eminência,
o Cardeal Vincent Nichols, por suas boas vindas à Arquidiocese de
Westminster e por suas gentis palavras de saudação. Assim também quero
agradecer à Sua Excelência, o Bispo Dominique Rey, Bispo de Fréjus-Toulon,
pelo seu convite para estar presente com vocês nesta terceira conferência
internacional "Sacra Liturgia", e para apresentar a vocês o discurso
de abertura nesta tarde. Parabenizo Vossa Excelência nesta iniciativa
internacional de promover o estudo da importância da formação e da celebração
litúrgicas na vida e na missão da Igreja.
Neste discurso quero colocar diante de vocês algumas considerações sobre
como a Igreja Ocidental pode caminhar rumo a uma implementação mais fiel
da Sacrosanctum Concilium.
Fazendo isto, proponho a seguinte pergunta: "O que os Padres do Concílio
Vaticano Segundo tinham em mente com a reforma litúrgica?" Assim, gostaria
de considerar como suas intenções foram implementadas seguindo o Concílio.
Enfim, gostaria de colocar algumas sugestões para a vida litúrgica da Igreja
hoje, de modo que nossa prática litúrgica possa mais fielmente refletir as
intenções dos Padres Conciliares.
É muito claro, penso, que a Igreja ensina que a liturgia católica é o
lugar singularmente privilegiado da ação salvadora de Cristo em nosso mundo
hoje, por meio da real participação em que recebemos sua graça e sua força que
são tão necessárias para nossa perseverança e crescimento na vida cristã. É o
lugar divinamente instituído onde vamos cumprir nosso dever de oferecer
sacrifício a Deus, de oferecer o Único Verdadeiro Sacrifício. É onde percebemos
nossa profunda necessidade de adorar o Deus todo-poderoso. A liturgia católica
não é uma reunião humana ordinária.
Quero sublinhar um fato muito importante aqui: Deus, não o homem, está no
centro da liturgia católica. Viemos adorá-lo. A liturgia não é sobre você e eu;
não é onde celebramos nossa própria identidade ou conquistas ou onde exaltamos
ou promovemos nossa própria cultura e costumes religiosos locais. A liturgia é
primeiro e acima de tudo sobre Deus e o que ele fez por nós. Em sua Divina
Providência, o Deus todo-poderoso fundou a Igreja e instituiu a Sagrada
Liturgia por meio da qual somos capazes de oferecer-lhe um culto verdadeiro de
acordo com a Nova Aliança estabelecida por Cristo. Fazendo isto, ao adentrar as
exigências dos ritos sagrados desenvolvidos na tradição da Igreja, recebemos
nossa verdadeira identidade e significado como filhos e filhas do Pai.
É essencial que compreendamos esta especificidade do culto católico, pois
em décadas recentes temos visto muitas celebrações litúrgicas onde o povo,
personalidades e conquistas humanas têm sido proeminentes demais, quase ao
ponto da exclusão de Deus. Como o Cardeal Ratzinger escreveu uma vez: "Se
a liturgia aparece antes de tudo como uma oficina (um workshop) para nossa
atividade, então aquilo que é enssencial foi esquecido: Deus. Pois a liturgia
não é sobre nós, mas sobre Deus. Esquecer Deus é o perigo mais iminentes de
nossa era" (Joseph Ratzinger, Theology of the Liturgy, Collected
Works vol. 11, Ignatius Press, San Francisco 2014, p. 593).
Precisamos ser completamente claros sobre a natureza do culto católico se
pretendemos ler corretamente e implementar fielmente a Constituição do Concílio
Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia.
Por vários anos antes do Concílio, em países de missão e também nos mais
desenvolvidos, houve muita discussão sobre a possibilidade de aumentar o uso
das línguas vernáculas na liturgia, principalmente para as leituras da Sagrada
Escritura, também para algumas das outras partes da primeira parte da Missa
(que agora chamamos de "Liturgia da Palavra") e para o canto
litúrgico. A Santa Sé já tinha dado várias permissões para o uso do vernáculo
na administração dos sacramentos. Este é o contexto em que os Padres do
Concílio falaram dos possíveis efeitos positivos em âmbito ecumênico ou
missionário da reforma litúrgica. É verdade que o vernáculo tem um lugar
positivo na liturgia. Os Padres estavam procurando isto, não autorizando a
protestantização da Sagrada Liturgia ou aceitando que ela fosse submetida a uma
falsa inculturação.
Eu sou africano. Deixem-me dizê-lo claramente: a liturgia não é o lugar
de promover minha cultura. Melhor, é o lugar onde minha cultura é batizada,
onde minha cultura é levada para o divino. Através da liturgia da Igreja (que
os missionários levaram por todo o mundo) Deus fala a nós, muda-nos e torna-nos
capazes de participar de sua vida divina. Quando alguém torna-se um cristão,
quando alguém entra em plena comunhão com a Igreja Católica, recebe algo mais,
algo que o transforma. Certamente, as culturas e outros cristãos trazem dons
consigo para a Igreja - a liturgia dos Ordinariatos dos Anglicanos agora em
plena comunhão com a Igreja é um belo exemplo disso. Mas eles trazem esses dons
com humildade, e a Igreja, em sua materna sabedoria, faz uso deles como ela
julgar apropriado.
Uma das mais claras e belas expressões das intenções dos Padres do
Concílio encontra-se no início do segundo capítulo da Constituição, que
considera o mistério da Santíssima Eucaristia. No artigo 48 lemos: "É por isso que a Igreja procura, solícita e
cuidadosa, que os cristãos não entrem neste mistério de fé como estranhos ou
espectadores mudos, mas participem na ação sagrada, consciente, ativa e
piedosamente, por meio duma boa compreensão dos ritos e orações; sejam
instruídos pela palavra de Deus; alimentem-se à mesa do Corpo do Senhor; dêem
graças a Deus; aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o
sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada; que, dia após dia,
por Cristo mediador, progridam na unidade com Deus e entre si, para que finalmente
Deus seja tudo em todos".
Meus irmãos e irmãs, é isto que os Padres Conciliares queriam. Sim,
certamente, eles discutiram e votaram formas específicas de alcançar suas
intenções. Mas sejamos bem claros: as reformas rituais propostas na
Constituição, tais como a restauração da oração dos fiéis na Missa (n. 53), a
extensão da concelebração (n. 57) ou algumas de suas regras tais como a
simplificação desejada pelos artigos 34 e 50, estão todas subordinadas às
intenções fundamentais dos Padres Conciliares que acabei de traçar. Elas são
meios para um fim, e é o fim que devemos alcançar.
Se pretendemos caminhar rumo a uma implementação mais autêntica da Sacrosanctum Concilium, são estas metas,
estes fins que devemos manter diante de nós em primeiro lugar e acima de tudo.
Pode ser que, se os estudarmos com olhos limpos e com o benefício da
experiências das últimas cinco décadas, vejamos algumas reformas rituais
específicas e certas regras litúrgicas numa luz diferente. Se, hoje, a fim de
"comunicar um vigor sempre crescente à vida cristã entre os fiéis" e
"ajudar a chamar a humanidade inteira para o seio da Igreja" algumas
dessas precisarem ser reconsideradas, peçamos ao Senhor que nos dê o amor, a
humildade e a sabedoria para assim o fazer.
Eu levanto esta possibilidade de olhar novamente para a Constituição e
para a reforma que seguiu sua promulgação porque não acho que podemos
honestamente ler nem mesmo o primeiro artigo da Sacrosanctum Concilium hoje e nos contentarmos por termos
alcançado suas metas.
Meus irmãos e irmãs, onde estão os fiéis de que falaram os Padres
Conciliares? Muitos dos fiéis hoje são infiéis: eles não vêm mais para a
liturgia. Para usar as palavras de São João Paulo II: muitos cristãos estão
vivendo num estado de "apostasia silenciosa"; eles "vivem como
se Deus não existisse" (Exortação Apostólica Ecclesia in Europa,
28/06/2003, 9).
Onde está a unidade que o Concílio esperou alcançar? Nós ainda não
chegamos lá. Temos feito real progresso em chamar a humanidade inteira para o
seio da Igreja? Eu acho que não. E já temos feito muita coisa para a liturgia!
Em meus 47 anos de vida como sacerdote e depois de mais de 36 anos de
ministério episcopal, posso atestar que muitas comunidades e indivíduos
católicos vivem e rezam a liturgia reformada seguindo o Concílio com fervor e
alegria, derivando dela vários, se não todos, dos bens que os Padres
Conciliares desejaram. Isto é um ótimo fruto do Concílio. Mas da minha
experiência eu também sei - agora também através do meu serviço como Prefeito
da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos - que há
muitas distorções da liturgia em toda a Igreja hoje, e que há muitas situações
que poderiam ser melhoradas para se alcançar as metas do Concílio. Antes de eu
refletir sobre possíveis melhoras, consideremos o que aconteceu em seguida à
promulgação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia.
Enquanto a obra oficial de reforma acontecia, algumas interpretações
erradas muito sérias da liturgia emergiram e se enraizaram em diferentes
lugares pelo mundo. Esses abusos da Sagrada Liturgia cresceram por causa de uma
compreensão errônea do Concílio, resultando em celebrações litúrgicas que eram
subjetivas e que eram mais focadas nos desejos da comunidade individual do que
no culto sacrifical do Deus todo-poderoso. Meu predecessor como Prefeito da
Congregação, o Cardeal Francis Arinze, uma vez chamou este tipo de coisa
de "a Missa do faça-você-mesmo". Até São João Paulo viu a necessidade
de escrever o seguinte em sua Carta Encíclica Ecclesia de
Eucharistia (17/04/2003):
"A este esforço de anúncio por
parte do Magistério correspondeu um crescimento interior da comunidade cristã.
Não há dúvida que a reforma litúrgica do Concílio trouxe grandes vantagens para
uma participação mais consciente, ativa e frutuosa dos fiéis no santo
sacrifício do altar. Mais ainda, em muitos lugares, é dedicado amplo espaço à
adoração do Santíssimo Sacramento, tornando-se fonte inesgotável de santidade.
A devota participação dos fiéis na procissão eucarística da solenidade do Corpo
e Sangue de Cristo é uma graça do Senhor que anualmente enche de alegria
quantos nela participam. E mais sinais positivos de fé e de amor eucarísticos
se poderiam mencionar.
A par destas luzes, não faltam
sombras, infelizmente. De fato, há lugares onde se verifica um abandono quase
completo do culto de adoração eucarística. Num contexto eclesial ou outro,
existem abusos que contribuem para obscurecer a reta fé e a doutrina católica
acerca deste admirável sacramento. Às vezes transparece uma compreensão muito
redutiva do mistério eucarístico. Despojado do seu valor sacrificial, é vivido
como se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao
redor da mesa. Além disso, a necessidade do sacerdócio ministerial, que assenta
na sucessão apostólica, fica às vezes obscurecida, e a sacramentalidade da
Eucaristia é reduzida à simples eficácia do anúncio. Aparecem depois, aqui e
além, iniciativas ecumênicas que, embora bem intencionadas, levam a práticas na
Eucaristia contrárias à disciplina que serve à Igreja para exprimir a sua fé.
Como não manifestar profunda mágoa por tudo isto? A Eucaristia é um dom
demasiado grande para suportar ambiguidades e reduções.
Espero que esta minha carta
encíclica possa contribuir eficazmente para dissipar as sombras de doutrinas e
práticas não aceitáveis, a fim de que a Eucaristia continue a resplandecer em
todo o fulgor do seu mistério" (n. 10).
Havia também uma realidade pastoral aqui: se por razões boas ou não
algumas pessoas poderiam ou iriam participar ou não dos ritos reformados. Elas
ficaram longe, ou só participaram da liturgia não-reformada onde podiam
encontrá-la, mesmo quando essa celebração não era autorizada. Desta forma a
liturgia tornou-se uma expressão de divisões dentro da Igreja, mais do que uma
de unidade católica. O Concílio não quis que a liturgia nos dividisse uns dos
outros! São João Paulo II trabalhou para curar esta divisão, ajudados pelo
Cardeal Ratzinger que, enquanto Bento XVI, buscou facilitar a reconciliação
interna necessária na Igreja estabelecendo em seu Motu Proprio Summorum
Pontificum (07/07/2007) que a forma mais antiga do Rito Romano está
disponível sem restrição para os indivíduos e grupos que quiserem aproveitar
suas riquezas. Na providência de Deus, agora é possível celebrar nossa unidade
católica respeitando e até alegrando-se numa legítima diversidade de prática
ritual.
Podemos ter construído uma muito nova e moderna liturgia em vernáculo,
mas se não lançamos os fundamentos corretos, se nossos seminaristas e clérigos
não estão "imbuídos plenamente do espírito e da virtude da liturgia"
como o Concílio pediu, então eles não podem formar o povo confiado a seu
cuidado. Precisamos levar as palavras do próprio Concílio muito a sério: seria
"fútil" esperar por uma renovação litúrgica sem uma completa formação
litúrgica. Sem esta formação essencial o clero poderia até prejudicar a fé das
pessoas no mistério Eucarístico.
Não quero que pensem que estou sendo excessivamente pessimista, e digo
novamente: há vários, vários fiéis leigos homens e mulheres, vários clérigos e
religiosos para os quais a liturgia, tal como reformada depois do Concílio, é
uma fonte de muito fruto apostólico e espiritual, pelo que agradeço a Deus
todo-poderoso. Mas, pela minha breve análise até aqui, penso que vocês concordarão
que podemos fazer melhor de modo que a Sagrada Liturgia realmente se torne a
fonte e o cume da vida e da missão da Igreja hoje, no início do século XXI,
como os Padres do Concílio tão seriamente desejaram.
À luz dos desejos fundamentais dos Padres Conciliares e das diferentes
situações temos visto surgir após o Concílio, gostaria de apresentar algumas
considerações práticas sobre como podemos implementar a Sacrosanctum Concilium mais fielmente hoje. Embora eu sirva
como Prefeito da Congregação para o Culto Divino, faço-o com toda a humildade
enquanto sacerdote e bispo, na esperança de que elas promovam reflexões e
estudos maduros e uma boa prática litúrgica na Igreja.
Não será uma surpresa se eu disser que em primeiro lugar devemos examinar
a qualidade e a profundidade de nossa formação litúrgica, de como imbuímos
nosso clero, religiosos e fiéis leigos com o espírito e a virtude da liturgia.
Muitas vezes assumimos que nossos candidatos para a ordenação ao sacerdócio ou
ao diaconato permanente "sabem" o bastante sobre a liturgia. Mas o
Concílio não estava insistindo sobre conhecimento aqui, embora, é claro, a
Constituição tenha enfatizado a importância dos estudos litúrgicos (cf. n.
15-17). Não, a formação litúrgica que é primária e essencial é uma como que
imersão na liturgia, no profundo mistério de Deus, nosso Pai amoroso. É uma
questão de viver a liturgia em todas as suas riquezas, de modo que, tendo
bebido profundamente de sua fonte, sempre tenhamos uma sede de seus deleites,
sua ordem e beleza, seu silêncio e contemplação, sua exultação e adoração, sua
habilidade de nos conectar intimamente com aquele que opera nos e através dos
ritos sagrados da Igreja.
Eis por que aqueles que estão "em formação" para o ministério
pastoral devem viver a liturgia tão plenamente possível em seus seminários e
casas de formação. Candidatos ao diaconato permanente deveriam também ter uma
imersão numa intensa vida litúrgica por um período prolongado. E, acrescento,
que a plena e rica celebração do uso mais antigo do Rito Romano, o usus antiquior, possa ser uma parte
importante da formação litúrgica para o clero, pois como podemos compreender ou
celebrar os ritos reformados com uma hermenêutica de continuidade se nunca
experimentamos a beleza da tradição litúrgica que os próprios Padres do Concílio
conheceram?
Se dermos atenção a isto, se nossos novos sacerdotes e diáconos realmente
tiverem sede da liturgia, eles mesmos serão capazes de formar aqueles que estão
confiados aos seus cuidados - mesmo que as circunstâncias e possibilidades
litúrgicas de sua missão eclesial sejam mais modestas que as do seminário ou de
uma catedral. Estou ciente de vários sacerdotes em tais circunstâncias que
formam seu povo no espírito e na virtude da liturgia, e cujas paróquias são
exemplos de grande beleza litúrgica. Devemos lembrar que a nobre simplicidade
não é a mesma coisa que um minimalismo redutivo ou um estilo vulgar e
negligente. Como nosso Santo Padre, o Papa Francisco, ensina em sua Exortação
Apostólica Evangelii Gaudium:
"A Igreja evangeliza e se evangeliza
com a beleza da liturgia, que é também celebração da atividade evangelizadora e
fonte dum renovado impulso para se dar" (n. 24).
Em segundo lugar, penso que é muito importante que sejamos claros sobre a
natureza da participação litúrgica, da participatio
actuosa para a qual chamou o Concílio. Houve muita confusão aqui em
décadas recentes. O artigo 48 da Constituição afirma: "a Igreja procura (...) que os cristãos não
entrem neste mistério de fé como estranhos ou espectadores mudos, mas
participem na ação sagrada, consciente, ativa e piedosamente, por meio duma boa
compreensão dos ritos e orações". O Concílio vê a participação como
primeiramente interna, surgindo "duma boa compreensão dos ritos e
orações". Os Padres chamaram os fiéis a cantar, a responder ao sacerdote,
a assumir ministérios litúrgicos que são corretamente seus, certamente, mas
insiste-se que tudo deve ser feito "consciente, ativa e
piedosamente".
Se entendemos a prioridade de internalizar nossa participação litúrgica
evitaremos o ativismo litúrgico perigoso e barulhento que tem sido tão
proeminente em décadas recentes. Não vamos para a liturgia para apresentar
algo, fazer coisas para os outros verem: nós vamos para estar conectados com a
ação de Cristo por meio de uma internalização dos ritos, orações, sinais e
símbolos litúrgicos externos. Pode ser que nós, cuja vocação é ministrar
liturgicamente, precisemos lembrar disto mais do que os outros! Mas também
precisamos formar os outros, particularmente nossas crianças e jovens, no
verdadeiro significado da participação litúrgica, no verdadeiro jeito de rezar
a liturgia.
Em terceiro lugar, tenho falado do fato de que algumas reformas
introduzidas no seguimento do Concílio podem ter sido feitas juntamente com o
espírito da época e que houve uma crescente quantidade de estudos críticos, por
filhos e filhas fiéis da Igreja, perguntando se o que de fato foi produzido
verdadeiramente implementou as metas da Constituição ou se na realidade foi
além. Esta discussão às vezes apareceu sob o título de uma "reforma da
reforma" e sei que o Pe. Thomas Kocik apresentou um estudo erudito sobre
esta questão na conferência Sacra Liturgia em Nova York há um ano atrás.
Não penso que possamos recusar a possibilidade ou o desejo de uma reforma
oficial da reforma litúrgica, porque seus proponentes fazem algumas importantes
reivindicações em sua tentativa de ser fiéis à insistência do Concílio, no
artigo 23 da Constituição, de "conservar a sã tradição e abrir ao mesmo
tempo o caminho a um progresso legítimo" e para que "não se
introduzam inovações, a não ser que uma utilidade autêntica e certa da Igreja o
exija, e com a preocupação de que as novas formas como que surjam a partir das
já existentes".
De fato, posso dizer que quando fui recebido em audiência pelo Santo
Padre em abril passado, o Papa Francisco pediu-me para estudar a questão de uma
reforma da reforma e de como enriquecer as duas formas do Rito Romano. Será um
trabalho delicado e peço a paciência e as orações de vocês. Mas se pretendemos
implementar mais fielmente a Sacrosanctum
Concilium, se pretendemos alcançar o que o Concílio desejou, esta é uma
questão séria que deve ser estudada cuidadosamente e sobre a qual se deve agir
com a necessária clareza e prudência.
Nós sacerdotes, nós bispos carregamos uma grande responsabilidade. Como
nosso bom exemplo edifica uma boa prática litúrgica; como nossa falta de zelo
ou erros fazem mal à Igreja e à sua Sagrada Liturgia!
Nós sacerdotes devemos ser adoradores em primeiro lugar e antes de tudo.
Nosso povo consegue ver a diferença entre um sacerdote que celebra com fé e
outro que celebra com pressa, frequentemente olhando para o relógio, quase como
que a dizer que quer voltar para a televisão logo que possível! Padres, não
podemos fazer nada mais importante do que celebrar os sagrados mistérios:
guardemo-nos da tentação da preguiça litúrgica, porque esta é uma tentação do
diabo.
Devemos lembrar que não somos os autores da liturgia, somos seus humildes
ministros, sujeitos à sua disciplina e suas leis. Também somos responsáveis por
formar aqueles que nos assistem em ministérios litúrgicos tanto no espírito
como na virtude da liturgia e também em suas regras. Algumas vezes tenho visto
sacerdotes ficarem de lado para deixar ministros extraordinários distribuírem a
Sagrada Comunhão: isto está errado, é uma negação do ministério sacerdotal bem
como uma clericalização dos leigos. Quando isso acontece é um sinal de que a
formação aconteceu de forma muito errada e que precisa ser corrigida.
Também tenho visto sacerdotes, e bispos, paramentados para celebrar a
Santa Missa, pegarem telefones e câmeras e usá-los na Sagrada Liturgia. Esta é
uma prova terrível daquilo que eles entendem que estão fazendo quando colocam
as vestes litúrgicas, que nos vestem como um alter Christus - e muito mais, como ipse Christus, Cristo mesmo. Fazer isto é um sacrilégio. Nenhum
bispo, presbítero ou diácono vestido para o ministério litúrgico ou presente no
santuário deveria tirar fotogafias, mesmo em grandes Missas concelebradas. Que
os sacerdotes frequentemente façam isso em tais Missas, ou que conversem entre
si e se sentem de forma casual, é um sinal, penso eu, de que precisamos
repensar a conveniência delas, especialmente se levam os sacerdotes a este tipo
de comportamento escandaloso que é tão indigno do mistério sendo celebrado, ou
se o mero tamanho dessas concelebrações leva ao risco da profanação da Santa
Eucaristia.
Quero fazer um apelo a todos os sacerdotes. Vocês podem ter lido meu
artigo em L'Osservatore Romano há
um ano atrás (12/06/2015) ou minha entrevista com o jornal Famille Chrétienne em maio deste
ano. Em ambas as ocasiões eu disse que creio ser muito importante que
retornemos o quanto antes possível para uma comum orientação, dos sacerdotes e
fiéis voltados juntos na mesma direção - para o oriente ou pelo menos para a
abside - para o Senhor que vem, naquelas partes dos ritos litúrgicos em que
estamos nos dirigindo a Deus. Esta prática é permitida pela legislação
litúrgica corrente. É perfeitamente legítima no rito moderno. De fato, penso
ser isto um passo muito importante para assegurar que em nossas celebrações o
Senhor esteja verdadeiramente no centro.
E assim, queridos padres, peço a vocês que implementem esta prática onde
for possível, com prudência e com a necessária catequese, certamente, mas
também com a confiança de um pastor de que isto é algo bom para a Igreja, algo
bom para o nosso povo. O próprio juízo pastoral de vocês determinará como e
quando isto será possível, mas talvez iniciar no primeiro domingo do Advento deste
ano, quando esperamos "o Senhor que virá" e "que não
tardará" (cf. Intróito, Missa da Quarta-feira da Primeira Semana do
Advento) possa ser um bom tempo. Caros padres, devemos ouvir novamente o
lamento de Deus proclamado pelo profeto Jeremias: "eles voltaram suas
costas para mim" (2,27). Voltemo-nos novamente para o Senhor!
Também gostaria de fazer um apelo aos meus irmãos bispos: por favor,
conduzam seus sacerdotes e seu povo rumo ao Senhor desta forma, particularmente
em grande celebrações em suas dioceses e na catedral. Por favor, formem seus
seminaristas na realidade de que não somos chamados para o sacerdócio para
estarmos nós mesmos no centro do culto litúrgico, mas para conduzir os fiéis
até Cristo, como companheiros de adoração. Por favor, facilitem esta simples e
profunda reforma em suas dioceses, suas catedrais, suas paróquias e seus
seminários.
Nós bispos temos uma grande responsabilidade, e um dia teremos que
responder ao Senhor por nossa administração. Não somos os donos de nada! Como
São Paulo ensina, somos meramente "os servos de Cristo e os
administradores dos mistérios de Deus" (1Cor 4,1). Somos responsáveis por
assegurar que as realidades sagradas da liturgia sejam respeitadas em nossas
dioceses e que nossos sacerdotes e diáconos não observem apenas as leis
litúrgicas, mas conheçam o espírito e a virtude da liturgia, de onde elas
emergem. Fui muito estimulado a ler a apresentação sobre "O Bispo:
Governador, Promotor e Guardião da Vida Litúrgica da Diocese", feita pelo
Arcebispo Alexander Sample de Portland, Oregon, Estados Unidos da América, para
a conferência Sacra Liturgia de 2013, e fraternalmente estimulo meus irmãos
bispos a estudarem suas considerações cuidadosamente.
Neste ponto, repito o que eu disse noutra ocasião, que o Papa Francisco
pediu-me para continuar a obra litúrgica iniciada pelo Papa Bento (cf. Mensagem
para o Sacra Liturgia USA 2015, Nova York). Só porque temos um novo Papa não
significa que a visão de seu predecessor agora é inválida. Pelo contrário, como
sabemos, nosso Santo Padre, o Papa Francisco, tem o maior respeito pela visão
litúrgica e pelas medidas que o Papa Bento implementou em total fidelidade às
intenções e metas dos Padres Conciliares.
Antes de concluir, permitam-me por favor mencionar algumas outras formas
que também podem contribuir para uma implementação mais fiel
da Sacrosanctum Concilium. Uma delas é que devemos cantar a liturgia,
devemos cantar os textos litúrgicos, respeitando as tradições litúrgicas da
Igreja e regozijando no tesouro da música sacra que é nosso, mais especialmente
aquela música própria do Rito Romano, o canto gregoriano. Devemos cantar a
música litúrgica sagrada, não meramente música religiosa, ou pior, canções
profanas.
Devemos fazer o justo equilíbrio entre as línguas vernáculas e o uso do
latim na liturgia. O Concílio nunca quis que o Rito Romano fosse exclusivamente
celebrado em vernáculo. Mas quis permitir um aumento do seu uso,
particularmente para as leituras. Hoje seria possível, especialmente com os
modernos meios de impressão, facilitar a compreensão de todos quando o latim
for usado, talvez na Liturgia Eucarística, e isto é particularmente adequado
para reuniões internacionais onde o vernáculo local não é compreendido por
muitos. E naturalmente, quando o vernáculo for usado, ele deve ser uma tradução
fiel do original latino, como recentemente afirmou para mim o Papa Francisco.
Robert
Cardeal SARAH
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