A misericórdia nos sermões de Santo Antônio
Frei Clarêncio Neotti
Tema sempre presente
O tema da
misericórdia está muito presente nos Sermões de Santo Antônio. Tanto a
misericórdia de Deus para com as criaturas, quanto a misericórdia do homem para
com seus semelhantes. De modo acentuado, a misericórdia de Jesus Salvador e de
sua santa Mãe Maria, a rainha da misericórdia. Tanto a misericórdia no
singular, como virtude necessária, quanto as misericórdias no plural, visíveis
nas boas ações de ajuda, especialmente nas chamadas ‘obras de misericórdia’.
Tanto a misericórdia como fonte de outras boas qualidades, quanto misericórdia
como consequência de atitudes fortes como o perdão, a compaixão e a
obrigatoriedade de reparar maldades cometidas.
Que é misericórdia?
Ao menos duas
vezes Santo Antônio define o que seja a misericórdia. No sermão do quarto
domingo depois de Pentecostes, escreve: “Misericordioso é aquele que tem
compaixão da miséria alheia”. Santo Antônio usa propositadamente a palavra
‘miséria’ em contraposição à ‘misericórdia’, coisa que já fizera Santo
Agostinho, seu mestre, no livro A Cidade de Deus, 9, 5: “O campo da
misericórdia é tão grande quanto o da miséria humana; por isso a misericórdia é
a compaixão pela miséria alheia”. Nas Confissões, várias vezes, Santo Agostinho
aproxima as duas palavras. No sermão para o 16º domingo depois de Pentecostes,
Santo Antônio cunha esta belíssima frase: “Ó Senhor, se me retiras a tua
misericórdia, caio na miséria eterna”.
A segunda vez
que Santo Antônio define a misericórdia encontro-a no sermão para o 22º domingo
depois de Pentecostes. Santo Antônio comenta a parábola do devedor cruel (Mt
18,21-30), contada por Jesus, quando Pedro lhe perguntou quantas vezes deveria
perdoar ao irmão pecador. Vamos ao texto: “A misericórdia do Senhor purifica a
alma dos vícios, enche-a da riqueza dos carismas, cumula-a com as delícias
celestiais. A primeira mortifica o coração contrito. A segunda suaviza-o para o
amor. A terceira com a esperança dos bens supernos, inunda o coração com uma
espécie de celeste orvalho. E isto é óbvio pela tríplice interpretação da
palavra misericórdia. De fato, misericórdia quer dizer o que dá o coração
miserável e isto convém à primeira misericórdia. Igualmente misericórdia
significa aquele que depõe o rigor do coração e isto convém à segunda. Em
terceiro lugar, misericórdia traduz-se por uma espécie de suavidade admirável
que inunda o coração e isto convém à terceira. Compadecido, logo, com a
tríplice misericórdia daquele servo, deixou-o ir livre e perdoou-lhe a dívida”.
O latim medieval
de Santo Antônio não é fácil de traduzir. Além do mais, suas palavras muitas
vezes têm sentido subliminar. Vou tentar dizer o texto acima com palavras
minhas: Jesus se compadeceu do empregado, perdoou-lhe a dívida e deixou-o ir em
paz. Jesus agiu assim, porque era Deus misericordioso. A misericórdia de Deus
age de três maneiras: purifica o coração arrependido, enriquece-o com o amor e
o enche de alegria, refazendo nele a esperança dos bens eternos. O vício torna
o coração miserável. A misericórdia o limpa. A misericórdia leva Deus a não ser
rigoroso, mas benigno. A misericórdia leva Deus a ser suave com o pecador. A
suavidade, a generosidade e o perdão fazem parte integrante da misericórdia.
O Pai das Misericórdias
Recolho primeiro
alguns textos de Santo Antônio, que falam diretamente da misericórdia de Deus
Pai, ou seja, daquele Deus de quem Paulo na carta aos Efésios disse “ser rico
em misericórdia, porque muito nos amou e nos deu a vida em Cristo” (Ef 2,4).
Para Santo Antônio, a misericórdia de Deus é sem limites. Lembra esta verdade
no sermão do 3º domingo da Quaresma: “A misericórdia de Deus é maior do que
toda a malícia do pecador”. “E porque a misericórdia de Deus não tem medida,
ele ouvirá a tua oração”.
Longamente fala
Antônio da misericórdia divina no sermão do 16º domingo depois de Pentecostes,
comentando a ressurreição do jovem de Naim e sua restituição à mãe viúva. Ele
vê no jovem morto a figura de toda a humanidade, morta porque estava no pecado
e não tinha a vida em plenitude de Jesus Cristo: “Na restituição do pecador
convertido à sua mãe (a Jerusalém celeste) há a profundidade da misericórdia
divina. Ó profundidade da divina clemência, longe da compreensão da
inteligência humana, porque não tem conta a sua misericórdia. Tendo Deus
disposto, como se diz no livro da Sabedoria (11,21), todas as coisas com
medida, conta e peso, não quis incluir nestas leis com estes limites a sua
misericórdia, antes, ela é que os inclui e os circunda. Por toda a parte está a
sua misericórdia, mesmo no inferno, porque não pune tanto quanto exige a culpa
do delinquente. Da misericórdia do Senhor, diz o salmista (119,64), está cheia
toda a terra, e todos nós, miseráveis, recebemos de sua plenitude. Pela
misericórdia de Deus, sou aquilo que sou (1Cor 15,10). Sem ela, nada sou. Ó
Senhor, se me retiras a tua misericórdia, caio na miséria eterna. A tua
misericórdia é a coluna do céu e da terra. Se a retirares, tudo cairá. Mas as
tuas misericórdias são muitas, na frase de Jeremias (Lm 3,22), porque não fomos
destruídos. Muitas, na verdade! Quantas vezes pecamos mortalmente, de fato,
pela alma ou pelo corpo, e não fomos imediatamente sufocados pelo demônio.
Tantas vezes devemos atribuir à infinita misericórdia do Senhor o ainda
vivermos! É que ele espera a nossa conversão, e por isso não permite sermos
sufocados pelo demônio. Logo, por tantas misericórdias devemos dar graças ao
Pai misericordioso; quantas vezes pecamos e não fomos eliminados! Ó miseráveis,
porque somos ingratos perante tamanha misericórdia? Deu-lhes tempo de
penitência, diz Jó (24,23), e a criatura abusa disto para se ensoberbecer. E
entesoura para si ira para o dia da ira. Compadece-te, pois, da tua alma,
porque as misericórdias do Senhor são antigas. Ele não se esquece de ter
compaixão de quem se considera digno de compaixão”.
No sermão para o
14º domingo depois de Pentecostes, acentua muito a infinita misericórdia de
Deus, que se manifesta em todas as circunstâncias: “O justo, se for cortado
pelo machado do pecado mortal, não deve desesperar da misericórdia de Deus, que
é maior que a sua miséria, mas ter esperança, porque tornará a reverdecer pela
penitência”.
Jesus, encarnação da Misericórdia
Para Santo
Antônio a misericórdia do Pai se manifesta, sobretudo, na encarnação e na
paixão de Jesus: “A misericórdia, isto é, a Encarnação e a Paixão, devemos
tê-la diante dos olhos do nosso entendimento”, escreveu no sermão do 16º
domingo depois de Pentecostes. Jesus é a encarnação da misericórdia divina na
Anunciação, misericórdia que extrapola todos os limites no Calvário e na manhã
de Páscoa e se derrama sobre nós, abrindo-nos as portas do céu. Santo Antônio
fala da misericórdia de Jesus particularmente na ressurreição do jovem de Naim
(Lc 7,11-17), na ressurreição da filha de Jairo e na mesma página a cura da
hemorroíssa (Lc 8,40-56), nas parábolas do bom samaritano (Lc 10,30-37), do
filho pródigo (Lc 15,11-32), do devedor perdoado (Mt 18,21-27) e da mulher
Cananeia, que lhe pediu pela filha possessa (Mt 15,21-28). Observe-se que são
quase todos comentários a páginas de Lucas, o evangelista da misericórdia.
Santo Antônio vê
na figura do samaritano a pessoa de Jesus: “O samaritano é o Senhor, feito
homem por nós. Empreendeu a viagem da vida terrena e veio até junto do
machucado, veio feito semelhante ao homem e reconhecido na condição de homem,
aproximou-se e se compadeceu de nós, e nos concedeu a sua misericórdia (Sermão
para o 13º domingo depois de Pentecostes). Pouco depois, no mesmo sermão,
lembrando-se do corpo místico que formamos com Cristo (1Cor 12,27), escreve:
“Vemos que o estrangeiro de Jerusalém, para quem a misericórdia era
obrigatória, foi mais próximo que o sacerdote ou o levita, ainda que tivessem o
mesmo sangue. Ninguém nos é mais vizinho do que aquele que nos curou as
feridas, porque faz uma só cabeça com os membros”.
Na explicação do
evangelho que fala da ressurreição da filha de Jairo (24º domingo depois de
Pentecostes), Santo Antônio se detém sobre o momento em que Jesus a pega pela
mão: “Tomou-a pela mão. Jesus toma a nossa mão na sua quando, por sua
misericórdia, nos dá o querer, o conhecer e o poder. A mão desta misericórdia
reconstrói a pessoa quando dá o conhecer e o querer; acaba-a, quando dá o
poder”. Ou seja, Jesus não faz as coisas pela metade. Refaz nossa inteligência
e a nossa vontade, para que possamos compreender o bem e segui-lo, porque a
pessoa viva normal precisa da inteligência e da vontade. Mais, no mesmo sermão,
acrescenta: “Com a mão da misericórdia livra-nos do poder das trevas e
transfere-nos para o reino de seu amor”.
No segundo
sermão para o segundo domingo da Quaresma, Santo Antônio demora-se em analisar
por que Jesus se calava diante do pedido insistente da mulher pagã, nas
proximidades de Tiro e Sidônia: “Jesus não respondeu palavra à Cananeia. Ó
arcano do divino conselho! Ó profundo e imperscrutável mistério da eterna
sabedoria! O Verbo, que no princípio existia junto do Pai, por meio do qual
tudo foi feito, não responde à mulher Cananeia, à alma penitente, uma palavra!
O Verbo, que torna soltas as línguas das crianças, que dá a boca e a sabedoria,
não responde uma palavra! Ó verbo do Pai, criador e conservador de tudo,
providência e sustento de quanto existe, responde-me ao menos uma palavra para
mim, mulher infeliz, a mim, penitente! E provo, com a autoridade do teu profeta
Isaías, que deves responder. De fato, o Pai, a teu respeito, promete aos
pecadores, dizendo em Isaías (55,11): A palavra que sair de minha boca não
tornará para mim vazia, mas fará tudo quanto eu tenha querido, e surtirá os
seus efeitos naquelas coisas para as quais eu a enviei. E que quis o Pai?
Certamente que recebesses o penitente, lhe respondesses uma palavra de
misericórdia. Acaso não disse: O meu alimento é fazer a vontade daquele que me
enviou? Filho de Davi, tem, portanto, piedade de mim! Responde uma palavra, ó
Verbo do Pai! Igualmente provo com a autoridade do teu profeta Zacarias que
deves ter piedade e responder. Assim de ti ele profetizou (13,1): Naquele dia
haverá para a casa de Davi uma fonte aberta, para lavar as manchas do pecador.
Ó fonte de piedade e de misericórdia, que nasceste de terra bendita da Virgem
Maria, que foi da casa e família de Davi, lava as manchas do pecador! Por que é
que o Verbo não responde uma palavra? Certamente para excitar o ânimo do
penitente a maior arrependimento e estímulo de dor maior. Por isso, dele fala a
esposa nos Cânticos (5,6): Procurei-o e não o encontrei. Chamei por ele e não
me respondeu”.
Misericordiosos como o Pai
Muitas vezes
Santo Antônio liga a misericórdia de Deus ao arrependimento, à dor de ter
pecado. No sermão acima chega a dizer que Deus demora em manifestar
misericórdia, para que o pecador tenha tempo de se arrepender. O pecador tem,
portanto, parte ativa, no recebimento da misericórdia. No sermão para o 22º domingo
depois de Pentecostes, observa a respeito do penitente: “O peso da dor, a
capacidade de amar, o comprimento da esperança, a humildade do coração chamam a
misericórdia”.
Santo Antônio
não só falou muito da misericórdia de Deus Pai, não só mostrou que toda a
pregação de Jesus está baseada na misericórdia, mas lembrou insistentemente que
devemos ser misericordiosos como o Pai; que a vida do cristão é uma vida
trançada de obras e de pensamentos misericordiosos. E até chegou a dizer que a
misericórdia de Deus pode estar condicionada à misericórdia que temos e
fazemos, como Jesus condicionou o perdão de Deus ao perdão que nós dermos.
Assim escreve no 23º domingo depois de Pentecostes: “Quem é misericordioso para
com os outros terá para ele a misericórdia de Deus”. No sermão para o 16º
domingo depois de Pentecostes, Santo Antônio pede ao povo de nunca esquecer a
misericórdia de Deus: “Como o rei Davi, deverás ter sempre a misericórdia
diante dos teus olhos”. No sermão para a Páscoa, comenta a sarça ardente. Primeiro,
diz que o nome ‘Moisés’ significa ‘varão da misericórdia’. Depois, observa que
a chama sai do meio de uma sarça e comenta: a sarça é o pobre, coberto de
espinhos, atribulado, faminto, nu e aflito. E acrescenta: “Que estes espinhos
punjam teu coração, para que tenhas misericórdia do necessitado”.
Maria, mãe de Misericórdia
Ainda uma
palavra sobre Maria, mãe e rainha da misericórdia. Santo Antônio fala de Maria
e se mostra teólogo mariano em ao menos 16 sermões. Assim, escreve no segundo
sermão para o terceiro domingo da Quaresma: “Pecador, refugia-te em Maria. Ela
é a cidade do refúgio. Como outrora, o Senhor separou cidades de refúgio para
os que tivessem cometido crimes involuntários (Nm 35,11-14), assim agora a
misericórdia do Senhor deu refúgio de misericórdia ao nome de Maria até para os
homicidas voluntários”. E afirma no sermão para a festa da Purificação: “Maria
é chamada mãe de misericórdia. É misericordiosa para os miseráveis, é esperança
para os desesperados”.
No sermão para a
festa da Assunção, falando das razões de Deus para levá-la em corpo e alma ao
céu, exclama: “Ó inestimável dignidade de Maria! Ó inenarrável sublimidade da
graça! Ó inescrutável profundidade da misericórdia! Nunca tanta graça nem tanta
misericórdia foram nem podem ser concedidas a um anjo ou a um homem, como a
Maria Virgem Santíssima, que Deus Pai quis fosse mãe de seu próprio Filho,
igual a si, gerado antes de todos os séculos”.
Orações para pedir Misericórdia
Muitos outros
textos de Santo Antônio sobre a misericórdia podiam ser citados. Alguns
baseariam uma conferência inteira, como a relação entre misericórdia e
confiança, misericórdia e penitência, misericórdia e julgamento. Não resisto
transcrever três orações do Santo, tiradas de três sermões diferentes.
A primeira é do
domingo da Quinquagésima:
“Sê para mim um
Deus protetor, reza o Salmo (31,3-4). Com teus braços estendidos na cruz,
protege-me e defende-me, como a galinha protege e defende os pintinhos debaixo
das asas. No teu lado, traspassado pela lança, encontre eu lugar de refúgio,
onde possa esconder-me dos inimigos. Se eu cair, possa eu me abrigar junto de
ti e não de outrem. Sê para mim, que sou cego, um guia: dá-me a tua mão
misericordiosa e alimenta-me com o leite da tua graça”.
Busco a segunda
no sermão para o 3º domingo depois de Pentecostes:
“Senhor, olha
para mim e tem compaixão de mim, porque me vejo só e pobre. Olha para o meu
abatimento e para o meu trabalho e perdoa todos os meus pecados. Olha para mim
com olhar da misericórdia, tu que olhaste para Pedro. Tem compaixão de mim!
Perdoa-me os pecados! Acompanha-me, porque me sinto sozinho! Vejo-me pobre e
vazio, vem encher o meu vazio”.
Tomo a terceira
do sermão para o 4º domingo depois de Pentecostes:
“Para podermos
chegar à glória eterna, roguemos ao Senhor Jesus Cristo, Pai misericordioso,
que nos infunda a sua misericórdia, a fim de termos misericórdia para conosco e
para com os outros. E não julguemos nem condenemos ninguém. Perdoemos aos que
pecam contra nós e demos a todos os que nos pedem o que temos e o que somos.
Isto se digne conceder-nos aquele que é bendito e glorioso pelos séculos dos
séculos. Assim seja!”.
Fonte: Franciscanos.org
Nenhum comentário:
Postar um comentário