No último dia 08 de abril foi divulgada a Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Laetitia (A alegria do amor) do Papa Francisco, fruto dos dois Sínodos sobre a Família (2014-2015). Segue o texto na íntegra:
Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Lætitia
do Santo Padre Francisco
aos Bispos, aos Presbíteros e aos Diáconos,
às pessoas consagradas,
aos esposos cristãos e e todos os fiéis leigos
sobre o amor na família
do Santo Padre Francisco
aos Bispos, aos Presbíteros e aos Diáconos,
às pessoas consagradas,
aos esposos cristãos e e todos os fiéis leigos
sobre o amor na família
1. A alegria do amor que se vive nas famílias é também o júbilo da
Igreja. Apesar dos numerosos sinais de crise no matrimónio – como foi observado
pelos Padres sinodais – «o desejo de família permanece vivo, especialmente
entre os jovens, e isto incentiva a Igreja».[1] Como
resposta a este anseio, «o anúncio cristão sobre a família é verdadeiramente
uma boa notícia».[2]
2. O caminho sinodal permitiu analisar a situação das famílias no mundo
actual, alargar a nossa perspectiva e reavivar a nossa consciência sobre a
importância do matrimónio e da família. Ao mesmo tempo, a complexidade dos
temas tratados mostrou-nos a necessidade de continuar a aprofundar, com
liberdade, algumas questões doutrinais, morais, espirituais e pastorais. A
reflexão dos pastores e teólogos, se for fiel à Igreja, honesta, realista e
criativa, ajudar-nos-á a alcançar uma maior clareza. Os debates, que têm lugar
nos meios de comunicação ou em publicações e mesmo entre ministros da Igreja,
estendem-se desde o desejo desenfreado de mudar tudo sem suficiente reflexão ou
fundamentação até à atitude que pretende resolver tudo através da aplicação de
normas gerais ou deduzindo conclusões excessivas de algumas reflexões
teológicas.
3. Recordando que o tempo é superior ao espaço, quero reiterar que nem
todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas
através de intervenções magisteriais. Naturalmente, na Igreja, é necessária uma
unidade de doutrina e práxis, mas isto não impede que existam maneiras
diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências
que decorrem dela. Assim há-de acontecer até que o Espírito nos conduza à
verdade completa (cf. Jo 16, 13), isto é, quando nos
introduzir perfeitamente no mistério de Cristo e pudermos ver tudo com o seu
olhar. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais
inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais. De facto, «as
culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral (...), se quiser
ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado».[3]
4. Em todo o caso, devo dizer que o caminho sinodal se revestiu duma
grande beleza e proporcionou muita luz. Agradeço tantas contribuições que me
ajudaram a considerar, em toda a sua amplitude, os problemas das famílias do
mundo inteiro. O conjunto das intervenções dos Padres, que ouvi com atenção
constante, pareceu-me um precioso poliedro, formado por muitas preocupações
legítimas e questões honestas e sinceras. Por isso, considerei oportuno redigir
uma Exortação Apostólica pós-sinodal que recolha contribuições dos dois Sínodos
recentes sobre a família, acrescentando outras considerações que possam
orientara reflexão, o diálogo ou a práxis pastoral, e simultaneamente ofereçam
coragem, estímulo e ajuda às famílias na sua doação e nas suas dificuldades.
5. Esta Exortação adquire um significado especial no contexto deste Ano
Jubilar da Misericórdia, em primeiro lugar, porque a vejo como uma proposta
para as famílias cristãs, que as estimule a apreciar os dons do matrimónio e da
família e a manter um amor forte e cheio de valores como a generosidade, o
compromisso, a fidelidade e a paciência; em segundo lugar, porque se propõe
encorajar todos a serem sinais de misericórdia e proximidade para a vida
familiar, onde esta não se realize perfeitamente ou não se desenrole em paz e
alegria.
6. No desenvolvimento do texto, começarei por uma abertura inspirada na
Sagrada Escritura, que lhe dê o tom adequado. A partir disso, considerarei a
situação actual das famílias, para manter os pés assentes na terra. Depois
lembrarei alguns elementos essenciais da doutrina da Igreja sobre o matrimónio
e a família, seguindo-se os dois capítulos centrais, dedicados ao amor. Em
seguida destacarei alguns caminhos pastorais que nos levem a construir famílias
sólidas e fecundas segundo o plano de Deus, e dedicarei um capítulo à educação
dos filhos. Depois deter-me-ei sobre um convite à misericórdia e ao
discernimento pastoral perante situações que não correspondem plenamente ao que
o Senhor nos propõe; e, finalmente, traçarei breves linhas de espiritualidade
familiar.
7. Devido à riqueza que os dois anos de reflexão do caminho sinodal
ofereceram, esta Exortação aborda, com diferentes estilos, muitos e variados
temas. Isto explica a sua inevitável extensão. Por isso, não aconselho uma
leitura geral apressada. Poderá ser de maior proveito, tanto para as famílias
como para os agentes de pastoral familiar, aprofundar pacientemente uma parte
de cada vez ou procurar nela aquilo de que precisam em cada circunstância
concreta. É provável, por exemplo, que os esposos se identifiquem mais como
quarto e quinto capítulo, que os agentes pastorais tenham especial interesse
pelo capítulo sexto, e que todos se sintam muito interpelados pelo oitavo.
Espero que cada um, através da leitura, se sinta chamado a cuidar com amor da
vida das famílias, porque elas «não são um problema, são sobretudo uma
oportunidade».[4]
8. A Bíblia aparece cheia de famílias, gerações, histórias de amor e de
crises familiares, desde as primeiras páginas onde entra em cena a família de
Adão e Eva, como seu peso de violência mas também com a força da vida que
continua (cf. Gn 4), até às últimas páginas onde aparecem as
núpcias da Esposa e do Cordeiro (cf. Ap21, 2.9).As duas casas de
que fala Jesus, construídas ora sobre a rocha ora sobre a areia (cf. Mt 7,
24-27), representam muitas situações familiares, criadas pela liberdade de
quantos habitam nelas, porque – como escreve o poeta – «toda a casa é um
candelabro».[5]Agora
entremos numa dessas casas, guiados pelo Salmista, através dum canto que ainda
hoje se proclama nas liturgias nupciais quer judaica quer cristã:
«Felizes os que obedecem ao Senhor
e andam nos seus caminhos.
Comerás do fruto do teu próprio trabalho:
assim serás feliz e viverás contente.
A tua esposa será como videira fecunda
na intimidade do teu lar;
os teus filhos serão como rebentos de oliveira
ao redor da tua mesa.
Assim vai ser abençoado
o homem que obedece ao Senhor.
O Senhor te abençoe do monte Sião!
Possas contemplara prosperidade de Jerusalém
todos os dias da tua vida,
e chegues a ver os filhos dos teus filhos.
Paz a Israel!» (Sl 128/127, 1-6).
Tu e a tua esposa
9. Cruzemos então o limiar desta casa serena, com a sua família sentada
ao redor da mesa em dia de festa. No centro, encontramos o casal formado pelo
pai e a mãe com toda a sua história de amor. Neles se realiza aquele desígnio
primordial que o próprio Cristo evoca com decisão: «Não lestes que o Criador,
desde o princípio, fê-los homem e mulher?» (Mt 19, 4). E retoma o
mandato do livro do Génesis: «Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe,
para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2,
24).
10. Aqueles dois primeiros capítulos grandiosos do Génesis oferecem-nos
a representação do casal humano na sua realidade fundamental. Naquele trecho
inicial da Bíblia, sobressaem algumas afirmações decisivas. A primeira, citada
sinteticamente por Jesus, declara: «Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o
à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (1, 27). Surpreendentemente, a
«imagem de Deus» tem como paralelo explicativo precisamente o casal «homem e
mulher». Quererá isto significar que o próprio Deus é sexuado ou tem a seu lado
uma companheira divina, como acreditavam algumas religiões antigas? Não,
obviamente! Sabemos com quanta clareza a Bíblia rejeitou como idolátricas tais
crenças, generalizadas entre os cananeus da Terra Santa. Preserva-se a
transcendência de Deus, mas, uma vez que é ao mesmo tempo o Criador, a
fecundidade do casal humano é «imagem» viva e eficaz, sinal visível do acto
criador.
11. O casal que ama e gera a vida é a verdadeira «escultura» viva (não a
de pedra ou de ouro, que o Decálogo proíbe), capaz de manifestar Deus criador e
salvador. Por isso, o amor fecundo chega a ser o símbolo das realidades íntimas
de Deus (cf. Gn 1, 28; 9, 7; 17, 2-5.16; 28, 3; 35, 11; 48,
3-4). Devido a isso a narrativa do Génesis, atendo-se à chamada «tradição
sacerdotal», aparece permeada por várias sequências genealógicas (cf. Gn 4,
17-22.25-26; 5; 10; 11, 10-32; 25, 1-4.12-17.19-26; 36): de facto, a capacidade
que o casal humano tem de gerar é o caminho por onde se desenrola a história da
salvação. Sob esta luz, a relação fecunda do casal torna-se uma imagem para
descobrir e descrever o mistério de Deus, fundamental na visão cristã da
Trindade que, em Deus, contempla o Pai, o Filho e o Espírito de amor. O Deus
Trindade é comunhão de amor; e a família, o seu reflexo vivente. A propósito,
são elucidativas estas palavras de São João Paulo II: «O nosso Deus, no seu
mistério mais íntimo, não é solidão, mas uma família, dado que tem em Si mesmo
paternidade, filiação e a essência da família, que é o amor. Este amor, na
família divina, é o Espírito Santo».[6] Concluindo,
a família não é alheia à própria essência divina.[7] Este
aspecto trinitário do casal encontra uma nova representação na teologia
paulina, quando o Apóstolo relaciona o casal com o «mistério» da união entre
Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 21-33).
12. Mas Jesus, na sua reflexão sobre o matrimónio, alude a outra página
do Génesis – o capítulo 2 – onde aparece um retrato admirável do casal com
detalhes elucidativos. Escolhemos apenas dois. O primeiro é a inquietação
vivida pelo homem, que busca «uma auxiliar semelhante» (vv. 18.20), capaz de
resolver esta solidão que o perturba e que não encontra remédio na proximidade
dos animais e da criação inteira. A expressão original hebraica faz-nos pensar
numa relação directa, quase «frontal» – olhos nos olhos –, num diálogo também sem
palavras, porque, no amor, os silêncios costumam ser mais eloquentes do que as
palavras: é o encontro com um rosto, um «tu» que reflecte o amor divino e
constitui – como diz um sábio bíblico – «o primeiro dos bens, uma ajuda
condizente e uma coluna de apoio» (Sir 36, 24). Ou como exclamará a
mulher do Cântico dos Cânticos, numa confissão estupenda de amor e doação na
reciprocidade, «o meu amado é para mim e eu para ele (...). Eu sou para o meu
amado e o meu amado é para mim» (2, 16; 6, 3).
13. Deste encontro, que cura a solidão, surge a geração e a família.
Este é um segundo detalhe, que podemos evidenciar: Adão, que é também o homem
de todos os tempos e de todas as regiões do nosso planeta, juntamente com a sua
esposa dá origem a uma nova família, como afirma Jesus citando o Génesis:
«Unir-se-á à sua mulher e serão os dois um só» (Mt 19, 5; cf. Gn 2,
24). No original hebraico, o verbo «unir-se» indica uma estreita sintonia, uma
adesão física e interior, a ponto de se utilizar para descrever a união com Deus,
como canta o orante: «A minha alma está unida a Ti» (Sl 63/62, 9).
Deste modo, evoca-se a união matrimonial não apenas na sua dimensão sexual e
corpórea, mas também na sua doação voluntária de amor. O fruto desta união é
«tornar-se uma só carne», quer no abraço físico, quer na união dos corações e
das vidas e, porventura, no filho que nascerá dos dois e, em si mesmo, há-de
levar as duas «carnes», unindo-as genética e espiritualmente.
Os teus filhos como rebentos de oliveira
14. Retomemos o canto do Salmista. Lá, dentro da casa onde o homem e a
sua esposa estão sentados à mesa, aparecem os filhos que os acompanham «como
rebentos de oliveira» (Sl 128/127, 3), isto é, cheios de energia e
vitalidade. Se os pais são como que os alicerces da casa, os filhos constituem
as «pedras vivas» da família (cf. 1Ped 2, 5). É significativo
que, no Antigo Testamento, a palavra que aparece mais vezes depois da
designação divina (YHWH, o «Senhor») é «filho» (ben), um termo
que remete para o verbo hebraico que significa «construir» (banah). Por
isso, noutro Salmo, exalta-se o dom dos filhos com imagens que aludem quer à
edificação duma casa, quer à vida social e comercial que se desenrolava às
portas da cidade: «Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os
construtores. (...) Olhai: os filhos são uma bênção do Senhor; o fruto das
entranhas, uma verdadeira dádiva. Como flechas nas mãos de um guerreiro, assim
são os filhos nascidos na juventude. Feliz o homem que deles encheu a sua
aljava! Não será envergonhado pelos seus inimigos, quando com eles discutir às
portas da cidade» (Sl127/126, 1.3-5). É verdade que estas imagens
reflectem a cultura duma sociedade antiga, mas a presença dos filhos é, em todo
o caso, um sinal de plenitude da família na continuidade da mesma história de
salvação, de geração em geração.
15. Sob esta luz, podemos ver outra dimensão da família. Sabemos que, no
Novo Testamento, se fala da «igreja que se reúne em casa» (cf. 1Cor 16,
19; Rm 16, 5; Col 4, 15; Flm 2).
O espaço vital duma família podia transformar-se em igreja doméstica, em local
da Eucaristia, da presença de Cristo sentado à mesma mesa. Inesquecível é a
cena descrita no Apocalipse: «Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir
a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele
comigo» (3, 20). Esboça-se assim uma casa que abriga no seu interior a presença
de Deus, a oração comum e, por conseguinte, a bênção do Senhor. Isto mesmo se
afirma no Salmo 128, que nos serviu de base: «Assim vai ser abençoado o homem
que obedece ao Senhor. O Senhor te abençoe do monte Sião!» (vv. 4-5).
16. A Bíblia considera a família também como o local da catequese dos
filhos. Vê-se isto claramente na descrição da celebração pascal (cf. Ex 12,
26-27; Dt 6, 20-25) – mais tarde explicitado na haggadah judaica
–, concretamente no diálogo que acompanha o rito da ceia pascal. Eis como um
Salmo exalta o anúncio familiar da fé: «O que ouvimos e aprendemos e os nossos
antepassados nos transmitiram, não o ocultaremos aos seus descendentes; tudo
contaremos às gerações vindouras: as glórias do Senhor e o seu poder, e as
maravilhas que Ele fez. Ele estabeleceu um preceito em Jacob, instituiu uma lei
em Israel. E ordenou aos nossos pais que a ensinassem aos seus filhos, para que
as gerações futuras a conhecessem e os filhos que haviam de nascer a contassem
aos seus próprios filhos» (Sl 78/77, 3-6). Por isso, a família é o
lugar onde os pais se tornam os primeiros mestres da fé para seus filhos. É uma
tarefa «artesanal», pessoa a pessoa: «Se amanhã o teu filho te perguntar (...),
dir-lhe-ás...» (Ex 13, 14). Assim, entoarão o seu canto ao Senhor
as diferentes gerações, «os jovens e as donzelas, os velhos e as crianças» (Sl 148,
12).
17. Os pais têm o dever de cumprir, com seriedade, a sua missão
educativa, como ensinam frequentemente os sábios da Bíblia (cf. Pr 3,
11-12;6, 20-22; 13, 1; 22, 15; 23, 13-14; 29, 17). Os filhos são chamados a
receber e praticar o mandamento «honra o teu pai e a tua mãe» (Ex 20,
12), querendo o verbo «honrar» indicar o cumprimento das obrigações familiares
e sociais em toda a sua plenitude, sem os transcurar com desculpas religiosas
(cf. Mc 7, 11-13). Com efeito, «o que honra o pai alcança o
perdão dos pecados, e quem honra a sua mãe é semelhante ao que acumula
tesouros» (Sir 3, 3-4).
18. O Evangelho lembra-nos também que os filhos não são uma propriedade
da família, mas espera-os o seu caminho pessoal de vida. Se é verdade que Jesus
Se apresenta como modelo de obediência a seus pais terrenos, submetendo-Se a
eles (cf. Lc 2, 51), também é certo que Ele faz ver que a
escolha de vida do filho e a sua própria vocação cristã podem exigir uma
separação para realizar a entrega de si mesmo ao Reino de Deus (cf. Mt 10,
34-37; Lc 9, 59-62). Mais ainda! Ele próprio, aos doze anos,
responde a Maria e a José que tem uma missão mais alta a realizar para além da
sua família histórica (cf. Lc 2, 48-50). Por isso, exalta a
necessidade de outros laços mais profundos, mesmo dentro das relações
familiares: «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e
a põem em prática» (Lc 8, 21). Por outro lado, Jesus presta tal
atenção às crianças – consideradas, na sociedade do Médio Oriente antigo, como
sujeitos sem particulares direitos e inclusivamente como parte da propriedade
familiar –, que chega ao ponto de as propor aos adultos como mestres, devido à
sua confiança simples e espontânea nos outros. «Em verdade vos digo: Se não
voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem,
pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu» (Mt 18,
3-4).
Um rasto de sofrimento e sangue
19. O idílio, que o Salmo128 apresenta, não nega uma amarga realidade
que marca toda a Sagrada Escritura: é a presença do sofrimento, do mal, da
violência, que dilaceram a vida da família e a sua comunhão íntima de vida e de
amor. Não é de estranhar que o discurso de Cristo sobre o matrimónio (cf.Mt 19,
3-9) apareça inserido numa disputa a respeito do divórcio. A Palavra de Deus é
testemunha constante desta dimensão obscura que assoma já nos primórdios,
quando, com o pecado, a relação de amor e pureza entre o homem e a mulher se
transforma num domínio: «Procurarás apaixonadamente o teu marido, mas ele te
dominará» (Gn 3, 16).
20. É um rasto de sofrimento e sangue que atravessa muitas páginas da
Bíblia, a começar pela violência fratricida de Caim contra Abel e dos vários
litígios entre os filhos e entre as esposas dos patriarcas Abraão, Isaac e
Jacob, passando pelas tragédias que cobrem de sangue a família de David, até às
numerosas dificuldades familiares que regista a história de Tobias ou a
confissão amarga de Job abandonado: Deus «afastou de mim os meus irmãos, e os
meus amigos retiraram-se como estranhos. (...)A minha mulher sente repugnância
do meu hálito e tornei-me fétido para os meus próprios filhos» (Jb 19,
13.17).
21. O próprio Jesus nasce numa família modesta, que à pressa tem de
fugir para uma terra estrangeira. Entra na casa de Pedro, onde a sua sogra está
doente (cf. Mc 1, 29-31), deixa-Se envolver no drama da morte
na casa de Jairo ou no lar de Lázaro (cf. Mc5, 22-24.35-43; Jo 11,
1-44), ouve o pranto desesperado da viúva de Naim pelo seu filho morto (cf. Lc 7,
11-15); atende o grito do pai do epiléptico numa pequena povoação rural (cf. Mc 9,
17-27). Encontra-Se com publicanos, como Mateus ou Zaqueu, nas suas próprias
casas (cf. Mt 9, 9-13; Lc 19, 1-10), e também
com pecadoras, como a mulher que invade a casa do fariseu (cf. Lc 7,
36-50). Conhece as ansiedades e as tensões das famílias, inserindo-as nas suas
parábolas: desde filhos que deixam a própria casa para tentar alguma aventura
(cf. Lc 15, 11-32) até filhos difíceis com comportamentos
inexplicáveis (cf. Mt 21, 28-31) ou vítimas da violência (cf. Mc 12,
1-9). Interessa-Se ainda pela situação embaraçosa que se vive numas bodas pela
falta de vinho (cf. Jo 2, 1-10) ou pela recusa dos convidados
a participar nelas (cf. Mt 22, 1-10), e conhece também o
pesadelo que representa a perda duma moeda numa família pobre (cf. Lc 15,
8-10).
22. Nesta breve resenha, podemos comprovar que a Palavra de Deus não se
apresenta como uma sequência de teses abstractas, mas como uma companheira de
viagem, mesmo para as famílias que estão em crise ou imersas nalguma
tribulação, mostrando-lhes a meta do caminho, quando Deus «enxugar todas as
lágrimas dos seus olhos, e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor»
(Ap 21, 4).
O fruto do teu próprio trabalho
23. No início do Salmo 128, o pai é apresentado como um trabalhador que
pode, com a obradas suas mãos, manter o bem-estar físico e a serenidade da sua
família: «Comerás do fruto do teu próprio trabalho: assim serás feliz e viverás
contente» (v. 2). O facto de o trabalho ser uma parte fundamental da dignidade
da vida humana deduz-se das primeiras páginas da Bíblia, quando se afirma que
Deus «colocou [o homem] no Jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o
guardar» (Gn2, 15). Temos aqui a imagem do trabalhador que transforma a
matéria e aproveita as energias da criação, fazendo nascer o «pão de tanta
fadiga» (Sl127/126, 2), para além de se cultivar a si mesmo.
24. O trabalho torna possível simultaneamente o desenvolvimento da
sociedade, o sustento da família e também a sua estabilidade e fecundidade:
«Possas contemplar a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida e
chegues a veros filhos dos teus filhos» (Sl 128/127, 5-6). No livro
dos Provérbios, realça-se também a tarefa da mãe de família, cujo trabalho
aparece descrito nas suas múltiplas mansões diárias, merecendo o elogio do
marido e dos filhos (cf.31, 10-31). O próprio apóstolo Paulo sentia-se
orgulhoso por ter vivido sem ser um fardo para os outros, porque trabalhou
comas suas mãos, garantindo-se deste modo o sustento (cf. Act 18,
3; 1Cor 4, 12; 9, 12).Estava tão convencido da necessidade do
trabalho, que estabeleceu esta férrea norma para as suas comunidades: «Se
alguém não quer trabalhar, também não coma» (2Ts 3,10; cf. 1Ts 4,
11).
25. Dito isto, compreende-se que o desemprego e a precariedade laboral
gerem sofrimento, como atesta o livro de Rute e como lembra Jesus na parábola
dos trabalhadores sentados, em ócio forçado, na praça da localidade (cf. Mt 20,
1-16), ou como pôde verificar pessoalmente vendo-Se muitas vezes rodeado de
necessitados e famintos. Isto mesmo vive tragicamente a sociedade actual em
muitos países, e esta falta de emprego afecta, de várias maneiras, a serenidade
das famílias.
26. Também não podemos esquecera degeneração que o pecado introduz na
sociedade, quando o homem se comporta como um tirano com a natureza,
devastando-a, utilizando-a de forma egoísta e até brutal. Como consequência,
temos, simultaneamente, a desertificação do solo (cf.Gn 3, 17-19) e
os desequilíbrios económicos e sociais, contra os quais se levanta,
abertamente, a voz dos profetas, desde Elias (cf.1Re 21) até chegar
às palavras que o próprio Jesus pronuncia contra a injustiça (cf. Lc 12,
13-21; 16,1-31).
A ternura do abraço
27. Como distintivo dos seus discípulos, Cristo pôs sobretudo a lei do
amor e do dom de si mesmo aos outros (cf. Mt 22, 39; Jo13,
34), e fê-lo através dum princípio que um pai ou uma mãe costumam testemunhar
na sua própria vida: «Ninguém tem maior amor do que quem dá a vida pelos seus
amigos» (Jo 15, 13). Frutos do amor são também a misericórdia e o
perdão. Nesta linha, é emblemática a cena que nos apresenta uma adúltera na
explanada do templo de Jerusalém, primeiro, rodeada pelos seus acusadores e,
depois, sozinha com Jesus, que não a condena mas convida-a a uma vida mais
digna (cf. Jo 8, 1-11).
28. No horizonte do amor, essencial na experiência cristã do matrimónio
e da família, destaca-se ainda outra virtude, um pouco ignorada nestes tempos
de relações frenéticas e superficiais: a ternura. Detenhamo-nos no terno e
denso Salmo 131, onde – como se observa, aliás, noutros textos (cf. Ex 4,
22; Is 49, 15; Sl 27/26, 10) – a união entre
o fiel e o seu Senhor é expressa com traços de amor paterno e materno. Lá
aparece a intimidade delicada e carinhosa entre a mãe e o seu bebé, um
recém-nascido que dorme nos braços de sua mãe depois de ter sido amamentado.
Como indica a palavra hebraica gamùl, trata-se dum menino que acaba
de mamar e se agarra conscientemente à mãe que o leva ao colo. É, pois, uma
intimidade consciente, e não meramente biológica. Por isso canta o Salmista:
«Estou sossegado e tranquilo, como criança saciada ao colo da mãe» (Sl 131/130,
2). Paralelamente, podemos ver outra cena na qual o profeta Oseias coloca na
boca de Deus, visto como pai, estas palavras comoventes: «Quando Israel era
ainda menino, Eu amei-o (...), Eu ensinava Efraim a andar, trazia-o nos meus
braços (...). Segurava-o com laços de ternura, com laços de amor, fui para ele
como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me para ele
para lhe dar de comer» (Os 11, 1.3-4).
29. Com este olhar feito de fé e amor, de graça e compromisso, de
família humana e Trindade divina, contemplamos a família que a Palavra de Deus
confia nas mãos do marido, da esposa e dos filhos, para que formem uma comunhão
de pessoas que seja imagem da união entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Por
sua vez, a actividade geradora e educativa é um reflexo da obra criadora do
Pai. A família é chamada a compartilhara oração diária, a leitura da Palavra de
Deus e a comunhão eucarística, para fazer crescer o amor e tornar-se cada vez
mais um templo onde habita o Espírito.
30. Cada família tem diante de si o ícone da família de Nazaré, com o
seu dia-a-dia feito de fadigas e até de pesadelos, como quando teve que sofrer
a violência incompreensível de Herodes, experiência que ainda hoje se repete
tragicamente em muitas famílias de refugiados descartados e inermes. Como os
Magos, as famílias são convidadas a contemplar o Menino com sua Mãe, a
prostrar-se e adorá-Lo (cf. Mt 2, 11). Como Maria, são
exortadas a viver, com coragem e serenidade, os desafios familiares tristes e
entusiasmantes, e a guardar e meditar no coração as maravilhas de Deus (cf. Lc 2,
19.51). No tesouro do coração de Maria, estão também todos os acontecimentos de
cada uma das nossas famílias, que Ela guarda solicitamente. Por isso pode
ajudar-nos a interpretá-los de modo a reconhecera mensagem de Deus na história
familiar.
CAPÍTULO II: A REALIDADE E OS
DESAFIOS DAS FAMÍLIAS
31. O bem da família é decisivo para o futuro do mundo e da Igreja.
Inúmeras são as análises feitas sobre o matrimónio e a família, sobre as suas
dificuldades e desafios actuais. É salutar prestar atenção à realidade
concreta, porque «os pedidos e os apelos do Espírito ressoam também nos
acontecimentos da história» através dos quais «a Igreja pode ser guiada para
uma compreensão mais profunda do inexaurível mistério do matrimónio e da
família».[8] Não
tenho a pretensão de apresentar aqui tudo aquilo que poderia ser dito sobre os
vários temas relacionados coma família no contexto actual. Mas, dado que os
Padres sinodais ofereceram um panorama da realidade das famílias de todo o
mundo, considero oportuno recolher algumas das suas contribuições pastorais,
acrescentando outras preocupações derivadas da minha própria visão.
A situação actual da família
32. «Fiéis ao ensinamento de Cristo, olhamos a realidade actual da
família em toda a sua complexidade, nas suas luzes e sombras. (...) Hoje, a
mudança antropológico-cultural influencia todos os aspectos da vida e requer
uma abordagem analítica e diversificada».[9] Já
no contexto de várias décadas atrás, os bispos da Espanha reconheciam uma
realidade doméstica com mais espaços de liberdade, «com uma distribuição
equitativa de encargos, responsabilidades e tarefas (...). Valorizando mais a
comunicação pessoal entre os esposos, contribui-se para humanizar toda a vida
familiar. (...) Nem a sociedade em que vivemos nem aquela para onde caminhamos
permitem a sobrevivência indiscriminada de formas e modelos do passado».[10] Mas
«estamos conscientes da direcção que vão tomando as mudanças
antropológico-culturais, em razão das quais os indivíduos são menos apoiados do
que no passado pelas estruturas sociais na sua vida afectiva e familiar».[11]
33. Por outro lado, «há que considerar o crescente perigo representado
por um individualismo exagerado que desvirtua os laços familiares e acaba por
considerar cada componente da família como uma ilha, fazendo prevalecer, em
certos casos, a ideia dum sujeito que se constrói segundo os seus próprios
desejos assumidos com carácter absoluto».[12] «As
tensões causadas por uma cultura individualista exagerada da posse e fruição
geram no seio das famílias dinâmicas de impaciência e agressividade».[13]Gostaria
de acrescentar o ritmo da vida actual, o stresse, a organização social e laboral,
porque são factores culturais que colocam em risco a possibilidade de opções
permanentes. Ao mesmo tempo, encontramo-nos perante fenómenos ambíguos. Por
exemplo, aprecia-se uma personalização que aposte na autenticidade em vez de
reproduzir comportamentos prefixados. É um valor que pode promover as
diferentes capacidades e a espontaneidade, mas, se for mal orientado, pode
criar atitudes de permanente suspeita, fuga dos compromissos, confinamento no
conforto, arrogância. A liberdade de escolher permite projectar a própria vida
e cultivar o melhor de si mesmo, mas, se não se tiver objectivos nobres e
disciplina pessoal, degenera numa incapacidade de se dar generosamente. De
facto, em muitos países onde diminui o número de matrimónios, cresce o número
de pessoas que decidem viver sozinhas ou que convivem sem coabitar. Podemos
assinalar também um louvável sentido de justiça; mas, mal compreendido,
transforma os cidadãos em clientes que só exigem o cumprimento de serviços.
34. Se estes riscos se transpõem para o modo de compreender a família,
esta pode transformar-se num lugar de passagem, aonde uma pessoa vai quando lhe
parecer conveniente para si mesma ou para reclamar direitos, enquanto os
vínculos são deixados à precariedade volúvel dos desejos e das circunstâncias.
No fundo, hoje é fácil confundir a liberdade genuína com a ideia de que cada um
julga como lhe parece, como se, para além dos indivíduos, não houvesse
verdades, valores, princípios que nos guiam, como se tudo fosse igual e tudo se
devesse permitir. Neste contexto, o ideal matrimonial com um compromisso de
exclusividade e estabilidade acaba por ser destruído pelas conveniências
contingentes ou pelos caprichos da sensibilidade. Teme-se a solidão, deseja-se
um espaço de protecção e fidelidade mas, ao mesmo tempo, cresce o medo de ficar
encurralado numa relação que possa adiar a satisfação das aspirações pessoais.
35. Como cristãos, não podemos renunciar a propor o matrimónio, para não
contradizer a sensibilidade actual, para estar na moda, ou por sentimentos de
inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo
dos valores que podemos e devemos oferecer. É verdade que não tem sentido
limitar-nos a uma denúncia retórica dos males actuais, como se isso pudesse
mudar qualquer coisa. De nada serve também querer impor normas pela força da
autoridade. É-nos pedido um esforço mais responsável e generoso, que consiste
em apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimónio e a família,
de modo que as pessoas estejam melhor preparadas para responder à graça que
Deus lhes oferece.
36. Ao mesmo tempo devemos ser humildes e realistas, para reconhecer que
às vezes a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como
tratamos as pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo
que nos convém uma salutar reacção de autocrítica. Além disso, muitas vezes
apresentámos de tal maneira o matrimónio que o seu fim unitivo, o convite a
crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase
exclusiva no dever da procriação. Também não fizemos um bom acompanhamento dos
jovens casais nos seus primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus
horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas. Outras
vezes, apresentámos um ideal teológico do matrimónio demasiado abstracto,
construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das
possibilidades efectivas das famílias tais como são. Esta excessiva
idealização, sobretudo quando não despertámos a confiança na graça, não fez com
que o matrimónio fosse mais desejável e atraente; muito pelo contrário.
37. Durante muito tempo pensámos que, com a simples insistência em
questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já
apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e
enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos dificuldade em
apresentar o matrimónio mais como um caminho dinâmico de crescimento e
realização do que como um fardo a carregar a vida inteira. Também nos custa
deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que
podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu
próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos
chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las.
38. Devemos dar graças pela maioria das pessoas valorizar as relações
familiares que querem permanecer no tempo e garantem o respeito pelo outro. Por
isso, aprecia-se que a Igreja ofereça espaços de apoio e aconselhamento sobre
questões relacionadas com o crescimento do amor, a superação dos conflitos e a
educação dos filhos. Muitos estimam a força da graça que experimentam na
Reconciliação sacramental e na Eucaristia, que lhes permite enfrentar os desafios
do matrimónio e da família. Nalguns países, especialmente em várias partes da
África, o secularismo não conseguiu enfraquecer alguns valores tradicionais e,
em cada matrimónio, gera-se uma forte união entre duas famílias alargadas, onde
se conserva ainda um sistema bem definido de gestão de conflitos e
dificuldades. No mundo actual, aprecia-se também o testemunho dos cônjuges que
não se limitam a perdurar no tempo, mas continuam a sustentar um projecto comum
e conservam o afecto. Isto abre a porta a uma pastoral positiva, acolhedora,
que torna possível um aprofundamento gradual das exigências do Evangelho. No
entanto, muitas vezes agimos na defensiva e gastámos as energias pastorais
multiplicando os ataques ao mundo decadente, com pouca capacidade de propor e
indicar caminhos de felicidade. Muitos não sentem a mensagem da Igreja sobre o
matrimónio e a família como um reflexo claro da pregação e das atitudes de
Jesus, o qual, ao mesmo tempo que propunha um ideal exigente, não perdia jamais
a proximidade compassiva às pessoas frágeis como a samaritana ou a mulher
adúltera.
39. Isto não significa deixar de advertir a decadência cultural que não
promove o amor e a doação. As consultações que antecederam os dois últimos
Sínodos trouxeram à luz vários sintomas da «cultura do provisório». Refiro-me,
por exemplo, à rapidez com que as pessoas passam duma relação afectiva para
outra. Crêem que o amor, como acontece nas redes sociais, se possa conectar ou
desconectar ao gosto do consumidor e inclusive bloquear rapidamente. Penso
também no medo que desperta a perspectiva dum compromisso permanente, na
obsessão pelo tempo livre, nas relações que medem custos e benefícios e
mantêm-se apenas se forem um meio para remediar a solidão, ter protecção ou
receber algum serviço. Transpõe-se para as relações afectivas o que acontece
com os objectos e o meio ambiente: tudo é descartável, cada um usa e joga fora,
gasta e rompe, aproveita e espreme enquanto serve; depois… adeus. O narcisismo
torna as pessoas incapazes de olhar para além de si mesmas, dos seus desejos e
necessidades. Mas quem usa os outros, mais cedo ou mais tarde acaba por ser
usado, manipulado e abandonado com a mesma lógica. Faz impressão ver que as
rupturas ocorrem, frequentemente, entre adultos já de meia-idade que buscam uma
espécie de «autonomia» e rejeitam o ideal de envelhecer juntos cuidando-se e
apoiando-se.
40. «Correndo o risco de simplificar, poderemos dizer que vivemos numa
cultura que impele os jovens a não formarem uma família, porque privam-nos de
possibilidades para o futuro. Mas esta mesma cultura apresenta a outros tantas
opções que também eles são dissuadidos de formar uma família».[14] Nalguns
países, muitos jovens «são frequentemente levados a adiar o matrimónio por
problemas de tipo económico, laboral ou de estudo. Às vezes também por outros
motivos, tais como a influência das ideologias que desvalorizam o matrimónio e
a família, a experiência do fracasso de outros casais a que eles não se querem
expor, o medo de algo que consideram demasiado grande e sagrado, as
oportunidades sociais e os benefícios económicos derivados da convivência, uma
concepção puramente emotiva e romântica do amor, o medo de perder a liberdade e
a autonomia, a rejeição de tudo o que possa ser concebido como institucional e
burocrático».[15] Precisamos
de encontrar as palavras, as motivações e os testemunhos que nos ajudem a tocar
as cordas mais íntimas dos jovens, onde são mais capazes de generosidade, de
compromisso, de amor e até mesmo de heroísmo, para convidá-los a aceitar, com
entusiasmo e coragem, o desafio de matrimónio.
41. Os Padres sinodais aludiram a certas «tendências culturais que
parecem impor uma afetividade sem qualquer limitação, (…) uma afetividade
narcisista, instável e mutável que não ajuda os sujeitos a atingir uma maior
maturidade». Preocupa a «difusão da pornografia e da comercialização do corpo,
favorecida, entre outras coisas, por um uso distorcido da internet» e pela
«situação das pessoas que são obrigadas a praticar a prostituição». Neste contexto,
por vezes os casais sentem-se inseguros, indecisos, custando-lhes a encontrar
as formas para crescer. Muitos são aqueles que tendem a ficar nos estádios
primários da vida emocional e sexual. A crise do casal destabiliza a família e
pode chegar, através das separações e dos divórcios, a ter sérias consequências
para os adultos, os filhos e a sociedade, enfraquecendo o indivíduo e os laços
sociais».[16] As
crises conjugais são «enfrentadas muitas vezes de modo apressado e sem a
coragem da paciência, da averiguação, do perdão recíproco, da reconciliação e
até do sacrifício. Deste modo os falimentos dão origem a novas relações, novos
casais, novas uniões e novos casamentos, criando situações familiares complexas
e problemáticas para a opção cristã».[17]
42. «A própria queda demográfica, causada por uma mentalidade anti
natalista e promovida pelas políticas mundiais de saúde reprodutiva, não só
determina uma situação em que a sucessão das gerações deixa de estar garantida,
mas corre-se o risco de levar, com o tempo, a um empobrecimento económico e a
uma perda de esperança no futuro. O avanço das biotecnologias também teve um
forte impacto sobre a natalidade».[18] Podem
juntar-se outros factores, como «a industrialização, a revolução sexual, o
temor da superpopulação, os problemas económicos (...). A sociedade de consumo
também pode dissuadir as pessoas de ter filhos, só para manter a sua liberdade
e estilo de vida».[19] É
verdade que a consciência recta dos esposos, quando foram muito generosos na
transmissão da vida, pode orientá-los para a decisão de limitar o número dos
filhos por razões suficientemente sérias; e também «por amor desta dignidade da
consciência, a Igreja rejeita com todas as suas forças as intervenções
coercitivas do Estado a favor da contracepção, da esterilização e até mesmo do
aborto».[20] Estas
medidas são inaceitáveis mesmo em áreas com alta taxa de natalidade, mas é
notável que os políticos as incentivem também nalguns países que sofrem o drama
duma taxa de natalidade muito baixa. Como assinalaram os bispos da Coreia, isto
é «agir de forma contraditória e negligenciando o próprio dever».[21]
43. O enfraquecimento da fé e da prática religiosa, nalgumas sociedades,
afecta as famílias, deixando-as ainda mais sós com as suas dificuldades. Os
Padres disseram que «uma das maiores pobrezas da cultura actual é a solidão,
fruto da ausência de Deus na vida das pessoas e da fragilidade das relações. Há
também uma sensação geral de impotência face à realidade socioeconómica que,
muitas vezes, acaba por esmagar as famílias. (...) Frequentemente as famílias
sentem-se abandonadas pelo desinteresse e a pouca atenção das instituições. As
consequências negativas sob o ponto de vista da organização social são
evidentes: da crise demográfica às dificuldades educativas, da fadiga em
acolher a vida nascente ao sentir a presença dos idosos como um peso, até à
difusão dum mal-estar afectivo que às vezes chega à violência. O Estado tem a
responsabilidade de criar as condições legislativas e laborais para garantir o
futuro dos jovens e ajudá-los a realizar o seu projecto de formar uma família».[22]
44. A falta duma habitação digna ou adequada leva muitas vezes a adiar a
formalização duma relação. É preciso lembrar que «a família tem direito a uma
habitação condigna, apropriada para a vida familiar e proporcional ao número
dos seus membros, num ambiente fisicamente sadio que proporcione os serviços
básicos para a vida da família e da comunidade».[23] Uma
família e uma casa são duas realidades que se reclamam mutuamente. Este exemplo
mostra que devemos insistir nos direitos da família, e não apenas nos direitos
individuais. A família é um bem de que a sociedade não pode prescindir, mas
precisa de ser protegida.[24] A
defesa destes direitos é «um apelo profético a favor da instituição familiar,
que deve ser respeitada e defendida contra toda a agressão»,[25] sobretudo
no contexto actual em que habitualmente ocupa pouco espaço nos projectos
políticos. As famílias têm, entre outros direitos, o de «poder contar com uma
adequada política familiar por parte das autoridades públicas no campo
jurídico, económico, social e fiscal».[26] Às
vezes as angústias das famílias tornam-se dramáticas, quando têm de enfrentar a
doença de um ente querido sem acesso a serviços de saúde adequados, ou quando
se prolonga o tempo sem ter conseguido um emprego decente. «As coerções
económicas excluem o acesso das famílias à educação, à vida cultural e à vida
social activa. O actual sistema económico produz várias formas de exclusão
social. As famílias sofrem de modo particular com os problemas relativos ao
trabalho. As possibilidades para os jovens são poucas e a oferta de trabalho é
muito selectiva e precária. As jornadas de trabalho são longas e, muitas vezes,
agravadas pelo tempo gasto na deslocação. Isto não ajuda os esposos a
encontrar-se entre si e com os filhos, para alimentar diariamente as suas
relações».[27]
45. «Há muitos filhos nascidos fora do matrimónio, especialmente nalguns
países, e muitos são os que, em seguida, crescem comum só dos progenitores e num
contexto familiar alargado ou reconstituído. (...) Por outro lado, a exploração
sexual da infância constitui uma das realidades mais escandalosas e perversas
da sociedade actual. Além disso, nas sociedades feridas pela violência da
guerra, do terrorismo ou da presença do crime organizado, acabam deterioradas
as situações familiares, sobretudo nas grandes metrópoles, e nas suas
periferias cresce o chamado fenómeno dos meninos da rua».[28] O
abuso sexual das crianças torna-se ainda mais escandaloso, quando se verifica
em ambientes onde deveriam ser protegidas, particularmente nas famílias e nas comunidades
e instituições cristãs.[29]
46. As migrações «constituem outro sinal dos tempos, que deve ser
enfrentado e compreendido com todo o seu peso de consequências sobre a vida
familiar».[30] O
último Sínodo atribuiu grande importância a esta problemática ao reconhecer
que, «sob modalidades diferentes, atinge populações inteiras em várias partes
do mundo. A Igreja desempenhou, neste campo, papel de primária grandeza. A
necessidade de manter e desenvolver este testemunho evangélico (cf. Mt 25,
35) aparece hoje mais urgente do que nunca. (...) A mobilidade humana, que
corresponde ao movimento histórico natural dos povos, pode revelar-se uma
verdadeira riqueza tanto para a família que emigra como para o país que a
recebe. Caso diferente é a migração forçada das famílias, em consequência de
situações de guerra, perseguição, pobreza, injustiça, marcada pelas
vicissitudes duma viagem que, muitas vezes, põe em perigo a vida, traumatiza as
pessoas e destabiliza as famílias. O acompanhamento dos migrantes exige uma
pastoral específica dirigida tanto às famílias que emigram como aos membros dos
núcleos familiares que ficaram nos lugares de origem. Isto deve ser feito
respeitando as suas culturas, a formação religiosa e humana da sua origem, a
riqueza espiritual dos seus ritos e tradições, inclusive através dum cuidado
pastoral específico. (...) As migrações revelam-se particularmente dramáticas e
devastadoras tanto para as famílias como para as pessoas, quando têm lugar à
margem da legalidade e são sustentadas por circuitos internacionais do tráfico
de pessoas. O mesmo se pode dizer quando envolvem mulheres ou crianças não
acompanhadas, forçadas a estadias prolongadas nos locais de passagem entre um
país e outro, nos campos de refugiados, onde não é possível iniciar um percurso
de integração. A pobreza extrema e outras situações de desintegração induzem,
por vezes, as famílias até mesmo a vender os próprios filhos para a
prostituição ou o tráfico de órgãos».[31] «As
perseguições dos cristãos, bem como as de minorias étnicas e religiosas, em
várias partes do mundo, especialmente no Médio Oriente, constituem uma grande
prova: não só para a Igreja mas também para toda a comunidade internacional.
Devem ser apoiados todos os esforços para favorecer a permanência das famílias
e das comunidades cristãs nas suas terras de origem».[32]
47. Os Padres dedicaram especial atenção também «às famílias das pessoas
com deficiência, já que tal deficiência, ao irromper na vida, gera um desafio
profundo e inesperado e transtorna os equilíbrios, os desejos, as expectativas.
(...) Merecem grande admiração as famílias que aceitam, com amor, a prova
difícil dum filho deficiente. Dão à Igreja e à sociedade um valioso testemunho
de fidelidade ao dom da vida. A família poderá descobrir, juntamente com a
comunidade cristã, novos gestos e linguagens, formas de compreensão e
identidade, no percurso de acolhimento e cuidado do mistério da fragilidade. As
pessoas com deficiência são, para a família, um dom e uma oportunidade para
crescer no amor, na ajuda recíproca e na unidade. (...) A família que aceita,
com os olhos da fé, a presença de pessoas com deficiência poderá reconhecer e
garantir a qualidade e o valor de cada vida, com as suas necessidades, os seus
direitos e as suas oportunidades. Tal família providenciará assistência e
cuidados e promoverá companhia e carinho em cada fase da vida».[33] Quero
sublinhar que a atenção prestada tanto aos migrantes como às pessoas com
deficiência é um sinal do Espírito. Pois ambas as situações são paradigmáticas:
põem especialmente em questão o modo como se vive, hoje, a lógica do
acolhimento misericordioso e da integração das pessoas frágeis.
48. «A maioria das famílias respeita os idosos, rodeia-os de carinho e
considera-os uma bênção. Um agradecimento especial deve ser dirigido às
associações e movimentos familiares que trabalham a favor dos idosos, sob o
aspecto espiritual e social (...). Nas sociedades altamente industrializadas,
onde o seu número tende a aumentar enquanto diminui a taxa de natalidade, os
idosos correm o risco de ser vistos como um peso. Por outro lado, os cuidados
que requerem muitas vezes põem a dura prova os seus entes queridos».[34] «A
valorização da fase conclusiva da vida é, hoje, ainda mais necessária, porque
na sociedade actual se tenta, de todos os modos possíveis, ocultar o momento da
passagem. Às vezes, a fragilidade e dependência do idoso são iniquamente
exploradas por mero proveito económico. Muitas famílias ensinam-nos que é
possível enfrentar os últimos anos da vida, valorizando o sentido de realização
e integração de toda a existência no mistério pascal. Um grande número de
idosos é acolhido em estruturas da Igreja, onde podem viver num ambiente sereno
e familiar a nível material e espiritual. A eutanásia e o suicídio assistido
são graves ameaças para as famílias, em todo o mundo. A sua prática é legal em
muitos Estados. A Igreja, ao mesmo tempo que se opõe firmemente a tais
práticas, sente o dever de ajudar as famílias que cuidam dos seus membros
idosos e doentes».[35]
49. Quero assinalar a situação das famílias caídas na miséria,
penalizadas de tantas maneiras, onde as limitações da vida se fazem sentir de
forma lancinante. Se todos têm dificuldades, estas, numa casa muito pobre,
tornam-se mais duras.[36] Por
exemplo, se uma mulher deve criar o seu filho sozinha, devido a uma separação
ou por outras causas, e tem de ir trabalhar sem a possibilidade de o deixar com
outra pessoa, o filho cresce num abandono que o expõe a todos os tipos de risco
e fica comprometido o seu amadurecimento pessoal. Nas situações difíceis em que
vivem as pessoas mais necessitadas, a Igreja deve pôr um cuidado especial em
compreender, consolar e integrar, evitando impor-lhes um conjunto de normas
como se fossem uma rocha, tendo como resultado fazê-las sentir-se julgadas e
abandonadas precisamente por aquela Mãe que é chamada a levar-lhes a
misericórdia de Deus. Assim, em vez de oferecer a força sanadora da graça e da
luz do Evangelho, alguns querem «doutrinar» o Evangelho, transformá-lo em
«pedras mortas para as jogar contra os outros».[37]
Alguns desafios
50. As respostas recebidas nas duas consultações, efectuadas no caminho
sinodal, mencionaram as mais diversas situações que colocam novos desafios.
Além das situações já indicadas, muitos referiram-se à função educativa, que
acaba dificultada porque, entre outras causas, os pais chegam a casa cansados e
sem vontade de conversar; em muitas famílias, já não há sequer o hábito de
comer em juntos, e cresce uma grande variedade de ofertas de distracção, para
além da dependência da televisão. Isto torna difícil a transmissão da fé de
pais para filhos. Outros assinalaram que as famílias habitualmente padecem duma
enorme ansiedade; parece haver mais preocupação por prevenir problemas futuros
do que por compartilhar o presente. Isto, que é uma questão cultural, vê-se
agravado por um futuro profissional incerto, pela insegurança económica ou pelo
medo quanto ao futuro dos filhos.
51. Mencionou-se também a toxicodependência como um dos flagelos do
nosso tempo que faz sofrer muitas famílias e, não raro, acaba por destruí-las.
Algo semelhante acontece com o alcoolismo, os jogos de azar e outras
dependências. A família poderia ser o lugar da prevenção e das boas regras, mas
a sociedade e a política não chegam a perceber que uma família em risco «perde
a capacidade de reacção para ajudar os seus membros (...). Observamos as graves
consequências desta ruptura em famílias destruídas, filhos desenraizados,
idosos abandonados, crianças órfãs de pais vivos, adolescentes e jovens
desorientados e sem regras». [38] Como
apontaram os bispos do México, há tristes situações de violência familiar que
são terreno fértil para novas formas de agressividade social, porque «as
relações familiares explicam também a predisposição para uma personalidade
violenta. As famílias que influem nesta direcção são aquelas em que há uma
comunicação deficiente; aquelas em que predominam as atitudes defensivas e os
seus membros não se apoiam entre si; onde não há actividades familiares que
favoreçam a participação; as famílias onde as relações entre os pais costumam
ser conflituosas e violentas, e as relações pais-filhos se caracterizam por
atitudes hostis. A violência no seio da família é escola de ressentimento e
ódio nas relações humanas básicas».[39]
52. Ninguém pode pensar que o enfraquecimento da família como sociedade
natural fundada no matrimónio seja algo que beneficia a sociedade. Antes pelo
contrário, prejudica o amadurecimento das pessoas, o cultivo dos valores
comunitários e o desenvolvimento ético das cidades e das aldeias. Já não se
adverte claramente que só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma
mulher realiza uma função social plena, por ser um compromisso estável e tornar
possível a fecundidade. Devemos reconhecer a grande variedade de situações
familiares que podem fornecer uma certa regra de vida, mas as uniões de facto
ou entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não podem ser simplistamente
equiparadas ao matrimónio. Nenhuma união precária ou fechada à transmissão da
vida garante o futuro da sociedade. E, todavia, quem se preocupa hoje com
fortalecer os cônjuges, ajudá-los a superar os riscos que os ameaçam,
acompanhá-los no seu papel educativo, incentivar a estabilidade da união
conjugal?
53. «Nalgumas sociedades, vigora ainda a prática da poligamia; noutros
contextos, permanece a prática dos matrimónios combinados. (...) Em muitos
contextos, e não apenas ocidentais, está a difundir-se largamente a prática da
convivência que precede o matrimónio e também a prática de convivências não orientadas
para assumir a forma dum vínculo institucional».[40] Em
vários países, a legislação facilita o avanço de várias alternativas, de modo
que um matrimónio com as características de exclusividade, indissolubilidade e
abertura à vida acaba por aparecer como mais uma proposta antiquada entre
muitas outras. Avança, em muitos países, uma desconstrução jurídica da família,
que tende a adoptar formas baseadas quase exclusivamente no paradigma da
autonomia da vontade. Embora seja legítimo e justo rejeitar velhas formas de
família «tradicional», caracterizadas pelo autoritarismo e inclusive pela violência,
todavia isso não deveria levar ao desprezo do matrimónio, mas à redescoberta do
seu verdadeiro sentido e à sua renovação. A força da família «reside
essencialmente na sua capacidade de amar e ensinar a amar. Por muito ferida que
possa estar uma família, ela pode sempre crescer a partir do amor».[41]
54. Neste relance sobre a realidade, desejo salientar que, apesar das
melhorias notáveis registadas no reconhecimento dos direitos da mulher e na sua
participação no espaço público, ainda há muito que avançar nalguns países. Não
se acabou ainda de erradicar costumes inaceitáveis; destaco a violência
vergonhosa que, às vezes, se exerce sobre as mulheres, os maus-tratos
familiares e várias formas de escravidão, que não constituem um sinal de força
masculina, mas uma covarde degradação. A violência verbal, física e sexual,
perpetrada contra as mulheres nalguns casais, contradiz a própria natureza da
união conjugal. Penso na grave mutilação genital da mulher nalgumas culturas,
mas também na desigualdade de acesso a postos de trabalho dignos e aos lugares
onde as decisões são tomadas. A história carrega os vestígios dos excessos das
culturas patriarcais, onde a mulher era considerada um ser de segunda classe,
mas recordemos também o «aluguer de ventres» ou «a instrumentalização e
comercialização do corpo feminino na cultura mediática contemporânea».[42]Alguns
consideram que muitos dos problemas actuais ocorreram a partir da emancipação
da mulher. Mas este argumento não é válido, «é falso, não é verdade! Trata-se
de uma forma de machismo».[43] A
idêntica dignidade entre o homem e a mulher impele a alegrar-nos com a
superação de velhas formas de discriminação e o desenvolvimento dum estilo de
reciprocidade dentro das famílias. Se aparecem formas de feminismo que não
podemos considerar adequadas, de igual modo admiramos a obra do Espírito no
reconhecimento mais claro da dignidade da mulher e dos seus direitos.
55. O homem «desempenha um papel igualmente decisivo na vida da família,
especialmente na protecção e sustentamento da esposa e dos filhos. (...) Muitos
homens estão conscientes da importância do seu papel na família e vivem-no com
as qualidades peculiares da índole masculina. A ausência do pai penaliza
gravemente a vida familiar, a educação dos filhos e a sua integração na sociedade.
Tal ausência pode ser física, afectiva, cognitiva e espiritual. Esta carência
priva os filhos dum modelo adequado do comportamento paterno».[44]
56. Outro desafio surge de várias formas duma ideologia genericamente
chamada gender, que «nega a diferença e a reciprocidade natural de
homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base
antropológica da família. Esta ideologia leva a projectos educativos e
directrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade
afectiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e
mulher. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que
também muda com o tempo».[45] Preocupa
o facto de algumas ideologias deste tipo, que pretendem dar resposta a certas
aspirações por vezes compreensíveis, procurarem impor-se como pensamento único
que determina até mesmo a educação das crianças. É preciso não esquecer que
«sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender)
podem-se distinguir, mas não separar».[46]Por
outro lado, «a revolução biotecnológica no campo da procriação humana
introduziu a possibilidade de manipular o acto generativo, tornando-o
independente da relação sexual entre homem e mulher. Assim, a vida humana bem
como a paternidade e a maternidade tornaram-se realidades componíveis e
decomponíveis, sujeitas de modo prevalecente aos desejos dos indivíduos ou dos
casais».[47]Uma
coisa é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é
aceitar ideologias que pretendem dividir em dois os aspectos inseparáveis da
realidade. Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos
criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida
como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto
significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada.
57. Dou graças a Deus porque muitas famílias, que estão bem longe de se
considerarem perfeitas, vivem no amor, realizam a sua vocação e continuam para
diante embora caiam muitas vezes ao longo do caminho. Partindo das reflexões
sinodais, não se chega a um estereótipo da família ideal, mas um interpelante
mosaico formado por muitas realidades diferentes, cheias de alegrias, dramas e
sonhos. As realidades que nos preocupam, são desafios. Não caiamos na armadilha
de nos consumirmos em lamentações autodefensivas, em vez de suscitar uma
criatividade missionária. Em todas as situações, «a Igreja sente a necessidade
de dizer uma palavra de verdade e de esperança. (...) Os grandes valores do
matrimónio e da família cristã correspondem à busca que atravessa a existência humana».[48]Se
constatamos muitas dificuldades, estas são – como disseram os bispos da Colômbia
– um apelo para «libertar em nós as energias da esperança, traduzindo-as em
sonhos proféticos, acções transformadoras e imaginação da caridade».[49]
CAPÍTULO III: O OLHAR FIXO EM
JESUS: A VOCAÇÃO DA FAMÍLIA
58. Diante das famílias e no meio delas, deve ressoar sempre de novo o
primeiro anúncio, que é o «mais belo, mais importante, mais atraente e, ao
mesmo tempo, mais necessário»[50] e
«deve ocupar o centro da atividade evangelizadora».[51] É
o anúncio principal, «aquele que sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes
maneiras e aquele que sempre se tem de voltar a anunciar, duma forma ou
doutra».[52]Porque
«nada há de mais sólido, mais profundo, mais seguro, mais consistente e mais
sábio que esse anúncio» e «toda a formação cristã é, primariamente, o
aprofundamento do querigma».[53]
59. O nosso ensinamento sobre o matrimónio e a família não pode deixar
de se inspirar e transfigurar à luz deste anúncio de amor e ternura, se não
quiser tornar-se mera defesa duma doutrina fria e sem vida. Com efeito, o
próprio mistério da família cristãs ó se pode compreender plenamente à luz do
amor infinito do Pai, que se manifestou em Cristo entregue até ao fim e vivo
entre nós. Por isso, quero contemplar Cristo vivo que está presente em tantas
histórias de amor e invocar o fogo do Espírito sobre todas as famílias do
mundo.
60. Dentro deste quadro, o presente capítulo recolhe uma síntese da
doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família. Também aqui citarei várias
contribuições prestadas pelos Padres sinodais nas suas considerações acerca da
luz que a fé nos oferece. Eles partiram do olhar de Jesus, dizendo que Ele
«olhou para as mulheres e os homens que encontrou com amor e ternura,
acompanhando os seus passos com verdade, paciência e misericórdia, ao anunciar
as exigências do Reino de Deus».[54] De
igual modo nos acompanha, hoje, o Senhor no nosso compromisso de viver e
transmitir o Evangelho da família.
Jesus recupera e realiza plenamente o projecto divino
61. Contrariamente àqueles que proibiam o matrimónio, o Novo Testamento
ensina que «tudo o que Deus criou é bom e nada deve ser rejeitado» (1Tim 4,
4). O matrimónio é um «dom» do Senhor (cf. 1 Cor 7, 7). Ao
mesmo tempo que se dá esta avaliação positiva, acentua-se fortemente a
obrigação de cuidar deste dom divino: «Seja o matrimónio honrado por todos e
imaculado o leito conjugal» (Heb 13, 4). Este dom de Deus inclui a
sexualidade: «Não vos recuseis um ao outro» (1Cor 7, 5).
62. Os Padres sinodais lembraram que Jesus, «ao referir-Se ao desígnio
primordial sobre o casal humano, reafirma a união indissolúvel entre o homem e
a mulher, mesmo admitindo que, “por causa da dureza do vosso coração, Moisés
permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas, ao princípio, não foi assim”
(Mt 19, 8). A indissolubilidade do matrimónio (“o que Deus uniu não
o separe o homem”: Mt 19, 6) não se deve entender primariamente
como “jugo” imposto aos homens, mas como um “dom” concedido às pessoas unidas
em matrimónio. (...) A condescendência divina acompanha sempre o caminho
humano, com a sua graça, cura e transforma o coração endurecido, orientando-o
para o seu princípio, através do caminho da cruz. Nos Evangelhos, sobressai
claramente a postura de Jesus, que (...) anunciou a mensagem relativa ao
significado do matrimónio como plenitude da revelação que recupera o projecto
originário de Deus (cf. Mt 19, 3)».[55]
63. «Jesus, que reconciliou em Si todas as coisas, voltou a levar o
matrimónio e a família à sua forma original (cf. Mc10, 1-12). A
família e o matrimónio foram redimidos por Cristo(cf. Ef 5,
21-32), restaurados à imagem da Santíssima Trindade, mistério donde brota todo
o amor verdadeiro. A aliança esponsal, inaugurada na criação e revelada na
história da salvação, recebe a revelação plena do seu significado em Cristo e
na sua Igreja. O matrimónio e a família recebem de Cristo, através da Igreja, a
graça necessária para testemunhar o amor de Deus e viver a vida de comunhão. O
Evangelho da família atravessa a história do mundo desde a criação do homem à
imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-27) até à realização
do mistério da Aliança em Cristo no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro
(cf. Ap 19, 9)».[56]
64. «A postura de Jesus é paradigmática para a Igreja (...). Ele
inaugurou a sua vida pública com o sinal de Caná, realizado num banquete de
núpcias (cf. Jo 2, 1-11). (…) Compartilhou momentos diários de
amizade com a família de Lázaro e suas irmãs (cf.Lc10, 38) e com a
família de Pedro (cf. Mt 8, 14). Escutou o pranto dos pais
pelos seus filhos, restituindo-os à vida (cf. Mc 5, 41;Lc 7,
14-15) e mostrando assim o verdadeiro significado da misericórdia, a qual
implica a restauração da Aliança (cf. João Paulo II,Dives in misericordia, 4).Vê-se isto
claramente nos encontros com a mulher samaritana (cf. Jo 4,
1-30) e com a adúltera (cf. Jo 8, 1-11), nos quais a noção do
pecado é avivada perante o amor gratuito de Jesus».[57]
65. A encarnação do Verbo numa família humana, em Nazaré, comove com a
sua novidade a história do mundo. Precisamos de mergulhar no mistério do
nascimento de Jesus, no sim de Maria ao anúncio do anjo, quando foi concebida a
Palavra no seu seio; e ainda no sim de José, que deu o nome a Jesus e cuidou de
Maria; na festa dos pastores no presépio; na adoração dos Magos; na fuga para o
Egipto, em que Jesus participou no sofrimento do seu povo exilado, perseguido e
humilhado; na devota espera de Zacarias e na alegria que acompanhou o
nascimento de João Baptista; na promessa que Simeão e Ana viram cumprida no
templo; na admiração dos doutores da lei ao escutarem a sabedoria de Jesus
adolescente. E, em seguida, penetrar nos trinta longos anos em que Jesus
ganhava o pão trabalhando com suas mãos, sussurrando a oração e a tradição
crente do seu povo e formando-Se na fé dos seus pais, até fazê-la frutificar no
mistério do Reino. Este é o mistério do Natal e o segredo de Nazaré, cheio de
perfume a família! É o mistério que tanto fascinou Francisco de Assis, Teresa
do Menino Jesus e Charles de Foucauld, e do qual bebem também as famílias
cristãs para renovar a sua esperança e alegria.
66. «A aliança de amor e fidelidade, vivida pela Sagrada Família de
Nazaré, ilumina o princípio que dá forma a cada família e a torna capaz de
enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da história. Sobre este fundamento,
cada família, mesmo na sua fragilidade, pode tornar-se uma luz na escuridão do
mundo. “Aqui se aprende (…) uma lição de vida familiar. Que Nazaré nos ensine o
que é a família, a sua comunhão de amor, a sua austera e simples beleza, o seu
carácter sagrado e inviolável; aprendamos de Nazaré como é preciosa e
insubstituível a educação familiar e como é fundamental e incomparável a sua
função no plano social”(Paulo VI, Alocução em Nazaré, 5 de Janeiro
de 1964)».[58]
A família nos documentos da Igreja
67. O Concílio Ecuménico Vaticano II ocupou-se, na Constituição pastoral Gaudium et spes, da promoção da dignidade do
matrimónio e da família (cf. nn. 47-52). «Definiu o matrimónio como comunidade
de vida e amor (cf. n. 48), colocando o amor no centro da família (...). O
“verdadeiro amor entre marido e mulher” (n. 49) implica a mútua doação de si
mesmo, inclui e integra a dimensão sexual e a afectividade, correspondendo ao
desígnio divino (cf. nn. 48-49). Além disso sublinha o enraizamento dos esposos
em Cristo: Cristo Senhor “vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento
do matrimónio” (n. 48) e permanece com eles. Na encarnação, Ele assume o amor
humano, purifica-o, leva-o à plenitude e dá aos esposos, com o seu Espírito, a
capacidade de o viver, impregnando toda a sua vida com a fé, a esperança e a
caridade. Assim, os cônjuges são de certo modo consagrados e, por meio duma
graça própria, edificam o Corpo de Cristo e constituem uma igreja doméstica
(cf. Lumen gentium, 11), de tal modo que a
Igreja, para compreender plenamente o seu mistério, olha para a família cristã,
que o manifesta de forma genuína».[59]
68. Em seguida, «na esteira do Concílio Vaticano II, o Beato Paulo VI
aprofundou a doutrina sobre o matrimónio e a família. Em particular, com a
Encíclica Humanae vitae, destacou o vínculo intrínseco
entre amor conjugal e procriação: “o amor conjugal requer nos esposos uma
consciência da sua missão de ‘paternidade responsável’, sobre a qual hoje tanto
se insiste, e justificadamente, e que deve também ela ser compreendida com
exactidão (...). O exercício responsável da paternidade implica, portanto, que
os cônjuges reconheçam plenamente os próprios deveres para com Deus, para
consigo próprios, para com a família e para com a sociedade, numa justa
hierarquia de valores”(n. 10). Na Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, Paulo VI salientou a
relação entre a família e a Igreja».[60]
69. «São João Paulo II dedicou especial atenção à família, através das
suas catequeses sobre o amor humano, a Carta às famíliasGratissimam sane e sobretudo com a
Exortação apostólica Familiaris consortio. Nestes documentos, o Pontífice
definiu a família «caminho da Igreja»; ofereceu uma visão de conjunto sobre a
vocação ao amor do homem e da mulher; propôs as linhas fundamentais para a
pastoral da família e para a presença da família na sociedade. Concretamente,
ao tratar da caridade conjugal (cf. Familiaris consortio, 13), descreveu o modo
como os cônjuges, no seu amor mútuo, recebem o dom do Espírito de Cristo e
vivem a sua vocação à santidade».[61]
70. «Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est, retomou o tema da verdade
do amor entre o homem e a mulher, que se vê iluminado plenamente apenas à luz
do amor de Cristo crucificado (cf.n. 2). Sublinha que “o matrimónio baseado num
amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do relacionamento de Deus com o
seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar torna-se a medida do amor
humano”(n. 11).Além disso, na Encíclica Caritas in veritate, destaca a importância
do amor como princípio devida na sociedade (cf. n. 44), lugar onde se aprende a
experiência do bem comum».[62]
O sacramento do matrimónio
71. «A Sagrada Escritura e a Tradição abrem-nos o acesso a um
conhecimento da Trindade que Se revela com traços familiares. A família é
imagem de Deus, que (…) é comunhão de pessoas. No baptismo, a voz do Pai chamou
a Jesus Filho amado; e, neste amor, podemos reconhecer o Espírito Santo (cf. Mc 1,
10-11). Jesus, que tudo reconciliou em Si mesmo e redimiu o homem do pecado,
não só voltou a levar o matrimónio e a família à sua forma original, mas também
elevou o matrimónio a sinal sacramental do seu amor pela Igreja (cf. Mt 19,
1-12; Mc 10, 1-12; Ef 5, 21-32). Na família
humana, reunida em Cristo, é restaurada a “imagem e semelhança” da Santíssima
Trindade (cf. Gn 1, 26), mistério donde brota todo o amor
verdadeiro. O matrimónio e a família recebem de Cristo, através da Igreja, a
graça para testemunhar o Evangelho do amor de Deus».[63]
72. O sacramento do matrimónio não é uma convenção social, um rito vazio
ou o mero sinal externo dum compromisso. O sacramento é um dom para a
santificação e a salvação dos esposos, porque «a sua pertença recíproca é a
representação real, através do sinal sacramental, da mesma relação de Cristo com
a Igreja. Os esposos são, portanto, para a Igreja a lembrança permanente
daquilo que aconteceu na cruz; são um para o outro, e para os filhos,
testemunhas da salvação, da qual o sacramento os faz participar».[64] O
matrimónio é uma vocação, sendo uma resposta à chamada específica para viver o
amor conjugal como sinal imperfeito do amor entre Cristo e a Igreja. Por isso,
a decisão de se casar e formar uma família deve ser fruto dum discernimento
vocacional.
73. «O dom recíproco constitutivo do matrimónio sacramental está
enraizado na graça do baptismo, que estabelece a aliança fundamental de cada
pessoa com Cristo na Igreja. Na mútua recepção e com a graça de Cristo, os
noivos prometem-se entrega total, fidelidade e abertura à vida, e também
reconhecem como elementos constitutivos do matrimónio os dons que Deus lhes
oferece, tomando a sério o seu mútuo compromisso, em nome de Deus e perante a
Igreja. Ora, na fé, é possível assumir os bens do matrimónio como compromissos
que se podem cumprir melhor com a ajuda da graça do sacramento. (...) Portanto,
o olhar da Igreja volta-se para os esposos como o coração da família inteira,
que, por sua vez, levanta o seu olhar para Jesus».[65] O
sacramento não é uma «coisa» nem uma «força», mas o próprio Cristo, na
realidade, «vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do
matrimónio. Fica com eles, dá-lhes a coragem de O seguirem, tomando sobre si a
sua cruz, de se levantarem depois das quedas, de se perdoarem mutuamente, de
levarem o fardo um do outro».[66] O
matrimónio cristão é um sinal que não só indica quanto Cristo amou a sua Igreja
na Aliança selada na Cruz, mas torna presente esse amor na comunhão dos
esposos. Quando se unem numa só carne, representam o desposório do Filho de
Deus com a natureza humana. Por isso, «nas alegrias do seu amor e da sua vida
familiar, Ele dá-lhes, já neste mundo, um antegozo do festim das núpcias do
Cordeiro».[67] Embora
«a analogia entre o casal marido-esposa e Cristo-Igreja» seja uma «analogia
imperfeita»,[68] convida
a invocar o Senhor para que derrame o seu amor nas limitações das relações
conjugais.
74. Vivida de modo humano e santificada pelo sacramento, a união sexual
é, por sua vez, caminho de crescimento na vida da graça para os esposos. É o
«mistério nupcial».[69] O
valor da união dos corpos está expresso nas palavras do consentimento, pelas
quais se acolheram e doaram reciprocamente para partilhar a vida toda. Estas
palavras conferem um significado à sexualidade, libertando-a de qualquer
ambiguidade. Mas, na realidade, toda a vida em comum dos esposos, toda a rede
de relações que hão-de tecer entre si, com os seus filhos e com o mundo, estará
impregnada e robustecida pela graça do sacramento que brota do mistério da
Encarnação e da Páscoa, onde Deus exprimiu todo o seu amor pela humanidade e Se
uniu intimamente com ela. Os esposos nunca estarão sós, com as suas próprias
forças, a enfrentar os desafios que surgem. São chamados a responder ao dom de
Deus com o seu esforço, a sua criatividade, a sua perseverança e a sua luta
diária, mas sempre poderão invocar o Espírito Santo que consagrou a sua união,
para que a graça recebida se manifeste sem cessar em cada nova situação.
75. No sacramento do matrimónio, segundo a tradição latina da Igreja, os
ministros são o homem e a mulher que se casam,[70]os
quais, ao manifestar o seu consentimento e expressá-lo na sua entrega corpórea,
recebem um grande dom. O seu consentimento e a união dos seus corpos são os
instrumentos da acção divina que os torna uma só carne. No baptismo, ficou
consagrada a sua capacidade de se unir em matrimónio como ministros do Senhor,
para responder à vocação de Deus. Por isso, quando dois cônjuges não-cristãos
recebem o baptismo, não é necessário renovar a promessa nupcial sendo
suficiente que não a rejeitem, pois, pelo baptismo que recebem, essa união
torna-se automaticamente sacramental. O próprio direito canónico reconhece a
validade de alguns matrimónios que se celebram sem um ministro ordenado.[71] É
que a ordem natural foi assumida pela redenção de Jesus Cristo, pelo que,
«entre baptizados, não pode haver contrato matrimonial válido que não seja,
pelo mesmo facto, sacramento».[72] A
Igreja pode exigir que o acto seja público, a presença de testemunhas e outras
condições que foram variando ao longo da história, mas isto não tira, aos dois
esposos, o seu carácter de ministros do sacramento, nem diminui a centralidade
do consentimento do homem e da mulher, que é aquilo que, de por si, estabelece
o vínculo sacramental. Em todo o caso, precisamos de reflectir mais sobre a
acção divina no rito nupcial, que aparece muito evidenciada nas Igrejas
Orientais ao ressaltarem a importância da bênção sobre os contraentes como
sinal do dom do Espírito.
Sementes do Verbo e situações imperfeitas
76. «O Evangelho da família nutre também as sementes ainda à espera de
desenvolver-se e deve cuidar das árvores que perderam vitalidade e necessitam
que não as transcurem»,[73] de
modo que, partindo do dom de Cristo no sacramento, «sejam conduzidas pacientemente
mais além, chegando a um conhecimento mais rico e uma integração mais plena
deste mistério na sua vida».[74]
77. Assumindo o ensinamento bíblico de que tudo foi criado por Cristo e
para Cristo (cf. Col 1, 16), os Padres sinodais lembraram que
«a ordem da redenção ilumina e realiza a da criação. Assim, o matrimónio
natural compreende-se plenamente à luz da sua realização sacramental: só
fixando o olhar em Cristo é que se conhece cabalmente a verdade das relações
humanas. “Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado
se esclarece verdadeiramente. (...) Cristo, novo Adão, na própria revelação do
mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua
vocação sublime” (Gaudium et spes, 22). Em particular é
oportuno compreender, em chave cristocêntrica, (...) o bem dos cônjuges (bonum
coniugum)»,[75]que
inclui a unidade, a abertura à vida, a fidelidade, a indissolubilidade e, no
matrimónio cristão, também a ajuda mútua no caminho que leva a uma amizade mais
plena com o Senhor. «O discernimento da presença das semina Verbi nas
outras culturas (cf. Ad gentes, 11) pode-se aplicar também à
realidade matrimonial e familiar. Para além do verdadeiro matrimónio natural,
há elementos positivos também nas formas matrimoniais doutras tradições
religiosas»,[76] embora
não faltem também as sombras. Podemos dizer que «toda a pessoa que deseja
formar, neste mundo, uma família que ensine os filhos a alegrar-se por cada
acção que se proponha vencer o mal – uma família que mostre que o Espírito está
vivo e operante – encontrará gratidão e estima, independentemente do povo,
região ou religião a que pertença».[77]
78. «O olhar de Cristo, cuja luz ilumina todo o homem (cf. Jo 1,
9; Gaudium et spes, 22), inspira o cuidado
pastoral da Igreja pelos fiéis que simplesmente vivem juntos, que contraíram
matrimónio apenas civil ou são divorciados que voltaram a casar. Na perspectiva
da pedagogia divina, a Igreja olha com amor para aqueles que participam de modo
imperfeito na vida dela: com eles, invoca a graça da conversão; encoraja-os
afazerem o bem, a cuidarem com amor um do outro e colocarem-se ao serviço da
comunidade onde vivem e trabalham. (...) Quando a união alcança uma
estabilidade notável por meio dum vínculo público – e se reveste de afecto
profundo, responsabilidade pela prole, capacidade de superaras provações –,
pode ser vista como uma oportunidade a encaminhar para o sacramento do
matrimónio, sempre que este seja possível».[78]
79. «Perante situações difíceis e famílias feridas, é preciso lembrar
sempre um princípio geral: “Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão
obrigados a discernir bem as situações” (Familiaris consortio, 84). O grau de
responsabilidade não é igual em todos os casos, e podem existir factores que
limitem a capacidade de decisão. Por isso, ao mesmo tempo que se exprime com
clareza a doutrina, há que evitar juízos que não tenham em conta a complexidade
das diferentes situações, e é preciso estar atentos ao modo como as pessoas
vivem e sofrem por causa da sua condição».[79]
A transmissão da vida e a educação dos filhos
80. O matrimónio é, em primeiro lugar, uma «íntima comunidade da vida e
do amor conjugal»,[80]que
constitui um bem para os próprios esposos;[81]e
a sexualidade «ordena-se para o amor conjugal do homem e da mulher».[82]Por
isso, também «os esposos a quem Deus não concedeu a graça de ter filhos podem
ter uma vida conjugal cheia de sentido, humana e cristãmente falando».[83]Contudo,
esta união está ordenada para a geração «por sua própria natureza».[84]O
bebé que chega «não vem de fora juntar-se ao amor mútuo dos esposos; surge no
próprio coração deste dom mútuo, do qual é fruto e complemento».[85]Não
aparece como o final dum processo, mas está presente desde o início do amor
como uma característica essencial que não pode ser negada sem mutilar o próprio
amor. Desde o início, o amor rejeita qualquer impulso para se fechar em si
mesmo, e abre-se a uma fecundidade que o prolonga para além da sua própria
existência. Assim nenhum acto sexual dos esposos pode negar este significado,[86]embora,
por várias razões, nem sempre possa efectivamente gerar uma nova vida.
81. O filho pede para nascer, não de qualquer maneira, mas deste amor,
porque ele «não é uma dívida, mas uma dádiva»,[87]que
é «o fruto do acto específico do amor conjugal de seus pais».[88] Com
efeito, «segundo a ordem da criação, o amor conjugal entre um homem e uma
mulher e a transmissão da vida estão ordenados reciprocamente (cf. Gn 1,
27-28). Deste modo, o Criador tornou participantes da obra da sua criação o
homem e a mulher e, ao mesmo tempo, fê-los instrumentos do seu amor, confiando
à sua responsabilidade o futuro da humanidade através da transmissão da vida
humana».[89]
82. Os Padres sinodais referiram que «não é difícil constatar como se
está espalhando uma mentalidade que reduza geração da vida a uma variável dos
projectos individuais ou dos cônjuges».[90] A
doutrina da Igreja «ajuda a viver de maneira harmoniosa e consciente a comunhão
entre os cônjuges, em todas as suas dimensões, juntamente com a responsabilidade
geradora. É preciso redescobrira mensagem da Encíclica Humanae vitae de Paulo VI, que sublinha
a necessidade de respeitar a dignidade da pessoa na avaliação moral dos métodos
de regulação da natalidade. (...)A escolha da adopção e do acolhimento exprime
uma fecundidade particular da experiência conjugal».[91] Com
particular gratidão, a Igreja «apoia as famílias que acolhem, educam e rodeiam
de carinho os filhos deficientes».[92]
83. Neste contexto, não posso deixar de afirmar que, se a família é o
santuário da vida, o lugar onde a vida é gerada e cuidada, constitui uma
contradição lancinante fazer dela o lugar onde a vida é negada e destruída. É
tão grande o valor duma vida humana e inalienável o direito à vida do bebé
inocente que cresce no ventre de sua mãe, que de modo nenhum se pode afirmar
como um direito sobre o próprio corpo a possibilidade de tomar decisões sobre
esta vida que é fim em si mesma e nunca poderá ser objecto de domínio doutro
ser humano. A família protege a vida em todas as fases da mesma, incluindo o
seu ocaso. Por isso, «a quem trabalha nas estruturas sanitárias, lembra-se a
obrigação moral da objecção de consciência. Da mesma forma, a Igreja não só
sente a urgência de afirmar o direito à morte natural, evitando o excesso
terapêutico e a eutanásia», mas também «rejeita firmemente a pena de morte».[93]
84. Os Padres quiseram sublinhar também que «um dos desafios
fundamentais que as famílias enfrentam hoje é seguramente o desafio educativo,
que se tornou ainda mais difícil e complexo por causa da realidade cultural
actual e da grande influência dos meios de comunicação».[94] «A
Igreja desempenha um papel precioso de apoio às famílias, a começar pela
iniciação cristã, através de comunidades acolhedoras».[95] Mas
parece-me muito importante lembrar que a educação integral dos filhos é,
simultaneamente, «dever gravíssimo» e «direito primário» dos pais.[96] Não
é apenas um encargo ou um peso, mas também um direito essencial e
insubstituível que estão chamados a defender e que ninguém deveria pretender
tirar-lhes. O Estado oferece um serviço educativo de maneira subsidiária,
acompanhando a função não-delegável dos pais, que têm direito de poder escolher
livremente o tipo de educação – acessível e de qualidade – que querem dar aos
seus filhos, de acordo com as suas convicções. A escola não substitui os pais;
serve-lhes de complemento. Este é um princípio básico: «qualquer outro
participante no processo educativo não pode operar senão em nome dos pais, com
o seu consenso e, em certa media, até mesmo por seu encargo».[97]Infelizmente,
«abriu-se uma fenda entre família e sociedade, entre família e escola; hoje, o
pacto educativo quebrou-se; e, assim, a aliança educativa da sociedade com a
família entrou em crise».[98]
85. A Igreja é chamada a colaborar, com uma acção pastoral adequada,
para que os próprios pais possam cumprir a sua missão educativa; e sempre o
deve fazer, ajudando-os a valorizar a sua função específica e a reconhecer que
quantos recebem o sacramento do matrimónio são transformados em verdadeiros
ministros educativos, pois, quando formam os seus filhos, edificam a Igreja[99] e,
fazendo-o, aceitam uma vocação que Deus lhes propõe.[100]
A família e a Igreja
86. «Com íntima alegria e profunda consolação, a Igreja olha para as
famílias que permanecem fiéis aos ensinamentos do Evangelho, agradecendo-lhes
pelo testemunho que dão e encorajando-as. Com efeito, graças a elas, torna-se
credível a beleza do matrimónio indissolúvel e fiel para sempre. Na família,
“como numa igreja doméstica” (Lumen gentium, 11), amadurece a primeira experiência
eclesial da comunhão entre as pessoas, na qual, por graça, se reflecte o
mistério da Santíssima Trindade. “É aqui que se aprende a tenacidade e a
alegria no trabalho, o amor fraterno, o perdão generoso e sempre renovado, e
sobretudo o culto divino, pela oração e pelo oferecimento da própria vida” (Catecismo da Igreja Católica, 1657)».[101]
87. A Igreja é família de famílias, constantemente enriquecida pela vida
de todas as igrejas domésticas. Assim, «em virtude do sacramento do matrimónio,
cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem para a Igreja. Nesta
perspectiva, será certamente um dom precioso, para o momento actual da Igreja,
considerar também a reciprocidade entre família e Igreja: a Igreja é um bem
para a família, a família é um bem para a Igreja. A salvaguarda deste dom
sacramental do Senhor compete não só à família individual, mas a toda a
comunidade cristã».[102]
88. O amor vivido nas famílias é uma força permanente para a vida da
Igreja. «O fim unitivo do matrimónio é um apelo constante a crescer e
aprofundar este amor. Na sua união de amor, os esposos experimentam a beleza da
paternidade e da maternidade; partilham projectos e fadigas, anseios e
preocupações; aprendem a cuidar um do outro e a perdoar-se mutuamente. Neste
amor, celebram os seus momentos felizes e apoiam-se nos episódios difíceis da
história da sua vida. (...)A beleza do dom recíproco e gratuito, a alegria pela
vida que nasce e a amorosa solicitude de todos os seus membros, desde os
pequeninos aos idosos, são apenas alguns dos frutos que tornam única e
insubstituível a resposta à vocação da família»,[103] tanto
para a Igreja como para a sociedade inteira.
CAPÍTULO IV: O AMOR NO MATRIMÓNIO
89. Tudo o que foi dito não é suficiente para exprimir o Evangelho do
matrimónio e da família, se não nos detivermos particularmente a falar do amor.
Com efeito, não poderemos encorajar um caminho de fidelidade e doação
recíproca, se não estimularmos o crescimento, a consolidação e o aprofundamento
do amor conjugal e familiar. De facto, a graça do sacramento do matrimónio
destina-se, antes de mais nada, «a aperfeiçoar o amor dos cônjuges».[104] Também
aqui é verdade que, «ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas,
se não tiver amor, nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e
entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor de nada me vale» (1Cor 13,
2-3). Mas a palavra «amor», uma das mais usadas, muitas vezes aparece
desfigurada.[105]
O nosso amor quotidiano
90. No chamado hino à caridade escrito por São Paulo, vemos algumas
características do amor verdadeiro:
«O amor é paciente,
o amor é prestável;
não é invejoso,
não é arrogante nem orgulhoso,
nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse,
não se irrita,
nem guarda ressentimento,
não se alegra com a injustiça,
mas rejubila com a verdade.
Tudo desculpa,
tudo crê,
tudo espera,
tudo suporta» (1Cor 13, 4-7).
Isto pratica-se e cultiva-se na vida que os esposos partilham dia-a-dia
entre si e com os seus filhos. Por isso, vale a pena deter-se a esclarecer o
significado das expressões deste texto, tendo em vista uma aplicação à
existência concreta de cada família.
Paciência
91. A primeira palavra usada é «macrothymei». A sua tradução não
é simplesmente «suporta tudo», porque esta ideia é expressa no final do
versículo 7. O sentido encontra-se na tradução grega do texto do Antigo
Testamento onde se diz que Deus é «lento para a ira» (Nm 14, 18;
cf. Ex 34, 6). Uma pessoa mostra-se paciente, quando não se
deixa levar pelos impulsos interiores e evita agredir. A paciência é uma
qualidade do Deus da Aliança, que convida a imitá-Lo também na vida familiar.
Os textos onde Paulo usa este termo devem ser lidos à luz do livro da Sabedoria
(cf. 11, 23; 12, 2.15-18): ao mesmo tempo que se louva a moderação de Deus para
dar tempo ao arrependimento, insiste-se no seu poder que se manifesta quando
actua com misericórdia. A paciência de Deus é exercício da misericórdia de Deus
para com o pecador e manifesta o verdadeiro poder.
92. Ter paciência não é deixar que nos maltratem permanentemente, nem
tolerar agressões físicas, ou permitir que nos tratem como objectos. O problema
surge quando exigimos que as relações sejam idílicas, ou que as pessoas sejam
perfeitas, ou quando nos colocamos no centro esperando que se cumpra unicamente
a nossa vontade. Então tudo nos impacienta, tudo nos leva a reagir com
agressividade. Se não cultivarmos a paciência, sempre acharemos desculpas para
responder com ira, acabando por nos tornarmos pessoas que não sabem conviver,
anti-sociais incapazes de dominar os impulsos, e a família tornar-se-á um campo
de batalha. Por isso, a Palavra de Deus exorta-nos: «Toda a espécie de azedume,
raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a
maldade» (Ef 4, 31). Esta paciência reforça-se quando reconheço que
o outro, assim como é, também tem direito a viver comigo nesta terra. Não
importa se é um estorvo para mim, se altera os meus planos, se me molesta com o
seu modo de ser ou com as suas ideias, se não é em tudo como eu esperava. O
amor possui sempre um sentido de profunda compaixão, que leva a aceitar o outro
como parte deste mundo, mesmo quando age de modo diferente daquilo que eu
desejaria.
Atitude de serviço
93. Vem depois a palavra jrestéuetai – a única vez que
aparece em toda a Bíblia –, que deriva de jrestós (pessoa boa,
que mostra a sua bondade nas acções). Mas pelo lugar onde está, ou seja, em
estrito paralelismo com o verbo anterior, é seu complemento. Deste modo Paulo
pretende esclarecer que a «paciência», nomeada em primeiro lugar, não é uma
postura totalmente passiva, mas há-de ser acompanhada por uma actividade, uma
reacção dinâmica e criativa perante os outros. Indica que o amor beneficia e
promove os outros. Por isso, traduz-se como «prestável».
94. No conjunto do texto, vê-se que Paulo quer insistir que o amor não é
apenas um sentimento, mas deve ser entendido no sentido que o verbo «amar»tem
em hebraico: «fazer o bem». Como dizia Santo Inácio de Loyola, «o amor deve ser
colocado mais nas obras do que nas palavras».[106] Assim
poderá mostrar toda a sua fecundidade, permitindo-nos experimentara felicidade
de dar, a nobreza e grandeza de doar-se superabundantemente, sem calcular nem
reclamar pagamento, mas apenas pelo prazer de dar e servir.
Curando a inveja
95. Em seguida rejeita-se, como contrária ao amor, uma atitude expressa
como zeloi (ciúme ou inveja). Significa que, no amor, não há
lugar para sentir desgosto pelo bem do outro (cf. Act 7, 9;17,
5). A inveja é uma tristeza pelo bem alheio, demonstrando que não nos interessa
a felicidade dos outros, porque estamos concentrados exclusivamente no nosso
bem-estar. Enquanto o amor nos faz sair de nós mesmos, a inveja leva a
centrar-nos em nós próprios. O verdadeiro amor aprecia os sucessos alheios, não
os sente como uma ameaça, libertando-se do sabor amargo da inveja. Aceita que
cada um tenha dons distintos e caminhos diferentes na vida; e,
consequentemente, procura descobrir o seu próprio caminho para ser feliz,
deixando que os outros encontrem o deles.
96. Em última análise, trata-se de cumprir o que pedem os dois últimos
mandamentos da Lei de Deus: «Não desejarás a casa do teu próximo. Não desejarás
a mulher do teu próximo, o seu servo, a sua serva, o seu boi, o seu burro, e
tudo o que é do teu próximo» (Ex 20, 17). O amor leva-nos a uma
apreciação sincera de cada ser humano, reconhecendo o seu direito à felicidade.
Amo aquela pessoa, vejo-a com o olhar de Deus Pai, que nos dá tudo «para nosso
usufruto» (1Tim 6, 17), e consequentemente aceito, no meu íntimo,
que ela possa usufruir dum momento bom. Entretanto esta mesma raiz do amor
leva-me a rejeitar a injustiça de alguns terem muito e outros não terem nada,
ou induz-me a procurar que os próprios descartáveis da sociedade possam viver
um pouco de alegria. Mas isto não é inveja; são anseios de equidade.
Sem ser arrogante nem se orgulhar
97. Segue-se o termo perpereuetai, que indica vanglória,
desejo de se mostrar superior para impressionar os outros com atitude pedante e
um pouco agressiva. Quem ama não só evita falar muito de si mesmo, mas, porque
está centrado nos outros, sabe manter-se no seu lugar sem pretender estar no
centro. A palavra seguinte – physioutai – é muito semelhante,
indicando que o amor não é arrogante. Literalmente afirma que não se
«engrandece» diante dos outros; mas indica algo de mais subtil. Não se trata
apenas duma obsessão por mostrar as próprias qualidades; é pior: perde-se o
sentido da realidade, a pessoa considera-se maior do que é, porque se crê mais
«espiritual» ou «sábia». Paulo usa este verbo noutras ocasiões, para dizer, por
exemplo, que «a ciência incha», ao passo que «a caridade edifica» (1Cor 8,
1). Por outras palavras, alguns julgam-se grandes, porque sabem mais do que os
outros, dedicando-se a impor-lhes exigências e a controlá-los; quando, na
realidade, o que nos faz grandes é o amor que compreende, cuida, integra, está
atento aos fracos. Noutro versículo, usa-o para criticar aqueles que «se
tornaram insolentes» (1Cor 4, 18), mas, na realidade, têm mais
palavreado do que verdadeiro «poder» do Espírito (cf. 1Cor 4,
19).
98. É importante que os cristãos vivam isto no seu modo de tratar os
familiares pouco formados na fé, frágeis ou menos firmes nas suas convicções.
Às vezes, dá-se o contrário: as pessoas que, no seio da família, se consideram
mais desenvolvidas, tornam-se arrogantes insuportáveis. A atitude de humildade
aparece aqui como algo que faz parte do amor, porque, para poder compreender,
desculpar ou servir os outros de coração, é indispensável curar o orgulho e
cultivar a humildade. Jesus lembrava aos seus discípulos que, no mundo do
poder, cada um procura dominar o outro, e acrescentava: «não seja assim entre
vós» (Mt 20, 26). A lógica do amor cristão não é a de quem se
considera superior aos outros e precisa de fazer-lhes sentir o seu poder, mas a
de «quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo» (Mt 20,
27). Na vida familiar, não pode reinar a lógica do domínio de uns sobre os
outros, nem a competição para ver quem é mais inteligente ou poderoso, porque
esta lógica acaba com o amor. Vale também para a família o seguinte conselho:
«Revesti-vos todos de humildade no trato uns com os outros, porque Deus opõe-se
aos soberbos, mas dá a sua graça aos humildes» (1Ped 5, 5).
Amabilidade
99. Amar é também tornar-se amável, e nisto está o sentido do termo asjemonéi.
Significa que o amor não age rudemente, não actua de forma inconveniente, não
se mostra duro no trato. Os seus modos, as suas palavras, os seus gestos são
agradáveis; não são ásperos, nem rígidos. Detesta fazer sofrer os outros. A
cortesia «é uma escola de sensibilidade e altruísmo», que exige que a pessoa
«cultive a sua mente e os seus sentidos, aprenda a ouvir, a falar e, em certos
momentos, a calar».[107] Ser
amável não é um estilo que o cristão possa escolher ou rejeitar: faz parte das
exigências irrenunciáveis do amor, por isso «todo o ser humano está obrigado a
ser afável com aqueles que o rodeiam».[108] Diariamente
«entrar na vida do outro, mesmo quando faz parte da nossa existência, exige a
delicadeza duma atitude não invasiva, que renova a confiança e o respeito.
(...) E quanto mais íntimo e profundo for o amor, tanto mais exigirá o respeito
pela liberdade e a capacidade de esperar que o outro abra a porta do seu
coração».[109]
100. A fim de se predispor para um verdadeiro encontro com o outro,
requer-se um olhar amável pousado nele. Isto não é possível quando reina um
pessimismo que põe em evidência os defeitos e erros alheios, talvez para
compensar os próprios complexos. Um olhar amável faz com que nos detenhamos
menos nos limites do outro, podendo assim tolerá-lo e unirmo-nos num projecto
comum, apesar de sermos diferentes. O amor amável gera vínculos, cultiva laços,
cria novas redes de integração, constrói um tecido social firme. Deste modo,
uma pessoa protege-se a si mesma, pois, sem sentido de pertença, não se pode
sustentar uma entrega aos outros, acabando cada um por buscar apenas as
próprias conveniências, e a convivência torna-se impossível. Uma pessoa
anti-social julga que os outros existem para satisfazer as suas necessidades e,
quando o fazem, cumprem apenas o seu dever. Neste caso, não haveria espaço para
a amabilidade do amor e a sua linguagem. A pessoa que ama é capaz de dizer
palavras de incentivo, que reconfortam, fortalecem, consolam, estimulam.
Vejamos, por exemplo, algumas palavras que Jesus dizia às pessoas: «Filho, tem
confiança!» (Mt 9, 2). «Grande é a tua fé!» (Mt 15,
28). «Levanta-te!» (Mc 5, 41). «Vai em paz» (Lc 7, 50).
«Não temais!» (Mt 14, 27). Não são palavras que humilham,
angustiam, irritam, desprezam. Na família, é preciso aprender esta linguagem
amável de Jesus.
Desprendimento
101. Como se diz muitas vezes, para amar os outros, é preciso primeiro
amar-se a si mesmo. Todavia este hino à caridade afirma que o amor «não procura
o seu próprio interesse», ou «não procura o que é seu». Esta expressão aparece
ainda noutro texto: «Não tenha cada um em vista os próprios interesses, mas
todos e cada um exactamente os interesses dos outros» (Flp 2,
4).Perante uma afirmação assim clara da Sagrada Escritura, deve-se evitar de
dar prioridade ao amor a si mesmo, como se fosse mais nobre do que o dom de si
aos outros. Uma certa prioridade do amor a si mesmo só se pode entender como
condição psicológica, pois uma pessoa que seja incapaz de se amar a si mesma
sente dificuldade em amar os outros: «Para quem será bom aquele que é mau para
si mesmo? (...) Não há pior do que aquele que é avaro para si mesmo» (Sir 14,
5-6).
102. Mas o próprio Tomás de Aquino explicou «ser mais próprio da
caridade querer amar do que querer ser amado»,[110] e
que de facto «as mães, que são as que mais amam, procuram mais amar do que ser
amadas».[111] Por
isso, o amor pode superar a justiça e transbordar gratuitamente «sem nada
esperar em troca» (Lc 6, 35), até chegar ao amor maior que é «dar a
vida» pelos outros (Jo 15, 13). Mas será possível um desprendimento
assim, que permite dar gratuitamente e dar até ao fim? Sem dúvida, porque é o
que pede o Evangelho: «Recebestes de graça, dai de graça» (Mt 10,
8).
Sem violência interior
103. Se a primeira expressão do hino nos convidava à paciência, que
evita reagir bruscamente perante as fraquezas ou erros dos outros, agora aparece
outra palavra – paroxýnetai –que diz respeito a uma reacção
interior de indignação provocada por algo exterior. Trata-se de uma violência
interna, uma irritação recôndita que nos põe à defesa perante os outros, como
se fossem inimigos molestos a evitar. Alimentar esta agressividade íntima, de
nada aproveita. Serve apenas para nos adoentar, acabando por nos isolar. A
indignação é saudável, quando nos leva a reagir perante uma grave injustiça;
mas é prejudicial, quando tende a impregnar todas as nossas atitudes para com
os outros.
104. O Evangelho convida a olhar primeiro a trave na própria vista (cf. Mt 7,
5), e nós, cristãos, não podemos ignorar o convite constante da Palavra de Deus
para não se alimentar a ira: «Não te deixes vencer pelo mal» (Rm 12,
21); «não nos cansemos de fazer o bem» (Gal 6, 9). Uma coisa é
sentir a força da agressividade que irrompe, e outra é consentir nela, deixar
que se torne uma atitude permanente: «Se vos irardes, não pequeis; que o sol
não se ponha sobre o vosso ressentimento» (Ef 4, 26). Por isso,
nunca se deve terminar o dia sem fazer as pazes na família. «E como devo fazer
as pazes? Ajoelhar-me? Não! Para restabelecer a harmonia familiar basta um
pequeno gesto, uma coisa de nada. É suficiente uma carícia, sem palavras. Mas
nunca permitais que o dia em família termine sem fazer as pazes».[112] A
reacção interior perante uma moléstia que nos causam os outros, deveria ser,
antes de mais nada, abençoar no coração, desejar o bem do outro, pedir a Deus
que o liberte e cure. «Respondei com palavras de bênção, pois a isto fostes
chamados: a herdar uma bênção» (1Ped 3, 9). Se tivermos de lutar
contra um mal, façamo-lo; mas sempre digamos «não» à violência interior.
Perdão
105. Se permitirmos a entrada dum mau sentimento no nosso íntimo, damos
lugar ao ressentimento que se aninha no coração. A frase logízetai to
kakón significa que se «tem em conta o mal», «trá-lo gravado», ou
seja, está ressentido. O contrário disto é o perdão; perdão fundado numa
atitude positiva que procura compreender a fraqueza alheia e encontrar
desculpas para a outra pessoa, como Jesus que diz: «Perdoa-lhes, Pai, porque
não sabem o que fazem» (Lc 23, 34). Entretanto a tendência costuma
ser a de buscar cada vez mais culpas, imaginar cada vez mais maldades, supor
todo o tipo de más intenções, e assim o ressentimento vai crescendo e cria
raízes. Deste modo, qualquer erro ou queda do cônjuge pode danificar o vínculo
de amor e a estabilidade familiar. O problema é que, às vezes, atribui-se a
tudo a mesma gravidade, com o risco de tornar-se cruel perante qualquer erro do
outro. A justa reivindicação dos próprios direitos torna-se mais uma persistente
e constante sede de vingança do que uma sã defesa da própria dignidade.
106. Quando estivermos ofendidos ou desiludidos, é possível e desejável
o perdão; mas ninguém diz que seja fácil. A verdade é que «a comunhão familiar
só pode ser conservada e aperfeiçoada com grande espírito de sacrifício. Exige,
de facto, de todos e de cada um, pronta e generosa disponibilidade à
compreensão, à tolerância, ao perdão, à reconciliação. Nenhuma família ignora
como o egoísmo, o desacordo, as tensões, os conflitos agridem, de forma
violenta e às vezes mortal, a comunhão: daqui as múltiplas e variadas formas de
divisão da vida familiar».[113]
107. Hoje sabemos que, para se poder perdoar, precisamos de passar pela
experiência libertadora de nos compreendermos e perdoarmos a nós mesmos.
Quantas vezes os nossos erros ou o olhar crítico das pessoas que amamos nos fizeram
perder o amor a nós próprios; isto acaba por nos levar a acautelar-nos dos
outros, esquivando-nos do seu afecto, enchendo-nos de suspeitas nas relações
interpessoais. Então, poder culpar os outros torna-se um falso alívio. Faz
falta rezar com a própria história, aceitar-se a si mesmo, saber conviver comas
próprias limitações e inclusive perdoar-se, para poder ter esta mesma atitude
com os outros.
108. Mas isto pressupõe a experiência de ser perdoados por Deus,
justificados gratuitamente e não pelos nossos méritos. Fomos envolvidos por um
amor prévio a qualquer obra nossa, que sempre dá uma nova oportunidade, promove
e incentiva. Se aceitamos que o amor de Deus é incondicional, que o carinho do
Pai não se deve comprar nem pagar, então poderemos amar sem limites, perdoar
aos outros, ainda que tenham sido injustos para connosco. Caso contrário, a
nossa vida em família deixará de ser um lugar de compreensão, companhia e
incentivo, e tornar-se-á um espaço de permanente tensão ou de castigo mútuo.
Alegrar-se com os outros
109. A expressão jaireiepi te adikíaindica algo de negativo
arraigado no segredo do coração da pessoa. É a atitude venenosa de quem, ao ver
feita a alguém uma injustiça, se alegra. A frase é completada pela seguinte,
que o diz de forma positiva: sygjairei te alétheia – rejubila
com a verdade. Por outras palavras, alegra-se como bem do outro, quando se
reconhece a sua dignidade, quando se aprecia mas suas capacidades e as suas
boas obras. Isto é impossível para quem sente a necessidade de estar sempre a
comparar-se ou a competir, inclusive com o próprio cônjuge, até ao ponto de se
alegrar secretamente com os seus fracassos.
110. Quando uma pessoa que ama pode fazer algo de bom pelo outro, ou
quando vê que a vida está a correr bem ao outro, vive isso com alegria e,
assim, dá glória a Deus, porque «Deus ama quem dá com alegria» (2Cor 9,
7), nosso Senhor aprecia de modo especial quem se alegra com a felicidade do
outro. Se não alimentamos a nossa capacidade de rejubilar como bem do outro,
concentrando-nos sobretudo nas nossas próprias necessidades, condenamo-nos a
viver com pouca alegria, porque – como disse Jesus – «a felicidade está mais em
dar do que em receber» (At 20, 35). A família deve ser sempre o
lugar onde uma pessoa que consegue algo de bom na vida, sabe que ali se vão
congratular com ela.
Tudo desculpa
111. O elenco é completado com quatro expressões que falam duma
totalidade: «tudo». Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. Assim
se destaca vigorosamente o dinamismo contracorrente do amor, capaz de enfrentar
qualquer coisa que o possa ameaçar.
112. Em primeiro lugar, diz-se que «tudo desculpa – panta stégei».
É diferente de «não ter em conta o mal», porque este termo tem a ver com o uso
da língua; pode significar «guardar silêncio» a propósito do mal que possa
haver noutra pessoa. Implica limitar o juízo, conter a inclinação para se
emitir uma condenação dura e implacável: «Não condeneis e não sereis
condenados» (Lc 6, 37). Embora isto vá contra o uso que
habitualmente fazemos da língua, a Palavra de Deus pede-nos: «Não faleis mal
uns dos outros, irmãos» (Tg 4, 11). Deter-se a danificar a imagem
do outro é uma maneira de reforçar a própria, de descarregar ressentimentos e
invejas, sem se importar com o dano causado. Muitas vezes esquece-se que a
difamação pode ser um grande pecado, uma grave ofensa a Deus, quando afecta
seriamente a boa fama dos outros, causando-lhes danos muito difíceis de
reparar. Por isso a Palavra de Deus se mostra tão dura com a língua, dizendo
que «é um mundo de iniquidade [que] contamina todo o corpo» (Tg 3,
6), «um mal incontrolável, carregado de veneno mortal» (Tg 3, 8).
Se «com ela amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus» (Tg 3,
9), o amor faz o contrário, defendendo a imagem dos outros e com uma delicadeza
tal que leva mesmo a preservar a boa fama dos inimigos. Ao defender a lei
divina, é preciso nunca esquecer esta exigência do amor.
113. Os esposos, que se amam e se pertencem, falam bem um do outro,
procuram mostrar mais o lado bom do cônjuge do que as suas fraquezas e erros.
Em todo o caso, guardam silêncio para não danificar a sua imagem. Mas não é
apenas um gesto externo, brota duma atitude interior. Também não é a ingenuidade
de quem pretende não ver as dificuldades e os pontos fracos do outro, mas a
perspectiva ampla de quem coloca estas fraquezas e erros no seu contexto;
lembra-se de que estes defeitos constituem apenas uma parte, não são a
totalidade do ser do outro: um facto desagradável no relacionamento não é a
totalidade desse relacionamento. Assim é possível aceitar, com simplicidade,
que todos somos uma complexa combinação de luzes e sombras. O outro não é
apenas aquilo que me incomoda; é muito mais do que isso. E, pela mesma razão,
não lhe exijo que seja perfeito o seu amor para o apreciar: ama-me como é e
como pode, com os seus limites, mas o facto de o seu amor ser imperfeito não
significa que seja falso ou que não seja real. É real, mas limitado e terreno.
Por isso, se eu lhe exigir demais, de alguma maneira mo fará saber, pois não
poderá nem aceitará desempenhar o papel dum ser divino nem estar ao serviço de
todas as minhas necessidades. O amor convive com a imperfeição, desculpa-a e
sabe guardar silêncio perante os limites do ser amado.
Confia
114. «Panta pisteuei – tudo crê». Pelo contexto, não se deve
entender esta «fé» em sentido teológico, mas no sentido comum de «confiança».
Não se trata apenas de não suspeitar que o outro esteja mentindo ou enganando;
esta confiança básica reconhece a luz acesa por Deus que se esconde por detrás
da escuridão, ou a brasa ainda acesa sob as cinzas.
115. É precisamente esta confiança que torna possível uma relação em
liberdade. Não é necessário controlar o outro, seguir minuciosamente os seus
passos, para evitar que fuja dos meus braços. O amor confia, deixa em
liberdade, renuncia a controlar tudo, a possuir, a dominar. Esta liberdade, que
possibilita espaços de autonomia, abertura ao mundo e novas experiências,
consente que a relação se enriqueça e não se transforme numa endogamia sem
horizontes. Assim, ao reencontrar-se, os cônjuges podem viver a alegria de
partilhar o que receberam e aprenderam fora do circuito familiar. Ao mesmo
tempo torna possível a sinceridade e a transparência, porque uma pessoa, quando
sabe que os outros confiam nela e apreciam a bondade basilar do seu ser,
mostra-se como é, sem dissimulações. Pelo contrário, quando alguém sabe que
sempre suspeitam dele, julgam-no sem compaixão e não o amam incondicionalmente,
preferirá guardar os seus segredos, esconder as suas quedas e fraquezas, fingir
o que não é. Concluindo, uma família, onde reina uma confiança sólida,
carinhosa e, suceda o que suceder, sempre se volta a confiar, permite o
florescimento da verdadeira identidade dos seus membros, fazendo com que se
rejeite espontaneamente o engano, a falsidade e a mentira.
Espera
116. Panta elpízei: não desespera do futuro. Ligado à
palavra anterior, indica a esperança de quem sabe que o outro pode mudar;
sempre espera que seja possível um amadurecimento, um inesperado surto de
beleza, que as potencialidades mais recônditas do seu ser germinem algum dia.
Não significa que, nesta vida, tudo vai mudar; implica aceitar que nem tudo
aconteça como se deseja, mas talvez Deus escreva direito por linhas tortas e
saiba tirar algum bem dos males que não se conseguem vencer nesta terra.
117. Aqui aparece a esperança no seu sentido pleno, porque inclui a
certeza duma vida para além da morte. Aquela pessoa, com todas as suas fraquezas,
é chamada à plenitude do Céu: lá, completamente transformada pela ressurreição
de Cristo, cessarão de existir as suas fraquezas, trevas e patologias; lá, o
verdadeiro ser daquela pessoa resplandecerá com toda a sua potência de bem e
beleza. Isto permite-nos, no meio das moléstias desta terra, contemplar aquela
pessoa com um olhar sobrenatural, à luz da esperança, e aguardar aquela
plenitude que, embora hoje não seja visível, há-de receber um dia no Reino
celeste.
Tudo suporta
118. Panta hypoménei significa que suporta, com
espírito positivo, todas as contrariedades. É manter-se firme no meio dum
ambiente hostil. Não consiste apenas em tolerar algumas coisas molestas, mas é
algo de mais amplo: uma resistência dinâmica e constante, capaz de superar qualquer
desafio. É amor que apesar de tudo não desiste, mesmo que todo o contexto
convide a outra coisa. Manifesta uma dose de heroísmo tenaz, de força contra
qualquer corrente negativa, uma opção pelo bem que nada pode derrubar. Isto
lembra-me Martin Luther King, quando reafirmava a opção pelo amor fraterno,
mesmo nomeio das piores perseguições e humilhações: «A pessoa que mais te
odeia, tem algo de bom nela; mesmo a nação que mais odeia, tem algo de bom
nela; mesmo a raça que mais odeia, tem algo de bom nela. E, quando chegas ao
ponto de fixar o rosto de cada ser humano e, bem no fundo dele, vês o que a
religião chama a “imagem de Deus”, começas, não obstante tudo, a amá-lo. Não
importa o que faça, lá vês a imagem de Deus. Há um elemento de bondade de que nunca
poderás livrar-te. (...) Outra forma de amares o teu inimigo é esta: quando
surge a oportunidade de derrotares o teu inimigo, aquele é o momento em que
deves decidir não o fazer. (...) Quando te elevas ao nível do amor, da sua
grande beleza e poder, a única coisa que procuras derrotar são os sistemas
malignos. Às pessoas que caíram na armadilha deste sistema, tu ama-las, mas
procuras derrotar o sistema. (...) Ódio por ódio só intensifica a existência do
ódio e do mal no universo. Se eu te bato e tu me bates, e eu te devolvo a
pancada e tu me devolves a pancada, e assim por diante… obviamente continua-se
até ao infinito; simplesmente nunca termina. Nalgum ponto, alguém deve ter um
pouco de bom senso, e esta é a pessoa forte. A pessoa forte é aquela que pode
quebrar a cadeia do ódio, a cadeia do mal. (...) Alguém deve ter bastante fé e
moralidade para a quebrar e injectar dentro da própria estrutura do universo o
elemento forte e poderoso do amor».[114]
119. Na vida familiar, é preciso cultivar esta força do amor, que
permite lutar contra o mal que a ameaça. O amor não se deixa dominar pelo ressentimento,
o desprezo das pessoas, o desejo de se lamentar ou vingar de alguma coisa. O
ideal cristão, nomeadamente na família, é amor que apesar de tudo não desiste.
Deixa-me maravilhado, por exemplo, a atitude das pessoas que, para se proteger
da violência física, tiveram de separar-se do seu cônjuge e todavia, pela
caridade conjugal que sabe ultrapassar os sentimentos, foram capazes de
procurar o seu bem, mesmo através de terceiros, em momentos de doença,
tribulação ou dificuldade. Isto também é amor que apesar de tudo não desiste.
Crescer na caridade conjugal
120. O cântico de São Paulo, que acabámos de repassar, permite-nos
avançar para a caridade conjugal. Esta é o amor que une os esposos,[115] amor
santificado, enriquecido e iluminado pela graça do sacramento do matrimónio. É
uma «união afectiva»,[116]espiritual
e oblativa, mas que reúne em si a ternura da amizade e a paixão erótica, embora
seja capaz de subsistir mesmo quando os sentimentos e a paixão enfraquecem. O
Papa Pio XI ensinava que este amor permeia todos os deveres da vida conjugal e
«detém como que o primado da nobreza».[117] Com
efeito, este amor forte, derramado pelo Espírito Santo, é reflexo da aliança
indestrutível entre Cristo e a humanidade que culminou na entrega até ao fim na
cruz. «O Espírito, que o Senhor infunde, dá um coração novo e torna o homem e a
mulher capazes de se amarem como Cristo nos amou. O amor conjugal atinge assim
aquela plenitude para a qual está interiormente ordenado: a caridade conjugal».[118]
121. O matrimónio é um sinal precioso, porque, «quando um homem e uma
mulher celebram o sacramento do matrimónio, Deus, por assim dizer, “espelha-Se”
neles, imprime neles as suas características e o carácter indelével do seu
amor. O matrimónio é o ícone do amor de Deus por nós. Com efeito, também Deus é
comunhão: as três Pessoas – Pai, Filho e Espírito Santo – vivem desde sempre e
para sempre em unidade perfeita. É precisamente nisto que consiste o mistério
do matrimónio: dos dois esposos, Deus faz uma só existência».[119] Isto
tem consequências muito concretas na vida do dia-a-dia, porque, «em virtude do
sacramento, os esposos são investidos numa autêntica missão, para que possam
tornar visível, a partir das realidades simples e ordinárias, o amor com que
Cristo ama a sua Igreja, continuando a dar a vida por ela».[120]
122. Todavia convém não confundir planos diferentes: não se deve atirar
para cima de duas pessoas limitadas o peso tremendo de ter que reproduzir
perfeitamente a união que existe entre Cristo e a sua Igreja, porque o
matrimónio como sinal implica «um processo dinâmico, que avança gradualmente
com a progressiva integração dos dons de Deus».[121]
A vida toda, tudo em comum
123. Depois do amor que nos une a Deus, o amor conjugal é a «amizade
maior».[122] É
uma união que tem todas as características duma boa amizade: busca do bem do
outro, reciprocidade, intimidade, ternura, estabilidade e uma semelhança entre
os amigos que se vai construindo com a vida partilhada. O matrimónio, porém,
acrescenta a tudo isso uma exclusividade indissolúvel, que se expressa no
projecto estável de partilhar e construir juntos toda a existência. Sejamos
sinceros na leitura dos sinais da realidade: quem está enamorado não projecta
que essa relação possa ser apenas por um certo tempo; quem vive intensamente a
alegria de se casar não está a pensar em algo de passageiro; aqueles que
acompanham a celebração duma união cheia de amor, embora frágil, esperam que
possa perdurar no tempo; os filhos querem não só que os seus pais se amem, mas
também que sejam fiéis e permaneçam sempre juntos. Estes e outros sinais
mostram que, na própria natureza do amor conjugal, existe a abertura ao
definitivo. A união, que se cristaliza na promessa matrimonial para sempre, é
mais do que uma formalidade social ou uma tradição, porque radica-se nas
inclinações espontâneas da pessoa humana. E, para os crentes, é uma aliança
diante de Deus, que exige fidelidade: «O Senhor constituiu-Se testemunha entre
ti e a esposa da tua juventude, aquela que tu atraiçoaste, embora ela fosse a tua
companheira e aquela com quem fizeste aliança. (...) Ninguém atraiçoe a mulher
da sua juventude, porque Eu odeio o divórcio» (Ml 2, 14.15-16).
124. Um amor frágil ou enfermiço, incapaz de aceitar o matrimónio como
um desafio que exige lutar, renascer, reinventar-se e recomeçar sempre de novo
até à morte, não pode sustentar um nível alto de compromisso. Cede à cultura do
provisório, que impede um processo constante de crescimento. Mas «prometer um
amor que dure para sempre é possível, quando se descobre um desígnio maior que
os próprios projectos, que nos sustenta e permite doar o futuro inteiro à
pessoa amada».[123] Para
que este amor possa atravessar todas as provações e manter-se fiel contra tudo,
requer-se o dom da graça que o fortalece e eleva. Como dizia São Roberto
Belarmino, «o facto de um só se unir com uma só num vínculo indissolúvel, de
modo que não possam separar-se, sejam quais forem as dificuldades, e mesmo
quando se perdeu a esperança da prole, isto não pode acontecer sem um grande
mistério».[124]
125. Além disso, o matrimónio é uma amizade que inclui as
características próprias da paixão, mas sempre orientada para uma união cada
vez mais firme e intensa. Com efeito, «não foi instituído só em ordem à
procriação», mas para que o amor mútuo «se exprima convenientemente, aumente e
chegue à maturidade».[125] Esta
amizade peculiar entre um homem e uma mulher adquire um carácter totalizante,
que só se verifica na união conjugal. E precisamente por ser totalizante, esta
união também é exclusiva, fiel e aberta à geração. Partilha-se tudo, incluindo
a sexualidade, sempre no mútuo respeito. Isto mesmo expressou o Concílio
Vaticano II ao dizer que, «unindo o humano e o divino, esse amor leva os
esposos ao livre e recíproco dom de si mesmos, que se manifesta com a ternura do
afecto e com as obras, e penetra toda a sua vida».[126]
Alegria e beleza
126. No matrimónio, convém cuidar a alegria do amor. Quando a busca do
prazer é obsessiva, encerra-nos numa coisa só e não permite encontrar outros
tipos de satisfações. Pelo contrário, a alegria expande a capacidade de
desfrutar e permite-nos encontrar prazerem realidades variadas, mesmo nas fases
da vida em que o prazer se apaga. Por isso, dizia São Tomás que se usa a
palavra «alegria» para se referir à dilatação da amplitude do coração.[127] A
alegria matrimonial, que se pode viver mesmo no meio do sofrimento, implica
aceitar que o matrimónio é uma combinação necessária de alegrias e fadigas, de
tensões e repouso, de sofrimentos e libertações, de satisfações e buscas, de
aborrecimentos e prazeres, sempre no caminho da amizade que impele os esposos a
cuidarem um do outro: «prestam-se recíproca ajuda e serviço».[128]
127. O amor de amizade chama-se «caridade», quando capta e aprecia o
«valor sublime» que tem o outro.[129] A
beleza – o «valor sublime» do outro, que não coincide com os seus atractivos
físicos ou psicológicos – permite-nos saborear o carácter sagrado da pessoa,
sem a imperiosa necessidade de a possuir. Na sociedade de consumo, o sentido
estético empobrece-se e, assim, se apaga a alegria. Tudo se destina a ser
comprado, possuído ou consumido, incluindo as pessoas. Ao contrário, a ternura
é uma manifestação deste amor que se liberta do desejo da posse egoísta.
Leva-nos a vibrar à vista duma pessoa, com imenso respeito e um certo receio de
lhe causar dano ou tirar a sua liberdade. O amor pelo outro implica este gosto
de contemplar e apreciar o que é belo e sagrado do seu ser pessoal, que existe
para além das minhas necessidades. Isto permite-me procurar o seu bem, mesmo
quando sei que não pode ser meu ou quando se tornou fisicamente desagradável,
agressivo ou chato. Por isso, «do amor pelo qual uma pessoa me é agradável,
depende que lhe dê algo de graça».[130]
128. A experiência estética do amor exprime-se naquele olhar que
contempla o outro como fim em si mesmo, ainda que esteja doente, velho ou
privado de atractivos sensíveis. O olhar que aprecia tem uma enorme importância
e, recusá-lo, habitualmente faz dano. Às vezes, quantas coisas fazem os
cônjuges e os filhos para ser considerados e tidos em conta! Muitas feridas e
crises têm a sua origem no momento em que deixamos de nos contemplar. Isto é o
que exprimem algumas queixas e reclamações, que se ouvem nas famílias: «O meu
marido não me olha, para ele parece que sou invisível». «Por favor, olha para
mim, quando te falo». «A minha mulher já não me olha, agora só tem olhos para
os filhos». «Em minha casa, não interesso a ninguém, nem sequer me vêem, é como
se não existisse». O amor abre os olhos e permite ver, mais além de
tudo, quanto vale um ser humano.
129. A alegria deste amor contemplativo deve ser cultivada. Uma vez que
somos feitos para amar, sabemos que não há maior alegria do que partilhar um
bem: «Dá e recebe, e alegra a tua vida» (Sir 14, 16). As alegrias
mais intensas da vida surgem, quando se pode provocar a felicidade dos outros,
numa antecipação do Céu. Vem a propósito recordar a cena feliz do filme A
festa de Babette, quando a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido
e este elogio: «Como deliciarás os anjos!» É doce e consoladora a alegria de
fazer as delícias dos outros, vê-los usufruir delas. Este júbilo, efeito do
amor fraterno, não é o da vaidade de quem olha para si mesmo, mas o do amante
que se compraz no bem do ser amado, que transborda para o outro e se torna
fecundo nele.
130. Por outro lado, a alegria renova-se no sofrimento. Como dizia Santo
Agostinho, «quanto mais grave foi o perigo no combate, tanto maior é o gozo no
triunfo».[131] Depois
de ter sofrido e lutado unidos, os cônjuges podem experimentar que valeu a
pena, porque conseguiram algo de bom, aprenderam alguma coisa juntos ou podem
apreciar melhor o que têm. Poucas alegrias humanas são tão profundas e festivas
como quando duas pessoas que se amam conquistaram, conjuntamente, algo que lhes
custou um grande esforço compartilhado.
Casar-se por amor
131. Quero dizer aos jovens que nada disto é prejudicado, quando o amor
assume a modalidade da instituição matrimonial. A união encontra nesta
instituição o modo de canalizar a sua estabilidade e o seu crescimento real e
concreto. É verdade que o amor é muito mais do que um consentimento externo ou
uma forma de contrato matrimonial, mas é igualmente certo que a decisão de dar
ao matrimónio uma configuração visível na sociedade com certos compromissos
manifesta a sua relevância: mostra a seriedade da identificação com o outro,
indica uma superação do individualismo de adolescente e expressa a firme opção
de se pertencerem um ao outro. Casar-se é uma maneira de exprimir que realmente
se abandonou o ninho materno, para tecer outros laços fortes e assumir uma nova
responsabilidade perante outra pessoa. Isto vale muito mais do que uma mera
associação espontânea para mútua compensação, que seria a privatização do
matrimónio. Este, como instituição social, é protecção e instrumento para o
compromisso mútuo, para o amadurecimento do amor, para que a opção pelo outro
cresça em solidez, concretização e profundidade, e possa, por sua vez, cumprir
a sua missão na sociedade. Por isso, o matrimónio supera qualquer moda
passageira e persiste. A sua essência está radicada na própria natureza da
pessoa humana e do seu carácter social. Implica uma série de obrigações; mas
estas brotam do próprio amor, um amor tão decidido e generoso que é capaz de
arriscar o futuro.
132. Semelhante opção pelo matrimónio expressa a decisão real e efectiva
de transformar dois caminhos num só, aconteça o que acontecer e contra todo e
qualquer desafio. Pela seriedade de que se reveste este compromisso público de
amor, não pode ser uma decisão precipitada; mas, pela mesma razão, também não
pode ser adiado indefinidamente. Comprometer-se de forma exclusiva e definitiva
com outrem sempre encerra uma parcela de risco e de aposta ousada. A recusa de
assumir um tal compromisso é egoísta, interesseira, mesquinha; não consegue
reconhecer os direitos do outro e não chega jamais a apresentá-lo à sociedade
como digno de ser amado incondicionalmente. Aliás, aqueles que estão
verdadeiramente enamorados tendem a manifestar aos outros o seu amor. O amor
concretizado num matrimónio contraído diante dos outros, com todas as
obrigações decorrentes dessa institucionalização, é manifestação e protecção
dum «sim» que se dá sem reservas nem restrições. Este sim significa dizer ao
outro que poderá sempre confiar, não será abandonado, se perder atractivo, se
tiver dificuldades ou se se apresentarem novas possibilidades de prazer ou de
interesses egoístas.
Amor que se manifesta e cresce
133. O amor de amizade unifica todos os aspectos da vida matrimonial e
ajuda os membros da família a avançarem em todas as suas fases. Por isso, os
gestos que exprimem este amor devem ser constantemente cultivados, sem
mesquinhez, cheios de palavras generosas. Na família, «é necessário usar três
palavras: com licença, obrigado, desculpa. Três palavras-chave».[132]«Quando
numa família não somos invasores e pedimos “com licença”, quando na família não
somos egoístas e aprendemos a dizer “obrigado”, e quando na família nos damos
conta de que fizemos algo incorrecto e pedimos “desculpa”, nessa família existe
paz e alegria».[133] Não
sejamos mesquinhos no uso destas palavras, sejamos generosos repetindo-as
dia-a-dia, porque «pesam certos silêncios, às vezes mesmo em família, entre
marido e mulher, entre pais e filhos, entre irmãos».[134] Pelo
contrário, as palavras adequadas, ditas no momento certo, protegem e alimentam
o amor dia após dia.
134. Tudo isto se realiza num caminho de contínuo crescimento. Esta
forma muito particular de amor, que é o matrimónio, é chamada a um
amadurecimento constante, pois deve aplicar-se-lhe sempre aquilo que São Tomás
de Aquino dizia da caridade: «A caridade, devido à sua natureza, não tem um
termo de aumento, porque é uma participação da caridade infinita que é o
Espírito Santo. (...) E, do lado do sujeito, também não é possível prefixar-lhe
um termo, porque, ao crescer na caridade, eleva-se também a capacidade para um
aumento maior».[135] Paulo
exortava com veemência: «O Senhor vos faça crescer e superabundar de caridade
uns para com os outros» (1Ts 3, 12); e acrescenta: «A respeito do
amor (...), exortamo-vos, irmãos, a progredir sempre mais» (1Ts 4,
9.10). Sempre mais. O amor matrimonial não se estimula falando, antes de mais
nada, da indissolubilidade como uma obrigação, nem repetindo uma doutrina, mas
robustecendo-o por meio dum crescimento constante sob o impulso da graça. O
amor que não cresce, começa a correr perigo; e só podemos crescer
correspondendo à graça divina com mais actos de amor, com actos de carinho mais
frequentes, mais intensos, mais generosos, mais ternos, mais alegres. O marido
e a mulher «tomam consciência da própria unidade e cada vez mais a
realizam».[136] O
dom do amor divino que se derrama nos esposos é, ao mesmo tempo, um apelo a um
constante desenvolvimento deste dom da graça.
135. Não fazem bem certas fantasias sobre um amor idílico e perfeito,
privando-o assim de todo o estímulo para crescer. Uma ideia celestial do amor
terreno esquece que o melhor ainda não foi alcançado, o vinho sazonado com o
tempo. Como recordaram os bispos do Chile, «não existem as famílias perfeitas
que a publicidade falaciosa e consumista nos propõe. Nelas, não passam os anos,
não existe a doença, a tribulação nem a morte. (...) A publicidade consumista
mostra uma realidade ilusória que não tem nada a ver com a realidade que devem
enfrentar no dia-a-dia os pais e as mães de família».[137] É
mais saudável aceitar com realismo os limites, os desafios e as imperfeições, e
dar ouvidos ao apelo para crescer juntos, fazer amadurecer o amor e cultivar a
solidez da união, suceda o que suceder.
O diálogo
136. O diálogo é uma modalidade privilegiada e indispensável para viver,
exprimir e maturar o amor na vida matrimonial e familiar. Mas requer uma longa
e diligente aprendizagem. Homens e mulheres, adultos e jovens têm maneiras
diversas de comunicar, usam linguagens diferentes, regem-se por códigos
distintos. O modo de perguntar, a forma de responder, o tom usado, o momento
escolhido e muitos outros factores podem condicionar a comunicação. Além disso,
é sempre necessário cultivar algumas atitudes que são expressão de amor e
tornam possível o diálogo autêntico.
137. Reservar tempo, tempo de qualidade, que permita escutar, com
paciência e atenção, até que o outro tenha manifestado tudo o que precisava de
comunicar. Isto requer a ascese de não começar a falar antes do momento
apropriado. Em vez de começar a dar opiniões ou conselhos, é preciso
assegurar-se de ter escutado tudo o que o outro tem necessidade de dizer. Isto
implica fazer silêncio interior, para escutar sem ruídos no coração e na mente:
despojar-se das pressas, pôr de lado as próprias necessidades e urgências, dar
espaço. Muitas vezes um dos cônjuges não precisa duma solução para os seus
problemas, mas de ser ouvido. Tem de sentir que se apreendeu a sua mágoa, a sua
desilusão, o seu medo, a sua ira, a sua esperança, o seu sonho. Todavia é
frequente ouvir estes queixumes: «Não me ouve. E quando parece que o faz, na
realidade está a pensar noutra coisa». «Falo-lhe e tenho a sensação de que está
à espera que acabe de vez». «Quando lhe falo, tenta mudar de assunto ou dá-me
respostas rápidas para encerrar a conversa».
138. Desenvolver o hábito de dar real importância ao outro. Trata-se de
dar valor à sua pessoa, reconhecer que tem direito de existir, pensar de
maneira autónoma e ser feliz. É preciso nunca subestimar aquilo que diz ou
reivindica, ainda que seja necessário exprimir o meu ponto de vista. A tudo
isto subjaz a convicção de que todos têm algo para dar, pois têm outra
experiência da vida, olham doutro ponto de vista, desenvolveram outras
preocupações e possuem outras capacidades e intuições. É possível reconhecer a
verdade do outro, a importância das suas preocupações mais profundas e a
motivação de fundo do que diz, inclusive das palavras agressivas. Para isso, é
preciso colocar-se no seu lugar e interpretar a profundidade do seu coração,
individuar o que o apaixona, e tomar essa paixão como ponto de partida para
aprofundar o diálogo.
139. Amplitude mental, para não se encerrar obsessivamente numas poucas
ideias, e flexibilidade para poder modificar ou completar as próprias opiniões.
É possível que, do meu pensamento e do pensamento do outro, possa surgir uma
nova síntese que nos enriqueça a ambos. A unidade, a que temos de aspirar, não
é uniformidade, mas uma «unidade na diversidade» ou uma «diversidade
reconciliada». Neste estilo enriquecedor de comunhão fraterna, seres diferentes
encontram-se, respeitam-se e apreciam-se, mas mantendo distintos matizes e
acentos que enriquecem o bem comum. Temos de nos libertar da obrigação de ser
iguais. Também é necessária sagacidade para advertir a tempo eventuais
«interferências», a fim de que não destruam um processo de diálogo. Por
exemplo, reconhecer os maus sentimentos que poderiam surgir e relativizá-los,
para não prejudicarem a comunicação. É importante a capacidade de expressar
aquilo que se sente, sem ferir; utilizar uma linguagem e um modo de falar que
possam ser mais facilmente aceites ou tolerados pelo outro, embora o conteúdo
seja exigente; expor as próprias críticas, mas sem descarregar a ira como uma
forma de vingança, e evitar uma linguagem moralizante que procure apenas
agredir, ironizar, culpabilizar, ferir. Há tantas discussões no casal que não
são por questões muito graves; às vezes trata-se de pequenas coisas, pouco
relevantes, mas o que altera os ânimos é o modo de as dizer ou a atitude que se
assume no diálogo.
140. Ter gestos de solicitude pelo outro e demonstrações de carinho. O
amor supera as piores barreiras. Quando se pode amar alguém ou quando nos
sentimos amados por essa pessoa, conseguimos entender melhor o que ela quer
exprimir e fazer-nos compreender. É preciso superar a fragilidade que nos leva
a temer o outro como se fosse um «concorrente». É muito importante fundar a
própria segurança em opções profundas, convicções e valores, e não no desejo de
ganhar uma discussão ou no facto de nos darem razão.
141.Por último, reconheçamos que, para ser profícuo o diálogo, é preciso
ter algo para se dizer; e isto requer uma riqueza interior que se alimenta com
a leitura, a reflexão pessoal, a oração e a abertura à sociedade. Caso
contrário, a conversa torna-se aborrecida e inconsistente. Quando cada um dos
cônjuges não cultiva o próprio espírito e não há uma variedade de relações com
outras pessoas, a vida familiar torna-se endogâmica e o diálogo fica
empobrecido.
Amor apaixonado
142. O Concílio Vaticano II ensinou que este amor conjugal «compreende o
bem de toda a pessoa e, por conseguinte, pode conferir especial dignidade às
manifestações do corpo e do espírito, enobrecendo-as como elementos e sinais
peculiares do amor conjugal».[138] Deve
haver qualquer motivo para um amor sem prazer nem paixão se revelar
insuficiente a simbolizar a união do coração humano com Deus: «Todos os
místicos afirmaram que o amor sobrenatural e o amor celeste encontram os
símbolos que procuram mais no amor matrimonial do que na amizade, no sentimento
filial ou na dedicação a uma causa. E o motivo encontra-se precisamente na sua totalidade».[139] Sendo
assim, por que não determo-nos a falar dos sentimentos e da sexualidade no
matrimónio?
O mundo das emoções
143. Desejos, sentimentos, emoções (os clássicos chamavam-lhes
«paixões») ocupam um lugar importante no matrimónio. Geram-se quando «outro» se
torna presente e intervém na minha vida. É próprio de todo o ser vivo tender
para outra realidade, e esta tendência reveste-se sempre de sinais afectivos
basilares: prazer ou sofrimento, alegria ou tristeza, ternura ou receio. São o
pressuposto da actividade psicológica mais elementar. O ser humano é um vivente
desta terra, e tudo o que faz e busca está carregado de paixões.
144. Verdadeiro homem, Jesus vivia as coisas com grande emotividade. Por
isso, sofria com a rejeição de Jerusalém (cf. Mt 23, 37) e,
por esta situação, chorou (cf. Lc 19, 41). Compadecia-Se
também à vista da multidão atribulada (cf. Mc 6, 34). Vendo os
outros a chorar, comovia-Se e turbava-Se (cf. Jo 11, 33), e
Ele mesmo chorou pela morte dum amigo (cf. Jo 11, 35). Estas
manifestações da sua sensibilidade mostram até que ponto estava aberto aos
outros o seu coração humano.
145. Experimentar uma emoção não é, em si mesmo, algo moralmente bom nem
mau.[140] Começar
a sentir desejo ou repulsa não é pecaminoso nem censurável. O que pode ser bom
ou mau é o acto que a pessoa realiza movida ou sustentada por uma paixão. Pois,
se os sentimentos são alimentados, procurados e, por causa deles, cometemos más
acções, o mal está na decisão de os alimentar e nos actos maus que se seguem.
Na mesma linha, sentir atração por alguém não é, de por si, um bem. Se esta
atracção me leva a procurar que essa pessoa se torne minha escrava, o
sentimento estará ao serviço do meu egoísmo. Julgar que somos bons só porque
«provamos sentimentos», é um tremendo engano. Há pessoas que se sentem capazes
dum grande amor, só porque têm grande necessidade de afecto, mas não conseguem
lutar pela felicidade dos outros e vivem confinados nos próprios desejos. Neste
caso, os sentimentos desviam dos grandes valores e escondem um egocentrismo que
torna impossível cultivar uma vida sadia e feliz em família.
146. Entretanto, se uma paixão acompanha o acto livre, pode manifestar a
profundidade dessa opção. O amor matrimonial leva a procurar que toda a vida
emotiva se torne um bem para a família e esteja ao serviço da vida em comum. A
maturidade chega a uma família, quando a vida emotiva dos seus membros se
transforma numa sensibilidade que não domina nem obscurece as grandes opções e
valores, mas segue a sua liberdade,[141] brota
dela, enriquece-a, embeleza-a e torna-a mais harmoniosa para bem de todos.
Deus ama a alegria dos seus filhos
147. Isto requer um caminho pedagógico, um processo que inclui
renúncias: é uma convicção da Igreja, que muitas vezes foi rejeitada pelo mundo
como se fosse inimiga da felicidade humana. Bento XVI regista esta crítica com
muita clareza: «Com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não nos torna
porventura amarga a coisa mais bela da vida? Porventura não assinala ela
proibições precisamente onde a alegria, preparada para nós pelo Criador, nos
oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?»[142] Mas
ele responde que, embora não tenham faltado exageros ou ascetismos extraviados
no cristianismo, a doutrina oficial da Igreja, fiel à Sagrada Escritura, não
rejeitou «o eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua
subversão devastadora, porque a falsa divinização do eros (…)
priva-o da sua dignidade, desumaniza-o». [143]
148. É necessária a educação da emotividade e do instinto e, para isso,
às vezes torna-se indispensável impormo-nos algum limite. O excesso, o
descontrole, a obsessão por um único tipo de prazeres acabam por debilitar e
combalir o próprio prazer,[144] e
prejudicam a vida da família. Na verdade, pode-se fazer um belo caminho com as
paixões, o que significa orientá-las cada vez mais num projeto de auto doação e
plena realização própria que enriquece as relações interpessoais no seio da
família. Isto não implica renunciar a momentos de intenso prazer,[145] mas
assumi-los de certo modo entrelaçados com outros momentos de dedicação
generosa, espera paciente, inevitável fadiga, esforço por um ideal. A vida em
família é tudo isto e merece ser vivida inteiramente.
149. Algumas correntes espirituais insistem em eliminar o desejo para se
libertar da dor. Mas nós acreditamos que Deus ama a alegria do ser humano, pois
Ele criou tudo «para nosso usufruto» (1 Tim 6, 17). Deixemos brotar
a alegria à vista da sua ternura, quando nos propõe: «Meu filho, se tens com
quê, trata-te bem. (...) Não te prives da felicidade presente» (Sir 14,
11.14). Também um casal de esposos corresponde à vontade de Deus, quando segue
este convite bíblico: «No dia da felicidade, sê alegre» (Qo 7, 14).
A questão é ter a liberdade para aceitar que o prazer encontre outras formas de
expressão nos sucessivos momentos da vida, de acordo com as necessidades do
amor mútuo. Neste sentido, pode-se aceitar a proposta de alguns mestres
orientais que insistem em ampliar a consciência, para não ficar presos numa
experiência muito limitada que nos fecharia as perspectivas. Esta ampliação da
consciência não é a negação ou a destruição do desejo, mas a sua dilatação e
aperfeiçoamento.
A dimensão erótica do amor
150. Tudo isto nos leva a falar da vida sexual dos esposos. O próprio
Deus criou a sexualidade, que é um presente maravilhoso para as suas criaturas.
Quando se cultiva e evita o seu descontrole, fazemo-lo para impedir que se
produza o «depauperamento de um valor autêntico».[146] São
João Paulo II rejeitou a ideia de que a doutrina da Igreja leve a «uma negação
do valor do sexo humano» ou que o tolere simplesmente «pela necessidade da
procriação».[147] A
necessidade sexual dos esposos não é objecto de menosprezo, e «não se trata de
modo algum de pôr em questão aquela necessidade».[148]
151. A quantos receiam que, com a educação das paixões e da sexualidade,
se prejudique a espontaneidade do amor sexual, São João Paulo II respondia que
o ser humano «é também chamado à plena e matura espontaneidade das relações»,
que «é o fruto gradual do discernimento dos impulsos do próprio coração».[149] É
algo que se conquista, pois todo o ser humano «deve, perseverante e
coerentemente, aprender o que é o significado do corpo».[150] A
sexualidade não é um recurso para compensar ou entreter, mas trata-se de uma
linguagem interpessoal onde o outro é tomado a sério, com o seu valor sagrado e
inviolável. Assim, «o coração humano torna-se participante, por assim dizer, de
outra espontaneidade».[151] Neste
contexto, o erotismo aparece como uma manifestação especificamente humana da
sexualidade. Nele pode-se encontrar o «significado esponsal do corpo e a
autêntica dignidade do dom».[152] Nas
suas catequeses sobre a teologia do corpo humano, São João Paulo II ensinou que
a corporeidade sexuada «é não só fonte de fecundidade e de procriação», mas
possui «a capacidade de exprimir o amor: exactamente aquele amor em que o
homem-pessoa se torna dom».[153] O
erotismo mais saudável, embora esteja ligado a uma busca de prazer, supõe a
admiração e, por isso, pode humanizar os impulsos.
152. Assim, não podemos, de maneira alguma, entender a dimensão erótica
do amor como um mal permitido ou como um peso tolerável para o bem da família,
mas como dom de Deus que embeleza o encontro dos esposos. Tratando-se de uma
paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade do outro, torna-se uma
«afirmação amorosa plena e cristalina», mostrando-nos de que maravilhas é capaz
o coração humano, e assim, por um momento, «sente-se que a existência humana
foi um sucesso».[154]
Violência e manipulação
153. No contexto desta visão positiva da sexualidade, é oportuno
apresentar o tema na sua integridade e com um são realismo. Pois não podemos
ignorar que muitas vezes a sexualidade se despersonaliza e enche de patologias,
de modo que «se torna cada vez mais ocasião e instrumento de afirmação do
próprio eu e de satisfação egoísta dos próprios desejos e instintos».[155] Neste
tempo, também a sexualidade corre grande risco de se ver dominada pelo espírito
venenoso do «usa e joga fora». Com frequência, o corpo do outro é manipulado
como uma coisa que se conserva enquanto proporciona satisfação e se despreza
quando perde atractivo. Podem-se porventura ignorar ou dissimular as formas
constantes de domínio, prepotência, abuso, perversão e violência sexual que
resultam duma distorção do significado da sexualidade e sepultam a dignidade
dos outros e o apelo ao amor sob uma obscura procura de si mesmo?
154. Nunca é demais lembrar que, mesmo no matrimónio, a sexualidade pode
tornar-se fonte de sofrimento e manipulação. Por isso, devemos reafirmar,
claramente, que «um acto conjugal imposto ao próprio cônjuge, sem consideração
pelas suas condições e pelos seus desejos legítimos, não é um verdadeiro acto
de amor e nega, por isso mesmo, uma exigência de recta ordem moral, nas
relações entre os esposos».[156] Os
actos próprios da união sexual dos cônjuges correspondem à natureza da
sexualidade querida por Deus, se forem vividos «de modo autenticamente humano».[157] Por
isso, São Paulo exortava: «Que ninguém, nesta matéria, defraude e se aproveite
do seu irmão» (1 Ts 4, 6). E não obstante ele escrevesse numa época
em que dominava uma cultura patriarcal, na qual a mulher era considerada um ser
completamente subordinado ao homem, todavia ensinou que a sexualidade deve ser
uma questão a discutir entre os cônjuges: levantou a possibilidade de adiar as
relações sexuais por algum tempo, mas «de mútuo acordo» (1 Cor 7,
5).
155. São João Paulo II fez uma advertência muito subtil, quando disse
que o homem e a mulher são «ameaçados pela insaciabilidade».[158] Por
outras palavras, são chamados a uma união cada vez mais intensa, mas correm o
risco de pretender apagar as diferenças e a distância inevitável que existe
entre os dois. Com efeito, cada um possui uma dignidade própria e irrepetível.
Quando o bem precioso da pertença recíproca se transforma em domínio, «muda
essencialmente a estrutura de comunhão na relação interpessoal».[159] Na
lógica do domínio, o dominador acaba também negando a sua própria dignidade[160]e,
em última análise, deixa «de identificar-se subjectivamente com o próprio
corpo»,[161] porque
lhe tira todo o significado. Vive o sexo como evasão de si mesmo e como renúncia
à beleza da união.
156. É importante deixar claro a rejeição de toda a forma de submissão
sexual. Por isso, convém evitar toda a interpretação inadequada do texto da
Carta aos Efésios, onde se pede que «as mulheres [sejam submissas] aos seus
maridos» (Ef 5, 22). São Paulo exprime-se em categorias culturais
próprias daquela época; nós não devemos assumir esta roupagem cultural, mas a
mensagem revelada que subjaz ao conjunto da perícope. Retomemos a sábia
explicação de São João Paulo II: «O amor exclui todo o género de submissão,
pelo qual a mulher se tornasse serva ou escrava do marido (...). A comunidade
ou unidade, que devem constituir por causa do matrimónio, realiza-se através de
uma recíproca doação, que é também submissão mútua».[162]Por
isso, se diz que «devem também os maridos amar as suas mulheres, como o seu
próprio corpo» (Ef 5, 28). Na realidade, o texto bíblico convida a
superar o cómodo individualismo para viver disponíveis aos outros:
«Submetei-vos uns aos outros» (Ef 5, 21). Entre os cônjuges, esta
recíproca «submissão» adquire um significado especial, devendo-se entender como
uma pertença mútua livremente escolhida, com um conjunto de características de
fidelidade, respeito e solicitude. A sexualidade está ao serviço desta amizade
conjugal de modo inseparável, porque tende a procurar que o outro viva em
plenitude.
157. Entretanto a rejeição das distorções da sexualidade e do erotismo
nunca deveria levar-nos ao seu desprezo nem ao seu descuido. O ideal do
matrimónio não pode configurar-se apenas como uma doação generosa e
sacrificada, onde cada um renuncia a qualquer necessidade pessoal e se preocupa
apenas por fazer o bem ao outro, sem satisfação alguma. Lembremo-nos de que um
amor verdadeiro também sabe receber do outro, é capaz de se aceitar
como vulnerável e necessitado, não renuncia a receber, com gratidão sincera e
feliz, as expressões corporais do amor na carícia, no abraço, no beijo e na
união sexual. Bento XVI era claro a este respeito: «Se o homem aspira a ser
somente espírito e quer rejeitar a carne como uma herança apenas animalesca,
então espírito e corpo perdem a sua dignidade».[163] Por
esta razão, «o homem também não pode viver exclusivamente no amor oblativo,
descendente. Não pode limitar-se sempre a dar, deve também receber. Quem quer
dar amor, deve ele mesmo recebê-lo em dom».[164] Em
todo o caso, isto supõe ter presente que o equilíbrio humano é frágil, sempre
permanece algo que resiste a ser humanizado e que, a qualquer momento, pode
fugir-nos de mão novamente, recuperando as suas tendências mais primitivas e
egoístas.
Matrimónio e virgindade
158. «Muitas pessoas, que vivem sem se casar, não só se dedicam à sua
família de origem, mas muitas vezes realizam grandes serviços no seu círculo de
amigos, na comunidade eclesial e na vida profissional (...). Muitos colocam os
seus talentos também ao serviço da comunidade cristã sob a forma de assistência
caritativa e voluntariado. Temos ainda aqueles que não se casam, porque
consagram a vida por amor de Cristo e dos irmãos. Com a sua dedicação, é extraordinariamente
enriquecida a família, na Igreja e na sociedade».[165]
159. A virgindade é uma forma de amor. Como sinal, recorda-nos a
solicitude pelo Reino, a urgência de entregar-se sem reservas ao serviço da
evangelização (cf. 1Cor 7, 32) e é um reflexo da plenitude do
Céu, onde «nem os homens terão mulheres, nem as mulheres, maridos» (Mt 22,
30). São Paulo recomendava a virgindade, porque esperava para breve o regresso
de Jesus Cristo e queria que todos se concentrassem apenas na evangelização: «O
tempo é breve» (1Cor 7, 29). Contudo deixa claro que era uma
opinião pessoal e um desejo dele (cf. 1Cor 7, 6-8), não uma
exigência de Cristo: «Não tenho nenhum preceito do Senhor» (1Cor 7,
25). Ao mesmo tempo reconhecia o valor de ambas as vocações: «Cada um recebe de
Deus o seu próprio dom, um de uma maneira, outro de outra» (1Cor 7,
7). Neste sentido, diz São João Paulo II que os textos bíblicos «não oferecem
motivo para sustentar nem a “inferioridade” do matrimónio, nem a
“superioridade” da virgindade ou do celibato»[166] devido
à abstinência sexual. Em vez de se falar da superioridade da virgindade sob
todos os aspectos, parece mais apropriado mostrar que os diferentes estados de
vida são complementares, de tal modo que um pode ser mais perfeito num sentido
e outro pode sê-lo a partir dum ponto de vista diferente. Por exemplo,
Alexandre de Hales afirmava que, em certo sentido, o matrimónio pode-se
considerar superior aos restantes sacramentos, porque simboliza algo tão grande
como «a união de Cristo com a Igreja ou a união da natureza divina com a
humana».[167]
160. Portanto «não se trata de diminuir o valor do matrimónio em favor
da continência»[168] e
«não existe fundamento algum para uma suposta contraposição (...). Se,
considerando uma certa tradição teológica, se fala do estado de perfeição (status
perfectionis), não é por motivo da continência mesma, mas a propósito do
conjunto da vida fundada sobre os conselhos evangélicos».[169] Entretanto
uma pessoa casada pode viver a caridade num grau altíssimo. E assim «chega
àquela perfeição que nasce da caridade, mediante a fidelidade ao espírito dos
referidos conselhos. Tal perfeição é possível e acessível a cada homem».[170]
161. A virgindade tem o valor simbólico do amor que não necessita de
possuir o outro, reflectindo assim a liberdade do Reino dos Céus. É um convite
para os esposos viverem o seu amor conjugal na perspectiva do amor definitivo a
Cristo, como um caminho comum rumo à plenitude do Reino. Por sua vez, o amor
dos esposos apresenta outros valores simbólicos: por um lado, é reflexo
peculiar da Trindade, porque a Trindade é unidade plena na qual existe também a
distinção. Além disso, a família é um sinal cristológico, porque mostra a
proximidade de Deus que compartilha a vida do ser humano unindo-Se-lhe na
encarnação, na cruz e na ressurreição: cada cônjuge torna-se «uma só carne» com
o outro e oferece-se a si mesmo para partilhar tudo com ele até ao fim.
Enquanto a virgindade é um sinal «escatológico» de Cristo ressuscitado, o
matrimónio é um sinal «histórico» para nós que caminhamos na terra, um sinal de
Cristo terreno que aceitou unir-Se a nós e Se deu até ao derramamento do seu
sangue. A virgindade e o matrimónio são – e devem ser – modalidades diferentes
de amar, porque «o homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio
um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for
revelado o amor».[171]
162. O celibato corre o risco de ser uma cómoda solidão, que dá
liberdade para se mover autonomamente, mudar de local, tarefa e opção, dispor
do seu próprio dinheiro, conviver com as mais variadas pessoas segundo a
atracção do momento. Neste caso, sobressai o testemunho das pessoas casadas.
Aqueles que foram chamados à virgindade podem encontrar, nalguns casais de
esposos, um sinal claro da fidelidade generosa e indestrutível de Deus à sua
Aliança, que pode estimular os seus corações a uma disponibilidade mais
concreta e oblativa. Com efeito, há pessoas casadas que mantêm a sua
fidelidade, quando o cônjuge se tornou fisicamente desagradável ou deixou de
satisfazer as suas necessidades; e fazem-no, não obstante muitas ocasiões os
convidarem à infidelidade ou ao abandono. Uma mulher pode cuidar do marido
doente e ali, ao pé da Cruz, volta a oferecer o «sim» do seu amor até à morte.
Em semelhante amor, manifesta-se de forma esplêndida a dignidade de quem ama,
dignidade como reflexo da caridade, já que é mais próprio da caridade amar do
que ser amado.[172] Uma
capacidade de serviço oblativo e carinhoso pode ser observada também em muitas
famílias com filhos difíceis e até ingratos. Isto faz desses pais um sinal do
amor livre e desinteressado de Jesus. Tudo isto se torna, para as pessoas
celibatárias, um convite a viverem a sua dedicação ao Reino com maior
generosidade e disponibilidade. Hoje, a secularização ofuscou o valor duma
união para toda a vida e debilitou a riqueza da dedicação matrimonial, pelo que
«é preciso aprofundar os aspectos positivos do amor conjugal».[173]
A transformação do amor
163. O alongamento da vida provocou algo que não era comum noutros
tempos: a relação íntima e a mútua pertença devem ser mantidas durante quatro,
cinco ou seis décadas, e isto gera a necessidade de renovar repetidas vezes a
recíproca escolha. Talvez o cônjuge já não esteja apaixonado com um desejo
sexual intenso que o atraia para outra pessoa, mas sente o prazer de lhe
pertencer e que esta pessoa lhe pertença, de saber que não está só, de ter um
«cúmplice» que conhece tudo da sua vida e da sua história e tudo partilha. É o
companheiro no caminho da vida, com quem se pode enfrentar as dificuldades e
gozar das coisas lindas. Também isto gera uma satisfação, que acompanha a
decisão própria do amor conjugal. Não é possível prometer que teremos os mesmos
sentimentos durante a vida inteira; mas podemos ter um projecto comum estável,
comprometer-nos a amar-nos e a viver unidos até que a morte nos separe, e viver
sempre uma rica intimidade. O amor, que nos prometemos, supera toda a emoção,
sentimento ou estado de ânimo, embora possa incluí-los. É um querer-se bem mais
profundo, com uma decisão do coração que envolve toda a existência. Assim, no
meio dum conflito não resolvido e ainda que muitos sentimentos confusos girem
pelo coração, mantém-se viva dia-a-dia a decisão de amar, de se pertencer, de
partilhar a vida inteira e continuar a amar-se e perdoar-se. Cada um dos dois
realiza um caminho de crescimento e mudança pessoal. No curso de tal caminho, o
amor celebra cada passo, cada etapa nova.
164. Na história dum casal, a aparência física muda, mas isso não é
motivo para que a atracção amorosa diminua. Um cônjuge enamora-se pela pessoa
inteira do outro, com uma identidade própria, e não apenas pelo corpo, embora
este corpo, independentemente do desgaste do tempo, nunca deixe de expressar de
alguma forma aquela identidade pessoal que cativou o coração. Quando os outros
já não podem reconhecer a beleza desta identidade, o cônjuge enamorado continua
a ser capaz de a individuar com o instinto do amor, e o carinho não desaparece.
Reitera a sua decisão de lhe pertencer, volta a escolhê-lo, e exprime esta
escolha numa proximidade fiel e cheia de ternura. A nobreza da sua opção pelo
outro, por ser intensa e profunda, desperta uma nova forma de emoção no
cumprimento desta missão conjugal. Com efeito, «a emoção provocada por outro
ser humano como pessoa (...) não tende, de per si, para o acto conjugal».[174] Adquire
outras expressões sensíveis, porque o amor «é uma única realidade, embora com
distintas dimensões; caso a caso, pode uma ou outra dimensão sobressair mais».[175] O
vínculo encontra novas modalidades e exige a decisão de reatá-lo repetidamente;
e não só para o conservar, mas para o fazer crescer. É o caminho de se
construir dia após dia. Entretanto nada disto é possível, se não se invoca o
Espírito Santo, se não se clama todos os dias pedindo a sua graça, se não se
procura a sua força sobrenatural, se não Lhe fazemos presente o desejo de que
derrame o seu fogo sobre o nosso amor para o fortalecer, orientar e transformar
em cada nova situação.
CAPÍTULO V: O AMOR QUE SE TORNA FECUNDO
165. O amor sempre dá vida. Por isso, o amor conjugal «não se esgota no
interior do próprio casal (...). Os cônjuges, enquanto se doam entre si, doam
para além de si mesmos a realidade do filho, reflexo vivo do seu amor, sinal
permanente da unidade conjugal e síntese viva e indissociável do ser pai e
mãe».[176]
Acolher uma nova vida
166. A família é o âmbito não só da geração, mas também do acolhimento
da vida que chega como um presente de Deus. Cada nova vida «permite-nos
descobrir a dimensão mais gratuita do amor, que nunca cessa de nos surpreender.
É a beleza de ser amado primeiro: os filhos são amados antes de chegar».[177] Isto
mostra-nos o primado do amor de Deus que sempre toma a iniciativa, porque os
filhos «são amados antes de ter feito algo para o merecer».[178] Mas,
«desde o início, numerosas crianças são rejeitadas, abandonadas e subtraídas à
sua infância e ao seu futuro. Alguns ousam dizer, como que para se justificar,
que foi um erro tê-las feito vir ao mundo. Isto é vergonhoso! (...) Que
aproveitam as solenes declarações dos direitos do homem e dos direitos da
criança, se depois punimos as crianças pelos erros dos adultos?»[179] Se
uma criança chega ao mundo em circunstâncias não desejadas, os pais ou os
outros membros da família devem fazer todo o possível para aceitá-la como dom
de Deus e assumir a responsabilidade de a acolher com magnanimidade e carinho.
Com efeito, «quando se trata de crianças que vêm ao mundo, nenhum sacrifício
dos adultos será julgado demasiado oneroso ou grande, contanto que se evite que
uma criança chegue a pensar que é um erro, que não vale nada e que está
abandonada aos infortúnios da vida e à prepotência dos homens».[180] O
dom dum novo filho, que o Senhor confia ao pai e à mãe, tem início com o seu
acolhimento, continua com a sua guarda ao longo da vida terrena e tem como destino
final a alegria da vida eterna. Um olhar sereno voltado para a realização final
da pessoa humana tornará os pais ainda mais conscientes do precioso dom que
lhes foi confiado; de facto, Deus concede-lhes fazer a escolha do nome com que
Ele chamará cada um dos seus filhos por toda a eternidade.[181]
167. As famílias numerosas são uma alegria para a Igreja. Nelas, o amor
manifesta a sua fecundidade generosa. Isto não implica esquecer uma sã
advertência de São João Paulo II, quando explicava que a paternidade
responsável não é «procriação ilimitada ou falta de consciência acerca daquilo
que é necessário para o crescimento dos filhos, mas é, antes, a faculdade que
os cônjuges têm de usar a sua liberdade inviolável de modo sábio e responsável,
tendo em consideração tanto as realidades sociais e demográficas, como a sua
própria situação e os seus legítimos desejos».[182]
O amor na expectativa própria da gravidez
168. A gravidez é um período difícil, mas também um tempo maravilhoso. A
mãe colabora com Deus, para que se verifique o milagre duma nova vida. A
maternidade surge duma «particular potencialidade do organismo feminino, que,
com a sua peculiaridade criadora, serve para a concepção e a geração do ser
humano».[183] Cada
mulher participa do «mistério da criação, que se renova na geração humana».[184] Assim
diz o Salmo: Senhor, «formaste-me no seio de minha mãe» (Sl 139/138,
13). Cada criança, que se forma dentro de sua mãe, é um projecto eterno de Deus
Pai e do seu amor eterno: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já
te conhecia; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei» (Jr 1,
5). Cada criança está no coração de Deus desde sempre e, no momento em que é
concebida, realiza-se o sonho eterno do Criador. Pensemos quanto vale o
embrião, desde que é concebido! É preciso contemplá-lo com este olhar amoroso
do Pai, que vê para além de toda a aparência.
169. A mulher grávida pode participar deste projecto de Deus, sonhando o
seu filho: «Toda a mãe e todo o pai sonharam o seu filho durante nove meses.
(...) Não é possível uma família sem o sonho. Numa família, quando se perde a
capacidade de sonhar, os filhos não crescem, o amor não cresce; a vida
debilita-se e apaga-se».[185] Neste
sonho, para um casal cristão, aparece necessariamente o baptismo. Os pais
preparam-no com a sua oração, confiando o filho a Jesus já antes do seu
nascimento.
170. Hoje, com os progressos feitos pela ciência, é possível saber de
antemão a cor que terá o cabelo da criança e as doenças que poderá ter no
futuro, porque todas as características somáticas daquela pessoa estão
inscritas no seu código genético já no estado embrionário. Mas, conhecê-lo em
plenitude, só consegue o Pai do Céu que o criou: o mais precioso, o mais
importante só Ele conhece, pois é Ele que sabe quem é aquela criança, qual é a
sua identidade mais profunda. A mãe, que o traz no ventre, precisa de pedir luz
a Deus para poder conhecer em profundidade o seu próprio filho e saber
esperá-lo como ele é. Alguns pais sentem que o seu filho não chega no melhor
momento; faz-lhes falta pedir ao Senhor que os cure e fortaleça para aceitarem
plenamente aquele filho, para o esperarem com todo o coração. É importante que
aquela criança se sinta esperada. Não é um complemento ou uma solução para uma
aspiração pessoal, mas um ser humano, com um valor imenso, e não pode ser usado
para benefício próprio. Por conseguinte, não é importante se esta nova vida te
será útil ou não, se possui características que te agradam ou não, se
corresponde ou não aos teus projectos e sonhos. Porque «os filhos são uma
dádiva! Cada um é único e irrepetível (...). Um filho é amado porque é filho:
não, porque é bonito ou porque é deste modo ou daquele, mas porque é filho!
Não, porque pensa como eu, nem porque encarna as minhas aspirações. Um filho é
um filho».[186] O
amor dos pais é instrumento do amor de Deus Pai, que espera com ternura o
nascimento de cada criança, aceita-a incondicionalmente e acolhe-a
gratuitamente.
171 A cada mulher grávida, quero pedir-lhe afectuosamente: Cuida da tua
alegria, que nada te tire a alegria interior da maternidade. Aquela criança
merece a tua alegria. Não permitas que os medos, as preocupações, os
comentários alheios ou os problemas apaguem esta felicidade de ser instrumento
de Deus para trazer uma nova vida ao mundo. Ocupa-te daquilo que é preciso
fazer ou preparar, mas sem obsessões, e louva como Maria: «A minha alma
glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque pôs
os olhos na humildade da sua serva» (Lc 1, 46-48). Vive, com sereno
entusiasmo, no meio dos teus incómodos e pede ao Senhor que guarde a tua
alegria para poderes transmiti-la ao teu filho.
Amor de mãe e de pai
172. «Recém-nascidas, as crianças começam a receber em dom, juntamente
com o alimento e os cuidados, a confirmação das qualidades espirituais do amor.
Os gestos de amor passam através do dom do seu nome pessoal, da partilha da
linguagem, das intenções dos olhares, das iluminações dos sorrisos. Assim,
aprendem que a beleza do vínculo entre os seres humanos mostra a nossa alma,
procura a nossa liberdade, aceita a diversidade do outro, reconhece-o e
respeita-o como interlocutor. (...) E isto é amor, que contém uma centelha do
amor de Deus».[187] Toda
a criança tem direito a receber o amor de uma mãe e de um pai, ambos
necessários para o seu amadurecimento íntegro e harmonioso. Como disseram os
bispos da Austrália, ambos «contribuem, cada um à sua maneira, para o
crescimento duma criança. Respeitar a dignidade duma criança significa afirmar
a sua necessidade e o seu direito natural a ter uma mãe e um pai».[188] Não
se trata apenas do amor do pai e da mãe separadamente, mas também do amor entre
eles, captado como fonte da própria existência, como ninho acolhedor e como
fundamento da família. Caso contrário, o filho parece reduzir-se a uma posse
caprichosa. Ambos, homem e mulher, pai e mãe, são «cooperadores do amor de Deus
criador e como que os seus intérpretes».[189] Mostram
aos seus filhos o rosto materno e o rosto paterno do Senhor. Além disso, é
juntos que eles ensinam o valor da reciprocidade, do encontro entre seres
diferentes, onde cada um contribui com a sua própria identidade e sabe também
receber do outro. Se, por alguma razão inevitável, falta um dos dois, é
importante procurar alguma maneira de o compensar, para favorecer o adequado
amadurecimento do filho.
173. O sentimento de ser órfãos, que hoje experimentam muitas crianças e
jovens, é mais profundo do que pensamos. Hoje reconhecemos como plenamente
legítimo, e até desejável, que as mulheres queiram estudar, trabalhar,
desenvolver as suas capacidades e ter objectivos pessoais. Mas, ao mesmo tempo,
não podemos ignorar a necessidade que as crianças têm da presença materna,
especialmente nos primeiros meses de vida. A realidade é que «a mulher
apresenta-se diante do homem como mãe, sujeito da nova vida humana, que nela é
concebida e se desenvolve, e dela nasce para o mundo».[190] O
enfraquecimento da presença materna, com as suas qualidades femininas, é um
risco grave para a nossa terra. Aprecio o feminismo, quando não pretende a
uniformidade nem a negação da maternidade. Com efeito, a grandeza das mulheres
implica todos os direitos decorrentes da sua dignidade humana inalienável, mas
também do seu génio feminino, indispensável para a sociedade. As suas
capacidades especificamente femininas – em particular a maternidade –
conferem-lhe também deveres, já que o seu ser mulher implica também uma missão
peculiar nesta terra, que a sociedade deve proteger e preservar para bem de
todos.[191]
174. De facto, «as mães são o antídoto mais forte contra o propagar-se
do individualismo egoísta. (...) São elas que testemunham a beleza da vida».[192] Sem
dúvida, «uma sociedade sem mães seria uma sociedade desumana, porque as mães
sabem testemunhar sempre, mesmo nos piores momentos, a ternura, a dedicação, a
força moral. As mães transmitem, muitas vezes, também o sentido mais profundo
da prática religiosa: nas primeiras orações, nos primeiros gestos de devoção
que uma criança aprende (...). Sem as mães, não somente não haveria novos
fiéis, mas a fé perderia boa parte do seu calor simples e profundo. (...)
Queridas mães, obrigado, obrigado por aquilo que sois na família e pelo que
dais à Igreja e ao mundo».[193]
175. A mãe, que ampara o filho com a sua ternura e compaixão, ajuda a
despertar nele a confiança, a experimentar que o mundo é um lugar bom que o
acolhe, e isto permite desenvolver uma auto-estima que favorece a capacidade de
intimidade e a empatia. Por sua vez, a figura do pai ajuda a perceber os
limites da realidade, caracterizando-se mais pela orientação, pela saída para o
mundo mais amplo e rico de desafios, pelo convite a esforçar-se e lutar. Um pai
com uma clara e feliz identidade masculina, que por sua vez combine no seu
trato com a esposa o carinho e o acolhimento, é tão necessário como os cuidados
maternos. Há funções e tarefas flexíveis, que se adaptam às circunstâncias
concretas de cada família, mas a presença clara e bem definida das duas
figuras, masculina e feminina, cria o âmbito mais adequado para o
amadurecimento da criança.
176. Diz-se que a nossa sociedade é uma «sociedade sem pais». Na cultura
ocidental, a figura do pai estaria simbolicamente ausente, distorcida,
desvanecida. Até a virilidade pareceria posta em questão. Verificou-se uma
compreensível confusão, já que, «num primeiro momento, isto foi sentido como
uma libertação: libertação do pai-patrão, do pai como representante da lei que
se impõe de fora, do pai como censor da felicidade dos filhos e impedimento à
emancipação e à autonomia dos jovens. Por vezes, havia casas em que no passado
reinava o autoritarismo, em certos casos até a prepotência».[194] Mas,
«como acontece muitas vezes, passa-se de um extremo ao outro. O problema nos
nossos dias não parece ser tanto a presença invasora do pai, mas sim a sua
ausência, o facto de não estar presente. Por vezes o pai está tão concentrado
em si mesmo e no próprio trabalho ou então nas próprias realizações individuais
que até se esquece da família. E deixa as crianças e os jovens sozinhos».[195] A
presença paterna e, consequentemente, a sua autoridade são afectadas também
pelo tempo cada vez maior que se dedica aos meios de comunicação e à tecnologia
da distracção. Além disso, hoje, a autoridade é olhada com suspeita e os
adultos são duramente postos em discussão. Eles próprios abandonam as certezas
e, por isso, não dão orientações seguras e bem fundamentadas aos seus filhos.
Não é saudável que sejam invertidas as funções entre pais e filhos: prejudica o
processo adequado de amadurecimento que as crianças precisam de fazer e
nega-lhes um amor capaz de as orientar e que as ajude a maturar.[196]
177. Deus coloca o pai na família, para que, com as características
preciosas da sua masculinidade, «esteja próximo da esposa, para compartilhar
tudo, alegrias e dores, dificuldades e esperanças. E esteja próximo dos filhos
no seu crescimento: quando brincam e quando se aplicam, quando estão
descontraídos e quando se sentem angustiados, quando se exprimem e quando
permanecem calados, quando ousam e quando têm medo, quando dão um passo errado
e quando voltam a encontrar o caminho; pai presente, sempre. Estar presente não
significa ser controlador, porque os pais demasiado controladores aniquilam os
filhos».[197] Alguns
pais sentem-se inúteis ou desnecessários, mas a verdade é que «os filhos têm
necessidade de encontrar um pai que os espera quando voltam dos seus fracassos.
Farão de tudo para não o admitir, para não o revelar, mas precisam dele».[198] Não
é bom que as crianças fiquem sem pais e, assim, deixem de ser crianças antes do
tempo.
Fecundidade alargada
178. Àqueles que não podem ter filhos, lembramos que «o matrimónio não
foi instituído só em ordem à procriação (...). E por isso, mesmo que faltem os
filhos, tantas vezes ardentemente desejados, o matrimónio conserva o seu valor
e indissolubilidade, como comunidade e comunhão de toda a vida».[199] Além
disso, «a maternidade não é uma realidade exclusivamente biológica, mas
expressa-se de diversas maneiras».[200]
179. A adopção é um caminho para realizar a maternidade e a paternidade
de uma forma muito generosa, e desejo encorajar aqueles que não podem ter
filhos a alargar e abrir o seu amor conjugal para receber quem está privado de
um ambiente familiar adequado. Nunca se arrependerão de ter sido generosos.
Adoptar é o acto de amor que oferece uma família a quem não a tem. É importante
insistir para que a legislação possa facilitar o processo de adopção, sobretudo
nos casos de filhos não desejados, evitando assim o aborto ou o abandono.
Aqueles que assumem o desafio de adoptar e acolhem uma pessoa de maneira
incondicional e gratuita, tornam-se mediação do amor de Deus que diz: «Ainda
que a tua mãe chegasse a esquecer-te, Eu nunca te esqueceria» (cf. Is 49,
15).
180. «A opção da adopção e do acolhimento exprime uma fecundidade
particular da experiência conjugal, mesmo para além dos casos de esposos com
problemas de fertilidade (...). Ao contrário das situações em que o filho é
desejado a todo o custo, como um direito ao próprio completamento, a adopção e
o acolhimento, rectamente compreendidos, mostram um aspecto importante da
paternidade e da filiação ajudando a reconhecer que os filhos, quer naturais
quer adoptivos ou acolhidos, são em si mesmos outro sujeito e é preciso
recebê-los, amá-los, cuidar deles e não apenas trazê-los ao mundo. O interesse
prevalecente da criança deveria sempre inspirar as decisões sobre a adopção e o
acolhimento».[201] Por
outro lado, «deve-se impedir o tráfico de crianças entre países e continentes,
por meio de oportunas medidas legislativas e controle estatal».[202]
181. Convém lembrar-nos também de que a procriação e a adopção não são
as únicas maneiras de viver a fecundidade do amor. Mesmo a família com muitos
filhos é chamada a deixar a sua marca na sociedade onde está inserida,
desenvolvendo outras formas de fecundidade que são uma espécie de extensão do
amor que a sustenta. As famílias cristãs não esqueçam que «a fé não nos tira do
mundo, mas insere-nos mais profundamente nele. (...) A cada um de nós cabe um
papel especial na preparação da vinda do Reino de Deus».[203] A
família não deve imaginar-se como um recinto fechado, procurando proteger-se da
sociedade. Não fica à espera, mas sai de si mesma à procura de solidariedade.
Assim transforma-se num lugar de integração da pessoa com a sociedade e num
ponto de união entre o público e o privado. Os cônjuges precisam de adquirir
consciência clara e convicta dos seus deveres sociais. Quando isto acontece,
não diminui o carinho que os une; antes, enche-se de nova luz, como está
expresso nos seguintes versos:
«As tuas mãos são a minha carícia,
o meu despertar diário
amo-te porque tuas mãos
trabalham pela justiça.
Se te amo, é porque és
o meu amor, o meu cúmplice e tudo
e na rua, lado a lado,
somos muito mais que dois».[204]
182. Nenhuma família pode ser fecunda, se se concebe como demasiado diferente
ou «separada». Para evitar este risco, lembremo-nos que a família de Jesus,
cheia de graça e sabedoria, não era vista como uma família «estranha», como um
lar alheado e distante da gente. Por isso mesmo as pessoas sentiram dificuldade
em reconhecer a sabedoria de Jesus e diziam: «De onde é que isto lhe vem? (…)
Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria?» (Mc 6, 2.3). «Não é Ele
o filho do carpinteiro?» (Mt 13, 55). Isto confirma que era uma
família simples, próxima de todos, integrada normalmente na povoação. E Jesus
também não cresceu numa relação fechada e exclusiva com Maria e José, mas de
bom grado movia-se na família alargada, onde encontrava os parentes e os
amigos. Isto explica por que, quando regressavam de Jerusalém, os seus pais
admitissem a possibilidade de o Menino de doze anos vagar pela caravana um dia
inteiro, ouvindo as histórias e partilhando as preocupações de todos: «Pensando
que Ele Se encontrava na caravana, fizeram um dia de viagem» (Lc 2,
44). Mas, às vezes, acontece que algumas famílias cristãs, pela linguagem que
usam, a maneira de dizer as coisas, o estilo do seu tratamento, a repetição
constante de dois ou três assuntos, são vistas como distantes, separadas da
sociedade, e até os próprios parentes se sentem desprezados ou julgados por
elas.
183. Um casal de esposos, que experimenta a força do amor, sabe que este
amor é chamado a sarar as feridas dos abandonados, estabelecer a cultura do
encontro, lutar pela justiça. Deus confiou à família o projecto de tornar
«doméstico» o mundo,[205] de
modo que todos cheguem a sentir cada ser humano como um irmão: «Um olhar atento
à vida quotidiana dos homens e das mulheres de hoje demonstra imediatamente a
necessidade que há, em toda a parte, duma vigorosa injecção de espírito
familiar. (...) Não só a organização da vida comum encalha cada vez mais numa
burocracia totalmente alheia aos vínculos humanos fundamentais, mas até o
costume social e político mostra frequentemente sinais de degradação».[206] Pelo
contrário, as famílias magnânimas e solidárias abrem espaço aos pobres, são
capazes de tecer uma amizade com aqueles que estão a viver pior do que elas. Se
realmente têm a peito o Evangelho, não podem esquecer o que diz Jesus: «Sempre
que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o
fizestes» (Mt 25, 40). Em última análise, vivem o que nos é pedido,
de forma tão eloquente, neste texto: «Quando deres um almoço ou um jantar, não
convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus
vizinhos ricos; não vão eles também convidar-te, por sua vez, e assim
retribuir-te. Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os
coxos e os cegos. E serás feliz» (Lc 14, 12-14). Serás feliz! Aqui
está o segredo duma família feliz.
184. Com o testemunho e também com a palavra, as famílias falam de Jesus
aos outros, transmitem a fé, despertam o desejo de Deus e mostram a beleza do
Evangelho e do estilo de vida que nos propõe. Assim os esposos cristãos pintam
o cinzento do espaço público, colorindo-o de fraternidade, sensibilidade
social, defesa das pessoas frágeis, fé luminosa, esperança activa. A sua
fecundidade alarga-se, traduzindo-se em mil e uma maneiras de tornar o amor de
Deus presente na sociedade.
Distinguir o Corpo
185. Nesta linha, convém tomar muito a sério um texto bíblico que
habitualmente é interpretado fora do seu contexto ou duma maneira muito geral,
pelo que é possível negligenciar o seu sentido mais imediato e directo, que é
marcadamente social. Trata-se da primeira Carta aos Coríntios (11, 17-34), onde
São Paulo enfrenta uma situação vergonhosa da comunidade. Nela, algumas pessoas
facultosas tendiam a discriminar os pobres, e isto verificava-se mesmo na ágape
que acompanhava a celebração da Eucaristia. Enquanto os ricos se deleitavam com
seus manjares, os pobres olhavam e passavam fome: «Enquanto um passa fome,
outro fica embriagado. Porventura não tendes casas para comer e beber? Ou
desprezais a Igreja de Deus e quereis envergonhar aqueles que nada têm?» (vv.
21-22).
186. A Eucaristia exige a integração no único corpo eclesial. Quem se
abeira do Corpo e do Sangue de Cristo não pode ao mesmo tempo ofender aquele
mesmo Corpo, fazendo divisões e discriminações escandalosas entre os seus
membros. Na realidade, trata-se de «distinguir» o Corpo do Senhor, de O
reconhecer com fé e caridade, quer nos sinais sacramentais quer na comunidade;
caso contrário, come-se e bebe-se a própria condenação (cf. v. 29). Este texto
bíblico é um sério aviso para as famílias que se fecham na própria comodidade e
se isolam e, de modo especial, para as famílias que ficam indiferentes aos
sofrimentos das famílias pobres e mais necessitadas. Assim, a celebração
eucarística torna-se um apelo constante a cada um para que «se examine a si
mesmo» (v. 28), a fim de abrir as portas da própria família a uma maior
comunhão com os descartados da sociedade e depois, sim, receber o sacramento do
amor eucarístico que faz de nós um só corpo. Não se deve esquecer que «a
“mística” do sacramento tem um carácter social».[207] Quando
os comungantes se mostram relutantes em deixar-se impelir a um compromisso a
favor dos pobres e atribulados ou consentem diferentes formas de divisão,
desprezo e injustiça, recebem indignamente a Eucaristia. Ao contrário, as
famílias, que se alimentam da Eucaristia com a disposição adequada, reforçam o
seu desejo de fraternidade, o seu sentido social e o seu compromisso para com
os necessitados.
A vida na família em sentido amplo
187. O núcleo familiar restrito não deveria isolar-se da família
alargada, onde estão os pais, os tios, os primos e até os vizinhos. Nesta
família ampla, pode haver pessoas necessitadas de ajuda, ou pelo menos de
companhia e gestos de carinho, ou pode haver grandes sofrimentos que precisam
de conforto.[208] Às
vezes o individualismo destes tempos leva a fechar-se na segurança dum pequeno
ninho e a sentir os outros como um incómodo. Todavia este isolamento não
proporciona mais paz e felicidade, antes fecha o coração da família e priva-a
do horizonte amplo da existência.
Ser filho
188. Em primeiro lugar, falemos dos pais próprios. Jesus lembrava aos
fariseus que o abandono dos pais é contrário à Lei de Deus (cf. Mc 7,
8-13). Não faz bem a ninguém perder a consciência de ser filho. Em cada pessoa,
«mesmo quando se torna adulta ou idosa, quando passa também a ser progenitora
ou desempenha funções de responsabilidade, por baixo de tudo isso permanece a
identidade de filho. Todos somos filhos. E isto recorda-nos sempre que a vida
não no-la demos sozinhos, mas recebemo-la. O grande dom da vida é o primeiro
presente que recebemos».[209]
189. Por isso, «o quarto mandamento pede aos filhos (…) que honrem o pai
e a mãe (cf. Ex 20, 12). Este mandamento vem logo após aqueles
que dizem respeito ao próprio Deus. Com efeito, contém algo de sagrado, algo de
divino, algo que está na raiz de todos os outros tipos de respeito entre os
homens. E, na formulação bíblica do quarto mandamento, acrescenta-se: “para que
se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor, teu Deus, te dá”. O
vínculo virtuoso entre as gerações é garantia de futuro e de uma história
verdadeiramente humana. Uma sociedade de filhos que não honram os pais é uma
sociedade sem honra (...). É uma sociedade destinada a encher-se de jovens
áridos e ávidos».[210]
190. Mas há também a outra face da moeda: «O homem deixará o pai e a
mãe» (Gn 2, 24), diz a Palavra de Deus. Às vezes, isto não é
cumprido, nunca se chegando a assumir o matrimónio, porque falta esta renúncia
e esta dedicação. Os pais não devem ser abandonados nem transcurados, mas, para
unir-se em matrimónio, é preciso deixá-los, de modo que o novo lar seja a
morada, a protecção, a plataforma e o projecto, e seja possível tornar-se
verdadeiramente «uma só carne» (Gn 2, 24). Sucede, em alguns
casais, ocultar ao próprio cônjuge muitas coisas, que entretanto se dizem aos
pais, chegando ao ponto de se importar mais com as opiniões destes do que com
os sentimentos e as opiniões do cônjuge. Não é fácil manter esta situação por
muito tempo, e só provisoriamente poderia ter lugar, isto é, enquanto se criam
as condições para crescer na confiança e no diálogo. O matrimónio desafia a
encontrar uma nova maneira de ser filho.
Os idosos
191. «Não me rejeites no tempo da velhice; não me abandones, quando já
não tiver forças» (Sl 71/70, 9). É o brado do idoso, que teme o
esquecimento e o desprezo. Assim como Deus nos convida a ser seus instrumentos
para escutar a súplica dos pobres, assim também espera que ouçamos o brado dos
idosos.[211] Isto
interpela as famílias e as comunidades, porque «a Igreja não pode nem quer
conformar-se com uma mentalidade de impaciência, e muito menos de indiferença e
desprezo, em relação à velhice. Devemos despertar o sentido colectivo de
gratidão, apreço, hospitalidade, que faça o idoso sentir-se parte viva da sua
comunidade. Os idosos são homens e mulheres, pais e mães que, antes de nós,
percorreram o nosso próprio caminho, estiveram na nossa mesma casa, combateram
a nossa mesma batalha diária por uma vida digna».[212] Por
isso, «como gostaria duma Igreja que desafia a cultura do descarte com a
alegria transbordante dum novo abraço entre jovens e idosos!»[213]
192. São João Paulo II convidou-nos a prestar atenção ao lugar do idoso
na família, porque há culturas que, «especialmente depois dum desenvolvimento
industrial e urbanístico desordenado, forçaram, e continuam a forçar, os idosos
a situações inaceitáveis de marginalização».[214] Os
idosos ajudam a perceber «a continuidade das gerações», com «o carisma de
lançar uma ponte»[215] entre
elas. Muitas vezes são os avós que asseguram a transmissão dos grandes valores
aos seus netos, e «muitas pessoas podem constatar que devem a sua iniciação na
vida cristã precisamente aos avós».[216] As
suas palavras, as suas carícias ou a simples presença ajudam as crianças a
reconhecer que a história não começa com elas, que são herdeiras dum longo
caminho e que é necessário respeitar o fundamento que as precede. Quem quebra
os laços com a história terá dificuldade em tecer relações estáveis e
reconhecer que não é o dono da realidade. Com efeito, «a atenção aos idosos
distingue uma civilização. Numa civilização, presta-se atenção ao idoso? Há
lugar para o idoso? Esta civilização irá em frente, se souber respeitar a
sabedoria dos idosos».[217]
193. A falta de memória histórica é um defeito grave da nossa sociedade.
É a mentalidade imatura do «já está ultrapassado». Conhecer e ser capaz de
tomar posição perante os acontecimentos passados é a única possibilidade de
construir um futuro que tenha sentido. Não se pode educar sem memória:
«Recordai os dias passados» (Heb 10, 32). As histórias dos idosos
fazem muito bem às crianças e aos jovens, porque os ligam à história vivida
tanto pela família como pela vizinhança e o país. Uma família que não respeita
nem cuida dos seus avós, que são a sua memória viva, é uma família
desintegrada; mas uma família que recorda é uma família com futuro. Por isso,
«numa civilização em que não há espaço para os idosos ou onde eles são
descartados porque criam problemas, tal sociedade traz em si o vírus da morte»,[218] porque
«se separa das próprias raízes».[219] O
fenómeno contemporâneo de sentir-se órfão, em termos de descontinuidade,
desenraizamento e perda das certezas que dão forma à vida, desafia-nos a fazer
das nossas famílias um lugar onde as crianças possam lançar raízes no terreno
duma história colectiva.
Ser irmão
194. A relação entre os irmãos aprofunda-se com o passar do tempo, e «o
laço de fraternidade que se forma na família entre os filhos, quando se
verifica num clima de educação para a abertura aos outros, é uma grande escola
de liberdade e de paz. Em família, entre irmãos, aprendemos a convivência
humana (…). Talvez nem sempre estejamos conscientes disto, mas é precisamente a
família que introduz a fraternidade no mundo. A partir desta primeira
experiência de fraternidade, alimentada pelos afectos e pela educação familiar,
o estilo da fraternidade irradia-se como uma promessa sobre a sociedade inteira».[220]
195. Crescer entre irmãos proporciona a bela experiência de cuidar uns
dos outros, de ajudar e ser ajudado. Por isso, «a fraternidade na família
resplandece de modo especial quando vemos a solicitude, a paciência e o carinho
com que é circundado o irmãozinho ou a irmãzinha mais frágil, doente ou
deficiente».[221] Faz
falta reconhecer que «ter um irmão, uma irmã que te ama é uma experiência
forte, inestimável, insubstituível»,[222] mas
é preciso ensinar, com paciência, os filhos a tratar-se como irmãos. Esta aprendizagem,
por vezes fadigosa, é uma verdadeira escola de sociabilidade. Nalguns países,
existe uma forte tendência para ter apenas um filho, pelo que a experiência de
ser irmão começa a ser rara. Nos casos em que não se pôde ter mais de um filho,
é preciso encontrar formas de a criança não crescer sozinha ou isolada.
Um coração grande
196. Com efeito, além do círculo pequeno formado pelos cônjuges e seus
filhos, temos a família alargada, que não pode ser ignorada. Com efeito, «o
amor entre o homem e a mulher no matrimónio e, de forma derivada e ampla, o
amor entre os membros da mesma família – entre pais e filhos, entre irmãos e
irmãs, entre parentes e familiares – é animado e impelido por um dinamismo
interior e incessante, que leva a família a uma comunhão sempre mais profunda e
intensa, fundamento e alma da comunidade conjugal e familiar».[223] Aí
se integram também os amigos e as famílias amigas, e mesmo as comunidades de
famílias que se apoiam mutuamente nas suas dificuldades, no seu compromisso
social e na fé.
197. Esta família alargada deveria acolher, com tanto amor, as mães
solteiras, as crianças sem pais, as mulheres abandonadas que devem continuar a
educação dos seus filhos, as pessoas deficientes que requerem muito carinho e
proximidade, os jovens que lutam contra uma dependência, as pessoas solteiras,
separadas ou viúvas que sofrem a solidão, os idosos e os doentes que não
recebem o apoio dos seus filhos, até incluir no seio dela «mesmo os mais
desastrados nos comportamentos da sua vida».[224] E
pode também ajudar a compensar as fragilidades dos pais, ou a descobrir e
denunciar a tempo possíveis situações de violência ou mesmo de abuso sofridas
pelas crianças, dando-lhes um amor sadio e um sustentáculo familiar, quando os
seus pais não o podem assegurar.
198. Por fim, não se pode esquecer que, nesta família alargada, estão
também o sogro, a sogra e todos os parentes do cônjuge. Uma delicadeza própria
do amor é evitar vê-los como concorrentes, como pessoas perigosas, como
invasores. A união conjugal exige que se respeite as suas tradições e costumes,
se procure compreender a sua linguagem, evitar maledicências, cuidar deles e
integrá-los dalguma forma no próprio coração, embora se deva preservara
legítima autonomia e a intimidade do casal. Estas atitudes são também uma
excelente maneira de exprimir a generosidade da dedicação amorosa ao próprio
cônjuge.
CAPÍTULO VI: ALGUMAS PERSPECTIVAS
PASTORAIS
199. Os debates do caminho sinodal puseram a descoberto a necessidade de
desenvolver novos caminhos pastorais, que procurarei agora resumir em geral. As
diferentes comunidades é que deverão elaborar propostas mais práticas e
eficazes, que tenham em conta tanto a doutrina da Igreja como as necessidades e
desafios locais. Sem pretender apresentar aqui uma pastoral da família,
limitar-me-ei a coligir alguns dos principais desafios pastorais.
Anunciar hoje o Evangelho da família
200. Os Padres sinodais insistiram no facto de que as famílias cristãs
são, pela graça do sacramento nupcial, os sujeitos principais da pastoral
familiar, sobretudo oferecendo «o testemunho jubiloso dos cônjuges e das
famílias, igrejas domésticas».[225] Para
isso – sublinharam – é preciso fazer-lhes «experimentar que o Evangelho da
família é alegria que “enche o coração e a vida inteira”, porque, em Cristo,
somos “libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento” (Evangelii gaudium, 1). À luz da parábola do
semeador (cf. Mt 13, 3-9), a nossa tarefa consiste em cooperar
na sementeira: o resto é obra de Deus. E não se deve esquecer também que a
Igreja, que prega sobre a família, é sinal de contradição»,[226] mas
os esposos agradecem que os pastores lhes ofereçam motivações para uma aposta
corajosa num amor forte, sólido, duradouro, capaz de enfrentar todos os
imprevistos que lhes surjam. É com humilde compreensão que a Igreja quer chegar
às famílias, com o desejo de «acompanhar todas e cada uma delas a fim de que
descubram a saída melhor para superar as dificuldades que encontram no seu
caminho».[227] Não
basta inserir uma genérica preocupação pela família nos grandes projectos
pastorais; para que as famílias possam ser sujeitos cada vez mais activos da
pastoral familiar, requer-se «um esforço evangelizador e catequético dirigido à
família»,[228] que
a encaminhe nesta direcção.
201. «Por isso exige-se a toda a Igreja uma conversão missionária: é
preciso não se contentar com um anúncio puramente teórico e desligado dos
problemas reais das pessoas».[229] A
pastoral familiar «deve fazer experimentar que o Evangelho da família é
resposta às expectativas mais profundas da pessoa humana: a sua dignidade e
plena realização na reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata
apenas de apresentar uma normativa, mas de propor valores, correspondendo à
necessidade deles que se constata hoje, mesmo nos países mais secularizados».[230] De
igual modo «sublinhou-se a necessidade duma evangelização que denuncie, com
desassombro, os condicionalismos culturais, sociais, políticos e económicos,
bem como o espaço excessivo dado à lógica do mercado, que impedem uma vida
familiar autêntica, gerando discriminação, pobreza, exclusão e violência. Para
isso, temos de entrar em diálogo e cooperação com as estruturas sociais, bem
como encorajar e apoiar os leigos que se comprometem, como cristãos, no âmbito
cultural e sociopolítico».[231]
202. «A principal contribuição para a pastoral familiar é oferecida pela
paróquia, que é uma família de famílias, onde se harmonizam os contributos das
pequenas comunidades, movimentos e associações eclesiais».[232] A
par duma pastoral especificamente voltada para as famílias, há necessidade duma
«formação mais adequada dos presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas,
catequistas e restantes agentes pastorais».[233] Nas
respostas às consultações promovidas em todo o mundo, ressaltou-se que os
ministros ordenados carecem, habitualmente, de formação adequada para tratar
dos complexos problemas atuais das famílias; para isso, pode ser útil também a
experiência da longa tradição oriental dos sacerdotes casados.
203. Os seminaristas deveriam ter acesso a uma formação interdisciplinar
mais ampla sobre namoro e matrimónio, não se limitando à doutrina. Além disso,
a formação nem sempre lhes permite desenvolver o seu mundo psicoafectivo.
Alguns carregam, na sua vida, a experiência da sua própria família ferida, com
a ausência de pais e instabilidade emocional. É preciso garantir um
amadurecimento, durante a formação, para que os futuros ministros possuam o
equilíbrio psíquico que a sua missão lhes exige. Os laços familiares são fundamentais
para fortificar a auto-estima sadia dos seminaristas. Por isso, é importante
que as famílias acompanhem todo o processo do Seminário e do sacerdócio, pois
ajudam a revigorá-lo de forma realista. Neste sentido, é salutar a combinação
de tempos de vida no Seminário com outros de vida em paróquias, que permitam
tomar maior contacto com a realidade concreta das famílias. De facto, ao longo
da sua vida pastoral, o sacerdote encontra-se sobretudo com famílias. «A
presença dos leigos e das famílias, particularmente a presença feminina, na
formação sacerdotal, favorece o apreço pela variedade e complementaridade das
diferentes vocações na Igreja».[234]
204. As respostas às consultações exprimem, com insistência, também a
necessidade de formar agentes leigos de pastoral familiar, com a ajuda de
psicopedagogos, médicos de família, médicos de comunidade, assistentes sociais,
advogados de menores e família, predispondo-os para receber as contribuições da
psicologia, sociologia, sexologia e até aconselhamento. Os profissionais,
particularmente aqueles que têm experiência de acompanhamento, ajudam a
encarnar as propostas pastorais nas situações reais e nas preocupações
concretas das famílias. «Os itinerários e cursos de formação destinados
especificamente aos agentes pastorais poderão torná-los idóneos a inserir o
próprio caminho de preparação para o matrimónio na dinâmica mais ampla da vida
eclesial».[235] Uma
boa preparação pastoral é importante, «sobretudo tendo em vista as particulares
situações de emergência decorrentes dos casos de violência doméstica e abuso
sexual».[236] Tudo
isto em nada diminui, antes integra, o valor fundamental da direcção
espiritual, dos recursos espirituais inestimáveis da Igreja e da Reconciliação
sacramental.
Guiar os noivos no caminho de preparação para o matrimónio
205. Os Padres sinodais afirmaram, de várias maneiras, que é preciso
ajudar os jovens a descobrir o valor e a riqueza do matrimónio.[237] Devem
poder captar o fascínio duma união plena que eleva e aperfeiçoa a dimensão
social da vida, confere à sexualidade o seu sentido maior, ao mesmo tempo que
promove o bem dos filhos e lhes proporciona o melhor contexto para o seu
amadurecimento e educação.
206. «A complexa realidade social e os desafios, que a família é chamada
a enfrentar actualmente, exigem um empenhamento maior de toda a comunidade
cristã na preparação dos noivos para o matrimónio. É necessário lembrara
importância das virtudes. Dentre elas, resulta ser condição preciosa para o
crescimento genuíno do amor interpessoal a castidade. A respeito desta
necessidade, os Padres sinodais foram concordes em sublinhara exigência dum
maior envolvimento de toda a comunidade, privilegiando o testemunho das
próprias famílias, e a exigência ainda duma radicação da preparação para o
matrimónio no caminho da iniciação cristã, sublinhando o nexo do matrimónio com
o baptismo e os outros sacramentos. Da mesma forma, evidenciou-se a necessidade
de programas específicos de preparação próxima para o matrimónio que sejam
verdadeira experiência de participação na vida eclesial e aprofundemos vários
aspectos da vida familiar».[238]
207. Convido as comunidades cristãs a reconhecerem que é um bem para
elas mesmas acompanhar o caminho de amor dos noivos. Como justamente disseram
os bispos da Itália, aqueles que se casam são, para as comunidades cristãs, «um
recurso precioso, porque, esforçando-se sinceramente por crescer no amor e no
dom recíproco, podem contribuir para renovar o próprio tecido de todo o corpo
eclesial: a forma particular de amizade que vivem pode tornar-se contagiosa,
fazendo crescer na amizade e na fraternidade a comunidade cristã de que fazem
parte».[239] Há
várias maneiras legítimas de organizar a preparação próxima para o matrimónio e
cada Igreja local discernirá a que for melhor, procurando uma formação adequada
que, ao mesmo tempo, não afaste os jovens do sacramento. Não se trata de lhes
ministrar o Catecismo inteiro nem de os saturar com demasiados temas, sendo
válido também aqui que «não é o muito saber que enche e satisfaz a alma, mas o
sentir e saborear interiormente as coisas».[240] Interessa
mais a qualidade do que a quantidade, devendo-se dar prioridade – juntamente
com um renovado anúncio do querigma – àqueles conteúdos que, comunicados de
forma atraente e cordial, os ajudem a comprometer-se num percurso da vida toda
«com ânimo grande e liberalidade».[241] Trata-se
duma espécie de «iniciação» ao sacramento do matrimónio, que lhes forneça os
elementos necessários para poderem recebê-lo com as melhores disposições e
iniciar com uma certa solidez a vida familiar.
208. Além disso, convém encontrar os modos – através das famílias
missionárias, das próprias famílias dos noivos e de vários recursos pastorais –
para oferecer uma preparação remota que faça amadurecer o amor deles com um
acompanhamento rico de proximidade e testemunho. Habitualmente, são muito úteis
os grupos de noivos e a oferta de palestras opcionais sobre uma variedade de
temas que realmente interessam aos jovens. Entretanto são indispensáveis alguns
momentos personalizados, dado que o objectivo principal é ajudar cada um a
aprender a amar esta pessoa concreta com quem pretende partilhar a vida
inteira. Aprender a amar alguém não é algo que se improvisa, nem pode ser o
objectivo dum breve curso antes da celebração do matrimónio. Na realidade, cada
pessoa prepara-se para o matrimónio, desde o seu nascimento. Tudo o que a
família lhe deu, deveria permitir-lhe aprender da própria história e torná-la
capaz dum compromisso pleno e definitivo. Provavelmente os que chegam melhor
preparados ao casamento são aqueles que aprenderam dos seus próprios pais o que
é um matrimónio cristão, onde se escolheram um ao outro sem condições e
continuam a renovar esta decisão. Neste sentido todas as actividades pastorais,
que tendem a ajudar os cônjuges a crescer no amor e a viver o Evangelho na
família, são uma ajuda inestimável a fim de que os seus filhos se preparem para
a sua futura vida matrimonial. Também não devemos esquecer os valiosos recursos
da pastoral popular. Só para dar um exemplo simples, lembro o Dia de São
Valentim, que, em alguns países, é melhor aproveitado pelos comerciantes do que
pela criatividade dos pastores.
209. A preparação dos que já formalizaram o noivado, quando a comunidade
paroquial consegue acompanhá-los com bom período de antecipação, deve dar-lhes
também a possibilidade de individuar incompatibilidades e riscos. Assim é
possível chegarem a dar-se conta de que não é razoável apostar naquela relação,
para não se expor a um previsível fracasso que terá consequências muito
dolorosas. O problema é que o deslumbramento inicial leva a procurar esconder
ou relativizar muitas coisas, evitam-se as divergências, limitando-se assim a
adiar as dificuldades para depois. Os noivos deveriam ser incentivados e
ajudados a poderem expressar o que cada um espera dum eventual matrimónio, a
sua maneira de entender o que é o amor e o compromisso, aquilo que se deseja do
outro, o tipo de vida em comum que se quer projectar. Estes diálogos podem
ajudar a ver que, na realidade, os pontos de contacto são escassos e que a mera
atracção mútua não será suficiente para sustentar a união. Não há nada de mais
volúvel, precário e imprevisível que o desejo, e nunca se deve encorajar uma
decisão de contrair matrimónio se não se aprofundaram outras motivações que
confiram a este pacto reais possibilidades de estabilidade.
210. No caso de se reconhecer com clareza os pontos fracos do outro, é
preciso que exista uma efectiva confiança na possibilidade de ajudá-lo a
desenvolver o melhor da sua personalidade para contrabalançar o peso das suas
fragilidades, com um decidido interesse em promovê-lo como ser humano. Isto
implica aceitar com vontade firme a possibilidade de enfrentar algumas
renúncias, momentos difíceis e situações de conflito, e a sólida decisão de
preparar-se para isso. Deve ser possível detectar os sinais de perigo que
poderá apresentar a relação, para se encontrar, antes do matrimónio, os meios
que permitam enfrentá-los com bom êxito. Infelizmente, muitos chegam às núpcias
sem se conhecer. Limitaram-se a divertir-se juntos, a fazer experiências
juntos, mas não enfrentaram o desafio de se manifestar a si mesmos e apreender
quem é realmente o outro.
211. Tanto a preparação próxima como o acompanhamento mais prolongado
devem procurar que os noivos não considerem o matrimónio como o fim do caminho,
mas o assumam como uma vocação que os lança para diante, com a decisão firme e
realista de atravessarem juntos todas as provações e momentos difíceis. Tanto a
pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma
pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer
o amor quer a superar os momentos duros. Estas contribuições não são apenas
convicções doutrinais, nem se podem reduzir aos preciosos recursos espirituais
que a Igreja sempre oferece, mas devem ser também percursos práticos, conselhos
bem encarnados, estratégias tomadas da experiência, orientações psicológicas.
Tudo isto cria uma pedagogia do amor, que não pode ignorar a sensibilidade
actual dos jovens, para conseguir mobilizá-los interiormente. Ao mesmo tempo,
na preparação dos noivos, deve ser possível indicar-lhes lugares e pessoas,
consultórios ou famílias prontas a ajudar, aonde poderão dirigir-se em busca de
ajuda se surgirem dificuldades. Mas nunca se deve esquecer de lhes propor a
Reconciliação sacramental, que permite colocar os pecados e os erros da vida
passada e da própria relação sob o influxo do perdão misericordioso de Deus e
da sua força sanadora.
A preparação da celebração
212. A preparação próxima do matrimónio tende a concentrar-se nos
convites, na roupa, na festa com os seus inumeráveis detalhes que consomem
tanto os recursos económicos como as energias e a alegria. Os noivos chegam
desfalecidos e exaustos ao casamento, em vez de dedicarem o melhor das suas
forças a preparar-se como casal para o grande passo que, juntos, vão dar. Esta
mesma mentalidade subjaz também à decisão dalgumas uniões de facto que nunca
mais chegam ao matrimónio, porque pensam nas elevadas despesas da festa, em vez
de darem prioridade ao amor mútuo e à sua formalização diante dos outros.
Queridos noivos, tende a coragem de ser diferentes, não vos deixeis devorar
pela sociedade do consumo e da aparência. O que importa é o amor que vos une,
fortalecido e santificado pela graça. Vós sois capazes de optar por uma festa
austera e simples, para colocar o amor acima de tudo. Os agentes pastorais e
toda a comunidade podem ajudar para que esta prioridade se torne a norma e não
a excepção.
213. Na preparação mais imediata, é importante esclarecer os noivos para
viverem com grande profundidade a celebração litúrgica, ajudando-os a
compreender e viver o significado de cada gesto. Lembremo-nos de que um
compromisso tão grande como este expresso no consentimento matrimonial e a
união dos corpos que consuma o matrimónio, quando se trata de dois baptizados,
só podem ser interpretados como sinais do amor do Filho de Deus feito carne e
unido com a sua Igreja em aliança de amor. Nos baptizados, as palavras e os
gestos transformam-se numa linguagem que manifesta a fé. O corpo, com os
significados que Deus lhe quis infundir ao criá-lo, «transforma-se na linguagem
dos ministros do sacramento, conscientes de que, no pacto conjugal, se
manifesta e realiza o mistério».[242]
214. Às vezes, os noivos não percebem o peso teológico e espiritual do
consentimento, que ilumina o significado de todos os gestos sucessivos. É
necessário salientar que aquelas palavras não podem ser reduzidas ao presente;
implicam uma totalidade que inclui o futuro: «até que a morte vos separe». O
sentido do consentimento mostra que «liberdade e fidelidade não se opõem uma à
outra, aliás apoiam-se reciprocamente quer nas relações interpessoais quer nas
sociais. De facto, pensemos nos danos que produzem, na civilização da
comunicação global, o aumento de promessas não mantidas (...). A honra à
palavra dada, a fidelidade à promessa não se podem comprar nem vender. Não
podem ser impostas com a força, nem guardadas sem sacrifício».[243]
215. Os bispos do Quénia fizeram notar que «os futuros esposos, muito
concentrados com o dia da boda, esquecem-se de que estão a preparar-se para um
compromisso que dura a vida inteira».[244] Temos
de ajudá-los a darem-se conta de que o sacramento não é apenas um momento que
depois passa a fazer parte do passado e das recordações, mas exerce a sua
influência sobre toda a vida matrimonial, de maneira permanente.[245] O
significado procriador da sexualidade, a linguagem do corpo e os gestos de amor
vividos na história dum casal de esposos transformam-se numa «continuidade
ininterrupta da linguagem litúrgica» e «a vida conjugal torna-se de algum modo
liturgia».[246]
216. Também se pode meditar com as leituras bíblicas e enriquecer a
compreensão do significado das alianças que trocam entre si, ou doutros sinais
que fazem parte do rito. Mas não seria bom chegarem ao matrimónio sem ter
rezado juntos, um pelo outro, pedindo ajuda a Deus para serem fiéis e
generosos, perguntando juntos a Deus que espera deles, e inclusive consagrando
o seu amor diante duma imagem de Maria. Quem os acompanha na preparação do
matrimónio deveria orientá-los para que saibam viver estes momentos de oração,
que lhes podem fazer muito bem. «A liturgia nupcial é um evento único, que se
vive no contexto familiar e social duma festa. Jesus começou os seus milagres
no banquete das bodas de Caná: o vinho bom do milagre do Senhor, que alegra o
nascimento duma nova família, é o vinho novo da Aliança de Cristo com os homens
e mulheres de cada tempo. (...) Frequentemente, o celebrante tem a oportunidade
de se dirigir a uma assembleia formada por pessoas que participam pouco na vida
eclesial ou pertencem a outra confissão cristã ou comunidade religiosa.
Trata-se, pois, duma preciosa ocasião para anunciar o Evangelho de Cristo».[247]
Acompanhamento nos primeiros anos da vida matrimonial
217. Temos de reconhecer como um grande valor que se compreenda que o
matrimónio é uma questão de amor: só se podem casar aqueles que se escolhem
livremente e se amam. Apesar disso, se o amor se reduzir a mera atracção ou a
uma vaga afectividade, isto faz com que os cônjuges sofram duma extraordinária
fragilidade quando a afectividade entra em crise ou a atracção física diminui.
Uma vez que estas confusões são frequentes, torna-se indispensável o
acompanhamento dos esposos nos primeiros anos de vida matrimonial, para
enriquecer e aprofundar a decisão consciente e livre de se pertencerem e amarem
até ao fim. Muitas vezes o tempo de noivado não é suficiente, a decisão de
casar-se apressa-se por várias razões e, como se não bastasse, atrasou a
maturação dos jovens. Assim os recém-casados têm de completar aquele percurso
que deveria ter sido feito durante o noivado.
218. Por outro lado, quero insistir que um desafio da pastoral familiar
é ajudar a descobrir que o matrimónio não se pode entender como algo acabado. A
união é real, é irrevogável e foi confirmada e consagrada pelo sacramento do
matrimónio; mas, ao unir-se, os esposos tornam-se protagonistas, senhores da
sua própria história e criadores dum projecto que deve ser levado para a frente
conjuntamente. O olhar volta-se para o futuro, que é preciso construir
dia-a-dia com a graça de Deus e, por isso mesmo, não se pretende do cônjuge que
seja perfeito. É preciso pôr de lado as ilusões e aceitá-lo como é: inacabado,
chamado a crescer, em caminho. Quando o olhar sobre o cônjuge é constantemente
crítico, isto indica que o matrimónio não foi assumido também como um projecto
a construir juntos, com paciência, compreensão, tolerância e generosidade. Isto
faz com que o amor seja substituído pouco a pouco por um olhar inquisidor e
implacável, pelo controle dos méritos e direitos de cada um, pelas reclamações,
a competição e a autodefesa. Deste modo tornam-se incapazes de se apoiarem um
ao outro para o amadurecimento de ambos e para o crescimento da união. Aos
novos cônjuges, é necessário apresentar isto com clareza realista desde o
início, de modo que tomem consciência de que estão apenas a começar. O «sim»
que deram um ao outro é o início dum itinerário, cujo objectivo se propõe
superar as circunstâncias que surgirem e os obstáculos que se interpuserem. A
bênção recebida é uma graça e um impulso para este caminho sempre aberto.
Habitualmente ajuda sentar-se a dialogar para elaborar o seu projecto concreto
com os seus objectivos, meios, detalhes.
219. Lembro-me dum refrão que dizia que a água estagnada corrompe-se,
estraga-se. O mesmo acontece com a vida do amor nos primeiros anos do
matrimónio quando fica estagnada, cessa de mover-se, perde aquela inquietude
sadia que a faz avançar. A dança conduzida com aquele amor jovem, a dança com
aqueles olhos iluminados pela esperança, não deve parar. No noivado e nos
primeiros anos de matrimónio, é a esperança que tem em si a força do fermento,
que faz olhar para além das contradições, conflitos, contingências, que sempre
faz ver mais além; é ela que põe em movimento a ânsia de se manter num caminho
de crescimento. A mesma esperança convida-nos a viver em cheio o presente,
colocando o coração na vida familiar, porque a melhor forma de preparar e
consolidar o futuro é viver bem o presente.
220. O caminho implica passar por diferentes etapas, que convidam a
doar-se com generosidade: do impacto inicial caracterizado por uma atracção
decididamente sensível, passa-se à necessidade do outro sentido como parte da
vida própria. Daqui passa-se ao gosto da pertença mútua, seguido pela
compreensão da vida inteira como um projecto de ambos, pela capacidade de
colocar a felicidade do outro acima das necessidades próprias, e pela alegria
de ver o próprio matrimónio como um bem para a sociedade. O amadurecimento do
amor implica também aprender a «negociar». Não se trata duma atitude
interesseira nem dum jogo de tipo comercial, mas, em última análise, dum
exercício do amor recíproco, já que esta negociação é um entrelaçado de
recíprocas ofertas e renúncias para o bem da família. Em cada nova etapa da
vida matrimonial, é preciso sentar-se e negociar novamente os acordos, de modo
que não haja vencedores nem vencidos, mas ganhem ambos. No lar, as decisões não
se tomam unilateralmente, e ambos compartilham a responsabilidade pela família;
mas cada lar é único e cada síntese conjugal é diferente.
221. Uma das causas que leva a rupturas matrimoniais é ter expectativas
demasiado altas sobre a vida conjugal. Quando se descobre a realidade mais
limitada e problemática do que se sonhara, a solução não é pensar imediata e
irresponsavelmente na separação, mas assumir o matrimónio como um caminho de
amadurecimento, onde cada um dos cônjuges é um instrumento de Deus para fazer
crescer o outro. É possível a mudança, o crescimento, o desenvolvimento das
potencialidades boas que cada um traz dentro de si. Cada matrimónio é uma
«história de salvação», o que supõe partir duma fragilidade que, graças ao dom
de Deus e a uma resposta criativa e generosa, pouco a pouco vai dando lugar a
uma realidade cada vez mais sólida e preciosa. Talvez a maior missão dum homem
e duma mulher no amor seja esta: a de se tornarem, um ao outro, mais homem e
mais mulher. Fazer crescer é ajudar o outro a moldar-se na sua própria
identidade. Por isso o amor é artesanal. Quando se lê a passagem da Bíblia
sobre a criação do homem e da mulher, primeiro vê-se Deus que plasma o homem
(cf. Gn 2, 7), depois dá-Se conta de que falta alguma coisa
essencial e plasma a mulher, e então vê a surpresa do homem: «Ah! Agora sim!
Esta sim!» E, em seguida, quase nos parece ouvir aquele estupendo diálogo no
qual o homem e a mulher fazem a mútua descoberta. Com efeito, mesmo nos
momentos difíceis, o outro volta a surpreender e abrem-se novas portas para se
reencontrar, como se fosse a primeira vez; e, em cada nova etapa, tornam a
«plasmar-se» um ao outro. O amor faz com que um espere pelo outro, exercitando
aquela paciência própria de artesão, que herdou de Deus.
222. O acompanhamento deve encorajar os esposos a serem generosos na
comunicação da vida. «De acordo com o carácter pessoal e humanamente completo
do amor conjugal, o justo caminho para o planeamento familiar pressupõe um
diálogo consensual entre os esposos, o respeito dos tempos e a consideração da
dignidade de ambos os membros do casal. Neste sentido, é preciso redescobrir a
Encíclica Humanae vitae (cf. nn. 10-14) e a
Exortação apostólica Familiaris consortio (cf. nn. 14;
28-35) para se reavivar a disponibilidade a procriar, contrastando uma
mentalidade frequentemente hostil à vida. (...) A opção da paternidade
responsável pressupõe a formação da consciência que é “o centro mais secreto e
o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir
na intimidade do seu ser” (Gaudium et spes, 16). Quanto mais procurarem
os esposos ouvir, na sua consciência, a Deus e os seus mandamentos (cf. Rm 2,
15) e se fizerem acompanhar espiritualmente, tanto mais a sua decisão será
intimamente livre de um arbítrio subjectivo e da acomodação às modas de
comportamento no seu ambiente».[248] Continua
a ser válido o que ficou dito, com clareza, no Concílio Vaticano II: os
cônjuges, «de comum acordo e com esforço comum, formarão rectamente a própria
consciência, tendo em conta o seu bem próprio e o dos filhos já nascidos ou que
prevêem virão a nascer, sabendo ver as condições de tempo e da própria situação
e tendo, finalmente, em consideração o bem da comunidade familiar, da sociedade
temporal e da própria Igreja. São os próprios esposos que, em última instância,
devem diante de Deus tomar esta decisão».[249] Por
outro lado, «deve-se promover o uso dos métodos baseados nos “ritmos naturais
da fecundidade” (Humanae vitae, 11). Ponha-se em evidência
também que “estes métodos respeitam o corpo dos esposos, estimulam a ternura
entre eles e favorecem a educação duma liberdade autêntica” (Catecismo da Igreja Católica, 2370),
insistindo sempre que os filhos são um dom maravilhoso de Deus, uma alegria
para os pais e para a Igreja. Através deles, o Senhor renova o mundo».[250]
Alguns recursos
223. Os Padres sinodais afirmaram que «os primeiros anos de matrimónio
são um período vital e delicado, durante o qual os cônjuges crescem na
consciência dos desafios e do significado do matrimónio. Daí a necessidade dum
acompanhamento pastoral que continue depois da celebração do sacramento (cf. Familiaris consortio, parte III). Nesta
pastoral, tem grande importância a presença de casais de esposos com
experiência. A paróquia é considerada como o lugar onde casais especializados
podem colocar à disposição dos casais mais jovens a sua ajuda, com o eventual
apoio de associações, movimentos eclesiais e novas comunidades. Deve-se
encorajar os esposos para uma atitude fundamental de acolhimento do grande dom
dos filhos. É preciso sublinhar a importância da espiritualidade familiar, da
oração e da participação na Eucaristia dominical, e animar os cônjuges a
reunirem-se regularmente para promoverem o crescimento da vida espiritual e a
solidariedade nas exigências concretas da vida. Liturgias, práticas devocionais
e Eucaristias celebradas para as famílias, sobretudo no aniversário de
matrimónio, foram citadas como vitais para favorecer a evangelização através da
família».[251]
224. Este caminho é uma questão de tempo. O amor precisa de tempo
disponível e gratuito, colocando outras coisas em segundo lugar. Faz falta
tempo para dialogar, abraçar-se sem pressa, partilhar projectos, escutar-se,
olhar-se nos olhos, apreciar-se, fortalecer a relação. Umas vezes, o problema é
o ritmo frenético da sociedade, ou os horários impostos pelos compromissos
laborais. Outras vezes, o problema é que o tempo transcorrido em conjunto não
tem qualidade; limitam-se a partilhar um espaço físico, mas sem prestar atenção
um ao outro. Os agentes pastorais e os grupos de famílias deveriam ajudar os
casais jovens ou frágeis a aprenderem a encontrar-se nestes momentos, a parar
um diante do outro, e inclusive a partilhar momentos de silêncio que os
obriguem a sentir a presença do cônjuge.
225. Os esposos que têm uma boa experiência de «treino» nesta linha,
podem oferecer os instrumentos práticos que lhes foram úteis: a programação dos
momentos para estar juntos sem nada exigir, os tempos de recreação com os
filhos, as várias maneiras de celebrar coisas importantes, os espaços de
espiritualidade partilhada. Mas podem também ensinar recursos que ajudam a
encher de conteúdo e sentido tais momentos, para se aprender a comunicar
melhor. Isto é da máxima importância quando se apagou a novidade do noivado.
Com efeito, quando não se sabe que fazer com o tempo partilhado, um ou outro
dos cônjuges acabará por se refugiar na tecnologia, inventará outros
compromissos, buscará outros braços, ou escapará duma intimidade incómoda.
226. Aos casais jovens, deve-se animar também a criar os seus próprios
hábitos, que proporcionem uma salutar sensação de estabilidade e protecção e
que se constroem com uma série de rituais diários compartilhados. É bom dar-se
sempre um beijo pela manhã, benzer-se todas as noites, esperar pelo outro e
recebê-lo à chegada, ter alguma saída juntos, compartilhar as tarefas
domésticas. Ao mesmo tempo, porém, é bom vencer a rotina com a festa, não
perder a capacidade de celebrar em família, alegrar-se e festejar as
experiências belas. Precisam de compartilhar a surpresa pelos dons de Deus e
alimentar, juntos, o entusiasmo pela vida. Quando se sabe celebrar, esta
capacidade renova a energia do amor, liberta-o da monotonia e enche de cor e
esperança os hábitos diários.
227. Nós, pastores, devemos animar as famílias a crescerem na fé. Para
isso, é bom incentivar a confissão frequente, a direcção espiritual, a
participação em retiros. Mas há que convidar também a criar espaços semanais de
oração familiar, porque «a família que reza unida permanece unida». Entretanto,
quando visitamos os lares, devemos convidar todos os membros da família para um
momento de oração, a fim de rezar uns pelos outros e entregar a família nas mãos
do Senhor. Ao mesmo tempo, convém incentivar cada um dos cônjuges a reservar
momentos de oração a sós diante de Deus, porque cada qual tem as suas cruzes
secretas. Por que não contar a Deus o que turba o coração ou pedir-Lhe a força
para curar as próprias feridas e pedir as luzes necessárias para poder cumprir
o próprio compromisso? Os Padres sinodais salientaram também que «a Palavra de
Deus é fonte de vida e espiritualidade para a família. Toda a pastoral familiar
deverá deixar-se moldar interiormente e formar os membros da igreja doméstica,
através da leitura orante e eclesial da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus é
não só uma boa nova para a vida privada das pessoas, mas também um critério de
juízo e uma luz para o discernimento dos vários desafios que têm de enfrentar
os cônjuges e as famílias».[252]
228. Pode acontecer que um dos cônjuges não seja baptizado ou não queira
viver os compromissos da fé. Neste caso, o desejo que o outro tem de viver e
crescer como cristão faz com que a indiferença do cônjuge seja vivida com
amargura. Apesar disso, é possível encontrar alguns valores comuns que se podem
partilhar e cultivar com entusiasmo. Seja como for, amar o cônjuge não crente,
fazê-lo feliz, aliviar os seus sofrimentos e partilhar a vida com ele é um
verdadeiro caminho de santificação. Por outro lado, o amor é um dom de Deus e,
onde se derrama, faz sentir a sua força transformadora, por vezes de maneira
misteriosa, a ponto que «o marido não crente é santificado pela mulher, e a
mulher não crente é santificada pelo marido» (1 Cor 7, 14).
229. As paróquias, os movimentos, as escolas e outras instituições da
Igreja podem desenvolver várias mediações para apoiar e reavivar as famílias.
Por exemplo, através de recursos como reuniões de casais vizinhos ou amigos,
breves retiros para casais, conferências de especialistas sobre problemáticas
muito concretas da vida familiar, centros de aconselhamento conjugal, agentes
missionários preparados para falar com os casais acerca das suas dificuldades e
aspirações, consultas sobre diferentes situações familiares (dependências,
infidelidade, violência familiar), espaços de espiritualidade, escolas de
formação para pais com filhos problemáticos, assembleias familiares. A
secretaria paroquial deveria ter possibilidades de receber com cordialidade e
ocupar-se das urgências familiares, ou encaminhá-las facilmente para quem possa
dar ajuda. Há também um apoio pastoral que se verifica nos grupos de casais,
sejam eles de serviço ou de missão, de oração, de formação ou de mútua ajuda.
Estes grupos proporcionam a ocasião de dar, de viver a abertura da família aos
outros, de partilhar a fé, mas ao mesmo tempo são um meio para fortalecer os
cônjuges e fazê-los crescer.
230. É verdade que muitos casais de esposos desaparecem da comunidade
cristã depois do matrimónio, mas com frequência desperdiçamos algumas ocasiões
em que eles voltam a estar presentes e nas quais poderíamos tornar a
propor-lhes, de forma atraente, o ideal do matrimónio cristão e aproximá-los a
espaços de acompanhamento. Refiro-me, por exemplo, ao baptismo dum filho, à
Primeira Comunhão, ou quando participam num funeral ou no casamento dum parente
ou amigo. Quase todos os casais voltam a aparecer nestas ocasiões, que se
poderiam aproveitar melhor. Outro caminho de abordagem é a bênção das casas ou
a visita duma imagem da Virgem, que dão oportunidade para desenvolver um
diálogo pastoral sobre a situação da família. Pode ser útil também confiar a
casais mais maduros a tarefa de acompanhar casais mais recentes da sua própria
vizinhança, a fim de os visitar, acompanhar nos seus inícios e propor-lhes um
percurso de crescimento. Com o ritmo da vida actual, a maioria dos casais não
estará disposta a reuniões frequentes, mas não podemos reduzir-nos a uma
pastoral de pequenas elites. Hoje, a pastoral familiar deve ser
fundamentalmente missionária, em saída, por aproximação, em vez de
se reduzir a ser uma fábrica de cursos a que poucos assistem.
Iluminar crises, angústias e dificuldades
231. Deixo aqui uma palavra àqueles que, no amor, já envelheceram o
vinho novo do noivado. Quando o vinho envelhece com esta experiência do
caminho, então aparece, floresce em toda a sua plenitude a fidelidade dos
momentos insignificantes da vida. É a fidelidade da espera e da paciência. Esta
fidelidade, cheia de sacrifícios e alegrias, de certo modo vai florescendo na
idade em que tudo fica «sazonado» e os olhos brilham com a contemplação dos
filhos de seus filhos. Foi assim desde o início, mas agora tornou-se
consciente, assente, amadurecido na surpresa quotidiana da redescoberta dia
após dia, ano após ano. Como ensinava São João da Cruz, «os velhos amantes são
os já treinados e testados». Eles «já não têm aqueles fervores sensíveis nem
aquelas ebulições e chamas externas de ardor, mas saboreiam a suavidade do
vinho de amor bem sedimentado na sua substância (...) assente dentro da alma».[253] Isto
supõe que foram capazes de superar, juntos, as crises e os momentos de
angústia, sem fugir aos desafios nem esconder as dificuldades.
O desafio das crises
232. A história duma família está marcada por crises de todo o género,
que são parte também da sua dramática beleza. É preciso ajudar a descobrir que
uma crise superada não leva a uma relação menos intensa, mas a melhorar,
sedimentar e maturar o vinho da união. Não se vive juntos para ser cada vez menos
feliz, mas para aprender a ser feliz de maneira nova, a partir das
possibilidades que abre uma nova etapa. Cada crise implica uma aprendizagem,
que permite incrementar a intensidade da vida comum ou, pelo menos, encontrar
um novo sentido para a experiência matrimonial. É preciso não se resignar de
modo algum a uma curva descendente, a uma inevitável deterioração, a uma
mediocridade que se tem de suportar. Pelo contrário, quando se assume o
matrimónio como uma tarefa que implica também superar obstáculos, cada crise é
sentida como uma ocasião para chegar a beber, juntos, o vinho melhor. É bom
acompanhar os cônjuges, para que sejam capazes de aceitar as crises que lhes
sobrevêm, aceitar o desafio e atribuir-lhes um lugar na vida familiar. Os
casais experientes e formados devem estar dispostos a acompanhar outros nesta
descoberta, para que as crises não os assustem nem os levem a tomar decisões
precipitadas. Cada crise esconde uma boa notícia, que é preciso saber escutar,
afinando os ouvidos do coração.
233. Perante o desafio duma crise, a reacção imediata é resistir, pôr-se
à defesa por sentir que escapa ao próprio controle, por mostrar a insuficiência
da própria maneira de viver, e isto incomoda. Então usa-se o método de negar os
problemas, escondê-los, relativizar a sua importância, apostar apenas em que o
tempo passe. Mas isto adia a solução e leva a gastar muitas energias num
ocultamento inútil que complicará ainda mais as coisas. Os vínculos vão-se
deteriorando e consolida-se um isolamento que danifica a intimidade. Numa crise
não assumida, o que mais se prejudica é a comunicação. Assim, pouco a pouco,
aquela que era «a pessoa que amo» passa a ser «quem me acompanha sempre na
vida», a seguir apenas «o pai ou a mãe dos meus filhos», e por fim um estranho.
234. Para se enfrentar uma crise, é necessário estar presente. É
difícil, porque às vezes as pessoas isolam-se para não mostrar o que sentem,
trancam-se num silêncio mesquinho e enganador. Nestes momentos, é necessário
criar espaços para comunicar de coração a coração. O problema é que se torna
ainda mais difícil comunicar num momento de crise, se nunca se aprendeu a
fazê-lo. É uma verdadeira arte que se aprende em tempos calmos, para se pôr em
prática nos tempos borrascosos. É preciso ajudar a descobrir as causas mais
recônditas nos corações dos esposos e enfrentá-las como um parto que passará e
deixará um novo tesouro. Mas, nas respostas às consultações realizadas,
assinalava-se que, em situações difíceis ou críticas, a maioria não recorre ao
acompanhamento pastoral, porque não o sente compreensivo, próximo, realista,
encarnado. Por isso, procuremos agora debruçar-nos sobre as crises conjugais
com um olhar que não ignore a sua carga de sofrimento e angústia.
235. Há crises comuns que costumam verificar-se em todos os matrimónios,
como a crise ao início quando é preciso aprender a conciliar as diferenças e a
desligar-se dos pais; ou a crise da chegada do filho, com os seus novos
desafios emotivos; a crise de educar uma criança, que altera os hábitos do
casal; a crise da adolescência do filho, que exige muitas energias,
desestabiliza os pais e às vezes contrapõem-nos entre si; a crise do «ninho
vazio», que obriga o casal a fixar de novo o olhar um no outro; a crise causada
pela velhice dos pais dos cônjuges, que requer mais presença, solicitude e
decisões difíceis. São situações exigentes, que provocam temores, sentimentos
de culpa, depressões ou cansaços que podem afectar gravemente a união.
236. A estas crises, vêm juntar-se as crises pessoais com incidência no
casal, relacionadas com dificuldades económicas, laborais, afectivas, sociais,
espirituais. E acrescentam-se circunstâncias inesperadas, que podem alterar a
vida familiar e exigir um caminho de perdão e reconciliação. No próprio momento
em que procura dar o passo do perdão, cada um deve questionar-se, com serena
humildade, se não criou as condições para expor o outro a cometer certos erros.
Algumas famílias sucumbem, quando os cônjuges se culpam mutuamente, mas «a
experiência mostra que, com uma ajuda adequada e com a acção de reconciliação
da graça, uma grande percentagem de crises matrimoniais é superada de forma
satisfatória. Saber perdoar e sentir-se perdoado é uma experiência fundamental
na vida familiar».[254] «A
fadigosa arte da reconciliação, que requer o apoio da graça, precisa da
generosa colaboração de parentes e amigos, e, eventualmente, até duma ajuda
externa e profissional».[255]
237. Tornou-se frequente que, quando um cônjuge sente que não recebe o
que deseja, ou não se realiza o que sonhava, isso lhe pareça ser suficiente
para pôr termo ao matrimónio. Mas, assim, não haverá matrimónio que dure. Às
vezes, para decidir que tudo acabou, basta uma desilusão, a ausência num
momento em que se precisava do outro, um orgulho ferido ou um temor indefinido.
Há situações próprias da inevitável fragilidade humana, a que se atribui um
peso emotivo demasiado grande. Por exemplo, a sensação de não ser completamente
correspondido, os ciúmes, as diferenças que podem surgir entre os dois, a
atracção suscitada por outras pessoas, os novos interesses que tendem a
apoderar-se do coração, as mudanças físicas do cônjuge e tantas outras coisas
que, mais do que atentados contra o amor, são oportunidades que convidam a
recriá-lo uma vez mais.
238. Nestas circunstâncias, alguns têm a maturidade necessária para
voltar a escolher o outro como companheiro de estrada, para além dos limites da
relação, e aceitam com realismo que não se possam satisfazer todos os sonhos
acalentados. Evitam considerar-se os únicos mártires, apreciam as pequenas ou
limitadas possibilidades que lhes oferece a vida em família e apostam em
fortalecer o vínculo numa construção que exigirá tempo e esforço. No fundo,
reconhecem que cada crise é como um novo «sim» que torna possível o amor
renascer reforçado, transfigurado, amadurecido, iluminado. A partir duma crise,
tem-se a coragem de buscar as raízes profundas do que está a suceder, de voltar
a negociar os acordos fundamentais, de encontrar um novo equilíbrio e de
percorrer juntos uma nova etapa. Com esta atitude de constante abertura,
podem-se enfrentar muitas situações difíceis. Em todo o caso, reconhecendo que
a reconciliação é possível, hoje descobrimos que «se revela particularmente
urgente um ministério dedicado àqueles cuja relação matrimonial se rompeu».[256]
Velhas feridas
239. É compreensível que, nas famílias, haja muitas dificuldades, quando
um dos seus membros não amadureceu a sua maneira de relacionar-se, porque não
curou feridas dalguma etapa da sua vida. A própria infância e a própria
adolescência mal vividas são terreno fértil para crises pessoais que acabam por
afectar o matrimónio. Se todos fossem pessoas que amadureceram normalmente, as
crises seriam menos frequentes e menos dolorosas. A verdade, porém, é que às
vezes as pessoas precisam de realizar aos quarenta anos um amadurecimento
atrasado que deveria ter sido alcançado no fim da adolescência. Às vezes ama-se
com um amor egocêntrico próprio da criança, fixado numa etapa onde a realidade
é distorcida e se vive o capricho de que tudo deva girar à volta do próprio eu.
É um amor insaciável, que grita e chora quando não obtém aquilo que deseja.
Outras vezes ama-se com um amor fixado na fase da adolescência, caracterizado
pelo confronto, a crítica ácida, o hábito de culpar os outros, a lógica do
sentimento e da fantasia, onde os outros devem preencher os nossos vazios ou
apoiar os nossos caprichos.
240. Muitos terminam a sua infância sem nunca se terem sentido amados
incondicionalmente, e isto compromete a sua capacidade de confiar e
entregar-se. Uma relação mal vivida com os seus pais e irmãos, que nunca foi
curada, reaparece e danifica a vida conjugal. Então é preciso fazer um percurso
de libertação, que nunca se enfrentou. Quando a relação entre os cônjuges não
funciona bem, antes de tomar decisões importantes, convém assegurar-se de que
cada um tenha feito este caminho de cura da própria história. Isto exige que se
reconheça a necessidade de ser curado, que se peça com insistência a graça de
perdoar e perdoar-se, que se aceite ajuda, se procurem motivações positivas e
se tente sempre de novo. Cada um deve ser muito sincero consigo mesmo, para
reconhecer que o seu modo de viver o amor tem estas imaturidades. Por mais
evidente que possa parecer que toda a culpa seja do outro, nunca é possível
superar uma crise esperando que apenas o outro mude. É preciso também
questionar-se a si mesmo sobre as coisas que poderia pessoalmente amadurecer ou
curar para favorecer a superação do conflito.
Acompanhar depois das rupturas e dos divórcios
241. Nalguns casos, a consideração da própria dignidade e do bem dos
filhos exige pôr um limite firme às pretensões excessivas do outro, a uma
grande injustiça, à violência ou a uma falta de respeito que se tornou crónica.
É preciso reconhecer que «há casos em que a separação é inevitável. Por vezes,
pode tornar-se até moralmente necessária, quando se trata de defender o cônjuge
mais frágil, ou os filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela
prepotência e a violência, pela humilhação e a exploração, pela alienação e a indiferença».[257] Mas
«deve ser considerado um remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs
todas as tentativas razoáveis».[258]
242. Os Padres disseram que «é indispensável um discernimento particular
para acompanhar pastoralmente os separados, os divorciados, os abandonados.
Tem-se de acolher e valorizar sobretudo a angústia daqueles que sofreram
injustamente a separação, o divórcio ou o abandono, ou então foram obrigados, pelos
maus-tratos do cônjuge, a romper a convivência. Não é fácil o perdão pela
injustiça sofrida, mas constitui um caminho que a graça torna possível. Daí a
necessidade duma pastoral da reconciliação e da mediação, inclusive através de
centros de escuta especializados que se devem estabelecer nas dioceses».[259]Ao
mesmo tempo, «as pessoas divorciadas que não voltaram a casar (que são muitas
vezes testemunhas da fidelidade matrimonial) devem ser encorajadas a encontrar
na Eucaristia o alimento que as sustente no seu estado. A comunidade local e os
pastores devem acompanhar estas pessoas com solicitude, sobretudo quando há
filhos ou é grave a sua situação de pobreza».[260] Um
falimento matrimonial torna-se muito mais traumático e doloroso quando há
pobreza, porque se têm muito menos recursos para reordenar a existência. Uma
pessoa pobre, que perde o ambiente protector da família, fica duplamente
exposta ao abandono e a todo o tipo de riscos para a sua integridade.
243. Quanto às pessoas divorciadas que vivem numa nova união, é
importante fazer-lhes sentir que fazem parte da Igreja, que «não estão
excomungadas» nem são tratadas como tais, porque sempre integram a comunhão
eclesial.[261] Estas
situações «exigem um atento discernimento e um acompanhamento com grande respeito,
evitando qualquer linguagem e atitude que as faça sentir discriminadas e
promovendo a sua participação na vida da comunidade. Cuidar delas não é, para a
comunidade cristã, um enfraquecimento da sua fé e do seu testemunho sobre a
indissolubilidade do matrimónio; antes, ela exprime precisamente neste cuidado
a sua caridade».[262]
244. Além disso, um grande número de Padres «sublinhou a necessidade de
tornar mais acessíveis, ágeis e possivelmente gratuitos de todo os
procedimentos para o reconhecimento dos casos de nulidade».[263] A
lentidão dos processos irrita e cansa as pessoas. Os meus dois documentos
recentes sobre tal matéria[264] levaram
a uma simplificação dos procedimentos para uma eventual declaração de nulidade
matrimonial. Através deles, quis também «evidenciar que o próprio bispo na sua
Igreja, da qual está constituído pastor e chefe, é por isso mesmo juiz no meio
dos fiéis a ele confiados».[265] Por
isso, «a aplicação destes documentos é uma grande responsabilidade para os
Ordinários diocesanos, chamados eles próprios a julgar algumas causas e a
garantir, de todos os modos possíveis, um acesso mais fácil dos fiéis à
justiça. Isto implica a preparação de pessoal suficiente, composto por clérigos
e leigos, que se dedique de modo prioritário a este serviço eclesial. Por
conseguinte, será necessário colocar à disposição das pessoas separadas ou dos
casais em crise um serviço de informação, aconselhamento e mediação, ligado à
pastoral familiar, que possa também acolher as pessoas tendo em vista a
investigação preliminar do processo matrimonial (cf.Mitis Iudex, arts.
2-3)».[266]
245. Os Padres sinodais puseram em evidência também «as consequências da
separação ou do divórcio sobre os filhos, em todo o caso vítimas inocentes da
situação».[267] Acima
de todas as considerações que se queiram fazer, eles são a primeira
preocupação, que não deve ser ofuscada por nenhum outro interesse ou objectivo.
Peço aos pais separados: «Nunca, nunca e nunca tomeis o filho como refém!
Separastes-vos devido a muitas dificuldades e motivos, a vida deu-vos esta
provação, mas os filhos não devem carregar o fardo desta separação; que eles
não sejam usados como reféns contra o outro cônjuge, mas cresçam ouvindo a mãe
falar bem do pai, embora já não estejam juntos, e o pai falar bem da mãe».[268] É
irresponsável arruinar a imagem do pai ou da mãe com o objectivo de monopolizar
o afecto do filho, para se vingar ou defender, porque isso afectará a vida
interior daquela criança e provocará feridas difíceis de curar.
246. A Igreja, embora compreenda as situações conflituosas que devem
atravessar os cônjuges, não pode cessar de ser a voz dos mais frágeis: os
filhos, que sofrem muitas vezes em silêncio. Hoje, «não obstante a nossa
sensibilidade aparentemente evoluída e todas as nossas análises psicológicas
refinadas, pergunto-me se não nos entorpecemos também relativamente às feridas
da alma das crianças. (...) Sentimos nós o peso da montanha que esmaga a alma
duma criança, nas famílias onde se maltrata e magoa, até quebrar o vínculo da
fidelidade conjugal?»[269] Tais
experiências molestas não ajudam estas crianças a amadurecer para serem capazes
de compromissos definitivos. Por isso, as comunidades cristãs não devem deixar
sozinhos os pais divorciados que vivem numa nova união. Pelo contrário, devem
integrá-los e acompanhá-los na sua função educativa. Aliás, «como poderíamos
recomendar a estes pais que façam todo o possível por educar os seus filhos na
vida cristã, dando-lhes o exemplo duma fé convicta e praticada, se os
mantivéssemos à distância da vida da comunidade, como se estivessem
excomungados? Devemos proceder de modo que não se acrescentem outros pesos
àqueles que os filhos, nestas situações, já têm que suportar».[270]Ajudar
a curar as feridas dos pais e sustentá-los espiritualmente é bom também para os
filhos, que precisam do rosto familiar da Igreja que os ampare nesta
experiência traumática. O divórcio é um mal, e é muito preocupante o aumento do
número de divórcios. Por isso, sem dúvida, a nossa tarefa pastoral mais
importante relativamente às famílias é reforçar o amor e ajudar a curar as
feridas, para podermos impedir o avanço deste drama do nosso tempo.
Algumas situações complexas
247. «As questões relacionadas com os matrimónios mistos requerem uma
atenção específica. Os matrimónios entre católicos e outros baptizados
“apresentam, na sua fisionomia particular, numerosos elementos que convém
valorizar e desenvolver quer pelo seu valor intrínseco quer pela ajuda que
podem dar ao movimento ecuménico”. Com tal finalidade, “procure-se (…) uma
colaboração cordial entre o ministro católico e o não católico, desde o momento
da preparação para o matrimónio e para as núpcias” (Familiaris consortio, 78). Quanto à
participação eucarística, recorda-se que “a decisão de admitir ou não a parte
não católica do matrimónio à comunhão eucarística deve ser tomada de acordo com
as normas gerais em vigor na matéria, tanto para os cristãos orientais como
para os outros cristãos, e tendo em conta esta situação particular, isto é, que
recebem o sacramento do matrimónio cristão dois cristãos baptizados. Embora os
esposos de um matrimónio misto tenham em comum os sacramentos do baptismo e do
matrimónio, a partilha da Eucaristia pode apenas ser excepcional e, em todo o
caso, devem-se observar as disposições indicadas” (Pont. Conselho para a
Promoção da Unidade dos Cristãos, Directório para a Aplicação dos
Princípios e das Normas sobre o Ecumenismo, 25 de Março de 1993, 159-160)».[271]
248. «Os matrimónios com disparidade de culto constituem um lugar
privilegiado de diálogo inter-religioso (...). Comportam algumas dificuldades
especiais quer em relação à identidade cristã da família quer quanto à educação
religiosa dos filhos. (...) O número das famílias compostas por uniões
conjugais com disparidade de culto, em aumento nos territórios de missão e
também nos países de longa tradição cristã, requer urgentemente uma atenção
pastoral diferenciada segundo os distintos contextos sociais e culturais.
Nalguns países, onde não há liberdade de religião, o cônjuge cristão é obrigado
a mudar de religião para se poder casar, e não pode celebrar o matrimónio
canónico com disparidade de culto nem baptizar os filhos. Devemos, pois,
reafirmar a necessidade de que a liberdade religiosa seja respeitada em favor
de todos».[272] «É
necessário prestar uma atenção particular às pessoas que se unem em tais
matrimónios, e não só no período anterior ao casamento. Enfrentam desafios
peculiares os casais e as famílias, nos quais um dos cônjuges é católico e o
outro não-crente. Em tais casos, é necessário testemunhar a capacidade que tem
o Evangelho de mergulhar nestas situações para tornar possível a educação dos
filhos na fé cristã».[273]
249. «Apresentam dificuldades particulares as situações que dizem
respeito ao acesso ao baptismo de pessoas que estão numa condição matrimonial
complexa. Trata-se de pessoas que contraíram uma união matrimonial estável, num
tempo em que pelo menos uma delas ainda não conhecia a fé cristã. Os bispos são
chamados a exercitar, nestes casos, um discernimento pastoral cônsono ao bem
espiritual delas».[274]
250. A Igreja conforma o seu comportamento ao do Senhor Jesus que, num
amor sem fronteiras, Se ofereceu por todas as pessoas sem exceção.[275] Com
os Padres sinodais, examinei a situação das famílias que vivem a experiência de
ter no seu seio pessoas com tendência homossexual, experiência não fácil nem
para os pais nem para os filhos. Por isso desejo, antes de mais nada, reafirmar
que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser
respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar
«qualquer sinal de discriminação injusta»[276] e
particularmente toda a forma de agressão e violência. Às famílias, por sua vez,
deve-se assegurar um respeitoso acompanhamento, para que quantos manifestam a
tendência homossexual possam dispor dos auxílios necessários para compreender e
realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida.[277]
251. No decurso dos debates sobre a dignidade e a missão da família, os
Padres sinodais anotaram, quanto aos projetos de equiparação ao matrimónio das
uniões entre pessoas homossexuais, que não existe fundamento algum para
assimilar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões
homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família. É «inaceitável
que as Igrejas locais sofram pressões nesta matéria e que os organismos
internacionais condicionem a ajuda financeira aos países pobres à introdução de
leis que instituam o “matrimónio” entre pessoas do mesmo sexo».[278]
252. As famílias monoparentais têm frequentemente origem a partir de
«mães ou pais biológicos que nunca quiseram integrar-se na vida familiar,
situações de violência em que um dos progenitores teve de fugir com seus
filhos, morte de um dos pais, abandono da família por um dos progenitores e
outras situações. Seja qual for a causa, o progenitor que vive com a criança deve
encontrar apoio e conforto nas outras famílias que formam a comunidade cristã,
bem como nos organismos pastorais paroquiais. Além disso, estas famílias são
muitas vezes afligidas pela gravidade dos problemas económicos, pela incerteza
dum trabalho precário, pela dificuldade de manter os filhos, pela falta duma
casa».[279]
Quando a morte crava o seu aguilhão
253. Às vezes, a vida familiar vê-se desafiada pela morte de um ente
querido. Não podemos deixar de oferecer a luz da fé para acompanhar as famílias
que sofrem em tais momentos.[280] Abandonar
uma família atribulada por uma morte seria uma falta de misericórdia, seria
perder uma oportunidade pastoral, e tal atitude pode fechar-nos as portas para
qualquer eventual acção evangelizadora.
254. Compreendo a angústia de quem perdeu uma pessoa muito amada, um
cônjuge com quem se partilhou tantas coisas. O próprio Jesus Se comoveu e
chorou no velório dum amigo (cf. Jo 11, 33.35). E como não
compreender o lamento de quem perdeu um filho? Com efeito, «é como se o tempo
parasse: abre-se um abismo que engole o passado e também o futuro. (...) E às
vezes chega-se até a dar a culpa a Deus! Quantas pessoas – compreendo-as – se
chateiam com Deus».[281] «A
viuvez é uma experiência particularmente difícil (...). Alguns, quando têm de
viver esta experiência, mostram que sabem fazer convergir as suas energias para
uma dedicação ainda maior aos filhos e netos, encontrando nesta experiência de
amor uma nova missão educativa. (...) Aqueles que já não podem contar com a presença
de familiares a quem se dedicar e de quem receber carinho e proximidade, a
comunidade cristã deve sustentá-los com particular atenção e disponibilidade,
sobretudo se vivem em condições de indigência».[282]
255. Em geral, o luto pelos falecidos pode durar bastante tempo e,
quando um pastor quer acompanhar este percurso, deve adaptar-se às necessidades
de cada uma das suas fases. Todo o percurso é atravessado por interrogativos
sobre as causas da morte, o que poderia ter sido feito, o que uma pessoa vive
nos momentos anteriores à morte... Com um caminho sincero e paciente de oração
e libertação interior, volta a paz. No luto, há momentos em que é preciso
ajudar a descobrir que, embora tenhamos perdido um ente querido, existe ainda
uma missão a cumprir e não nos faz bem querer prolongar a tristeza, como se
isto fosse uma homenagem. A pessoa amada não precisa da nossa tristeza, nem
retém lisonjeiro que arruinemos a nossa vida. E também não é a melhor expressão
de amor lembrá-la e nomeá-la a cada momento, porque significa estar preso a um
passado que já não existe, em vez de amar a pessoa real que agora se encontra
no Além. A sua presença física já não é possível; é verdade que a morte é algo
de poderoso, mas «forte como a morte é o amor» (Ct 8, 6). O amor
possui uma intuição que lhe permite escutar sem sons e ver no invisível. Isto
não é imaginar o ente querido como era, mas poder aceitá-lo transformado, como
é agora. Jesus ressuscitado, quando a sua amiga Maria Madalena quis abraçá-Lo
intensamente, pediu-lhe que não O tocasse (cf.Jo 20, 17) para a
levar a um encontro diferente.
256. Consola-nos saber que não se verifica a destruição total dos que
morrem, e a fé assegura-nos que o Ressuscitado nunca nos abandonará. Podemos,
assim, impedir que a morte «envenene a nossa vida, torne vãos os nossos afectos
e nos faça cair no vazio mais escuro».[283] A
Bíblia fala de um Deus que nos criou por amor, e fez-nos duma maneira tal que a
nossa vida não termina com a morte (cf. Sab 3, 2-3). São Paulo
fala-nos dum encontro com Cristo imediatamente depois da morte: «tenho o desejo
de partir e estar com Cristo» (Flp 1, 23). Com Ele, espera-nos
depois da morte aquilo que Deus preparou para aqueles que O amam (cf. 1Cor 2,
9). De forma muito bela, assim se exprime o prefácio da Missa dos Defuntos: «Se
a certeza da morte nos entristece, conforta-nos a promessa da imortalidade.
Para os que crêem em Vós, Senhor, a vida não acaba, apenas se transforma». Com
efeito, «os nossos entes queridos não desapareceram nas trevas do nada: a
esperança assegura-nos que eles estão nas mãos bondosas e vigorosas de Deus».[284]
257. Uma maneira de comunicarmos com os seres queridos que morreram é
rezar por eles.[285] Diz
a Bíblia que «rezar pelos mortos» é «santo e piedoso» (2Mac 12,
44.45). Rezar por eles «pode não só ajudá-los, mas também tornar mais eficaz a
sua intercessão em nosso favor».[286] O
Apocalipse apresenta os mártires a interceder pelos que sofrem injustiça na
terra (cf. 6, 9-11), solidários com este mundo em caminho. Alguns Santos, antes
de morrer, consolavam os seus entes queridos, prometendo-lhes que estariam
perto ajudando-os. Santa Teresa de Lisieux sentia vontade de continuar, do Céu,
a fazer bem.[287] E
São Domingos afirmava que «seria mais útil, depois de morto (...), mais
poderoso para obter graças».[288] São
laços de amor,[289]porque
«de modo nenhum se interrompe a união dos que ainda caminham sobre a terra com
os irmãos que adormeceram na paz de Cristo; mas (...) é reforçada pela
comunicação dos bens espirituais».[290]
258. Se aceitarmos a morte, podemos preparar-nos para ela. O caminho é
crescer no amor para com aqueles que caminham connosco, até ao dia em que «não
haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor» (Ap 21, 4). Deste
modo preparar-nos-emos também pera reencontrar os nossos entes queridos que morreram.
Assim como Jesus entregou o filho que tinha morrido à sua mãe (cf. Lc 7,
15), de forma semelhante procederá connosco. Não gastemos energias, detendo-nos
anos e anos no passado. Quanto melhor vivermos nesta terra, tanto maior
felicidade poderemos partilhar com os nossos entes queridos no céu. Quanto mais
conseguirmos amadurecer e crescer, tanto mais poderemos levar-lhes coisas belas
para o banquete celeste.
CAPÍTULO VII: REFORÇAR A EDUCAÇÃO DOS
FILHOS
259. Os pais incidem sempre, para bem ou para mal, no desenvolvimento
moral dos seus filhos. Consequentemente, o melhor é aceitarem esta
responsabilidade inevitável e realizarem-na de modo consciente, entusiasta,
razoável e apropriado. Uma vez que esta função educativa das famílias é tão
importante e se tornou muito complexa, quero deter-me de modo especial neste
ponto.
Onde estão os filhos?
260. A família não pode renunciar a ser lugar de apoio, acompanhamento,
guia, embora tenha de reinventar os seus métodos e encontrar novos recursos.
Precisa de considerar a que realidade quer expor os seus filhos. Para isso não
deve deixar de se interrogar sobre quem se ocupa de lhes oferecer diversão e
entretenimento, quem entra nas suas casas através dos écrans, a quem os entrega
para que os guie nos seus tempos livres. Só os momentos que passamos com eles,
falando com simplicidade e carinho das coisas importantes, e as possibilidades
sadias que criamos para ocuparem o seu tempo permitirão evitar uma nociva
invasão. Sempre faz falta vigilância; o abandono nunca é sadio. Os pais devem
orientar e alertar as crianças e os adolescentes para saberem enfrentar
situações onde possa haver risco, por exemplo, de agressões, abuso ou consumo
de droga.
261. A obsessão, porém, não é educativa; e também não é possível ter o
controle de todas as situações onde um filho poderá chegar a encontrar-se. Vale
aqui o princípio de que «o tempo é superior ao espaço»,[291] isto
é, trata-se mais de gerar processos que de dominar espaços. Se um progenitor
está obcecado com saber onde está o seu filho e controlar todos os seus
movimentos, procurará apenas dominar o seu espaço. Mas, desta forma, não o
educará, não o reforçará, não o preparará para enfrentar os desafios. O que
interessa acima de tudo é gerar no filho, com muito amor, processos de
amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de crescimento
integral, de cultivo da autêntica autonomia. Só assim este filho terá em si
mesmo os elementos de que precisa para saber defender-se e agir com
inteligência e cautela em circunstâncias difíceis. Assim, a grande questão não
é onde está fisicamente o filho, com quem está neste momento, mas onde se
encontra em sentido existencial, onde está posicionado do ponto de vista das suas
convicções, dos seus objectivos, dos seus desejos, do seu projecto de vida. Por
isso, eis as perguntas que faço aos pais: «Procuramos compreender “onde” os
filhos verdadeiramente estão no seu caminho? Sabemos onde está realmente a sua
alma? E, sobretudo, queremos sabê-lo?»[292]
262. Se a maturidade fosse apenas o desenvolvimento de algo já contido
no código genético, quase nada poderíamos fazer. Mas não é! A prudência, o
recto juízo e a sensatez não dependem de factores puramente quantitativos de
crescimento, mas de toda uma cadeia de elementos que se sintetizam no íntimo da
pessoa; mais exactamente, no centro da sua liberdade. É inevitável que cada
filho nos surpreenda com os projectos que brotam desta liberdade, que rompa os
nossos esquemas; e é bom que isto aconteça. A educação envolve a tarefa de
promover liberdades responsáveis, que, nas encruzilhadas, saibam optar com
sensatez e inteligência; pessoas que compreendam sem reservas que a sua vida e
a vida da sua comunidade estão nas suas mãos e que esta liberdade é um dom
imenso.
A formação ética dos filhos
263. Os pais necessitam também da escola para assegurar uma instrução de
base aos seus filhos, mas a formação moral deles nunca a podem delegar
totalmente. O desenvolvimento afectivo e ético duma pessoa requer uma
experiência fundamental: crer que os próprios pais são dignos de confiança.
Isto constitui uma responsabilidade educativa: com o carinho e o testemunho,
gerar confiança nos filhos, inspirar-lhes um respeito amoroso. Quando um filho
deixa de sentir que é precioso para seus pais, embora imperfeito, ou deixa de
notar que nutrem uma sincera preocupação por ele, isto cria feridas profundas
que causam muitas dificuldades no seu amadurecimento. Esta ausência, este
abandono afectivo provoca um sofrimento mais profundo do que a eventual
correcção recebida por uma má acção.
264. A tarefa dos pais inclui uma educação da vontade e um
desenvolvimento de hábitos bons e tendências afectivas para o bem. Isto implica
que se apresentem como desejáveis os comportamentos a aprender e as tendências
a fazer maturar. Mas trata-se sempre de um processo que vai da imperfeição para
uma plenitude maior. O desejo de se adaptar à sociedade ou o hábito de
renunciar a uma satisfação imediata para se adequar a uma norma e garantir uma
boa convivência já é, em si mesmo, um valor inicial que cria disposições para
se elevar depois rumo a valores mais altos. A formação moral deveria
realizar-se sempre com métodos activos e com um diálogo educativo que integre a
sensibilidade e a linguagem própria dos filhos. Além disso, esta formação deve
ser realizada de forma indutiva, de modo que o filho possa chegar a descobrir
por si mesmo a importância de determinados valores, princípios e normas, em vez
de lhos impor como verdades indiscutíveis.
265. Para agir bem, não basta «julgar de modo adequado» ou saber com
clareza aquilo que se deve fazer, embora isso seja prioritário. Com efeito,
muitas vezes somos incoerentes com as nossas próprias convicções, mesmo quando
são sólidas. Há ocasiões em que, por mais que a consciência nos dite
determinado juízo moral, têm mais poder outras coisas que nos atraem; isto
acontece, se não conseguirmos que o bem individuado pela mente se radique em
nós como uma profunda inclinação afectiva, como um gosto pelo bem que pese mais
do que outros atractivos e nos faça perceber que aquilo que individuamos como
bem é tal também «para nós» aqui e agora. Uma formação ética válida implica
mostrar à pessoa como é conveniente, para ela mesma, agir bem. Muitas vezes,
hoje, é ineficaz pedir algo que exija esforço e renúncias, sem mostrar
claramente o bem que se poderia alcançar com isso.
266. É necessário maturar hábitos. Os próprios hábitos adquiridos em
criança têm uma função positiva, ajudando a traduzir em comportamentos externos
sadios e estáveis os grandes valores interiorizados. Uma pessoa pode possuir
sentimentos sociáveis e uma boa disposição para com os outros, mas se não foi
habituada durante muito tempo, por insistência dos adultos, a dizer «por
favor», «com licença», «obrigado», a tal boa disposição interior não se traduzirá
facilmente nestas expressões. O fortalecimento da vontade e a repetição de
determinadas acções constroem a conduta moral; mas, sem a repetição consciente,
livre e elogiada de determinados comportamentos bons, nunca se chega a educar
tal conduta. As motivações ou a atracção que sentimos por um determinado valor,
não se tornam uma virtude sem estes actos adequadamente motivados.
267 A liberdade é algo de grandioso, mas podemos perdê-la. A educação
moral é cultivar a liberdade através de propostas, motivações, aplicações
práticas, estímulos, prémios, exemplos, modelos, símbolos, reflexões,
exortações, revisões do modo de agir e diálogos que ajudem as pessoas a
desenvolver aqueles princípios interiores estáveis que movem a praticar
espontaneamente o bem. A virtude é uma convicção que se transformou num
princípio interior e estável do agir. Assim, a vida virtuosa constrói a
liberdade, fortifica-a e educa-a, evitando que a pessoa se torne escrava de
inclinações compulsivas desumanizadoras e anti-sociais. Com efeito, a própria
dignidade humana exige que cada um «proceda segundo a própria consciência e por
livre adesão, ou seja, movido e induzido pessoalmente desde dentro».[293]
O valor da sanção como estímulo
268. De igual modo, é indispensável sensibilizar a criança e o
adolescente para se darem conta de que as más acções têm consequências. É
preciso despertar a capacidade de colocar-se no lugar do outro e sentir pesar
pelo seu sofrimento originado pelo mal que lhe fez. Algumas sanções – aos
comportamentos anti-sociais agressivos – podem parcialmente cumprir esta
finalidade. É importante orientar a criança, com firmeza, para que peça perdão
e repare o mal causado aos outros. Quando o percurso educativo mostra os seus
frutos num amadurecimento da liberdade pessoal, a dado momento o próprio filho
começará a reconhecer, com gratidão, que foi bom para ele crescer numa família
e também suportar as exigências impostas por todo o processo formativo.
269. A correcção é um estímulo quando, ao mesmo tempo, se apreciam e
reconhecem os esforços e quando o filho descobre que os seus pais conservam
viva uma paciente confiança. Uma criança corrigida com amor sente-se tida em
consideração, percebe que é alguém, dá-se conta de que seus pais reconhecem as
suas potencialidades. Isto não exige que os pais sejam irrepreensíveis, mas que
saibam reconhecer, com humildade, os seus limites e mostrem o seu esforço
pessoal por ser melhores. Mas um testemunho de que os filhos precisam da parte
dos pais, é que estes não se deixem levar pela ira. O filho, que comete uma má
acção, deve ser corrigido, mas nunca como um inimigo ou como alguém sobre quem
se descarrega a própria agressividade. Além disso, um adulto deve reconhecer
que algumas más acções têm a ver com as fragilidades e os limites próprios da
idade. Por isso, seria nociva uma atitude constantemente punitiva, porque não
ajudaria a notar a diferente gravidade das acções e provocaria desânimo e
exasperação: «Vós, pais, não exaspereis os vossos filhos» (Ef 6, 4;
cf. Col 3, 21).
270. Condição fundamental é que a disciplina não se transforme numa
mutilação do desejo, mas se torne um estímulo para ir sempre mais além. Como
integrar disciplina e dinamismo interior? Como fazer para que a disciplina seja
limite construtivo do caminho que uma criança deve empreender e não um muro que
a aniquile ou uma dimensão da educação que a iniba? É preciso saber encontrar
um equilíbrio entre dois extremos igualmente nocivos: um seria pretender
construir um mundo à medida dos desejos do filho, que cresceria sentindo-se
sujeito de direitos mas não de responsabilidades; o outro extremo seria levá-lo
a viver sem consciência da sua dignidade, da sua identidade singular e dos seus
direitos, torturado pelos deveres e submetido à realização dos desejos alheios.
Realismo paciente
271. A educação moral implica pedir a uma criança ou a um jovem apenas
aquelas coisas que não representem, para eles, um sacrifício desproporcionado,
exigir-lhes apenas aquela dose de esforço que não provoque ressentimento ou
acções puramente forçadas. O percurso normal é propor pequenos passos que
possam ser compreendidos, aceites e apreciados, e impliquem uma renúncia
proporcionada. Caso contrário, pedindo demasiado, nada se obtém. A pessoa, logo
que puder livrar-se da autoridade, provavelmente deixará de praticar o bem.
272. Por vezes, a formação ética provoca desprezo devido a experiências
de abandono, desilusão, carência afectiva, ou a uma má imagem dos pais.
Projectam-se sobre os valores éticos as imagens distorcidas das figuras do pai
e da mãe ou as fraquezas dos adultos. Por isso, é preciso ajudar os
adolescentes a porem em prática a analogia: os valores são cumpridos
perfeitamente por algumas pessoas muito exemplares, mas também se realizam de
forma imperfeita e em diferentes graus. E uma vez que as resistências dos
jovens estão muito ligadas a experiências negativas, é preciso ao mesmo tempo
ajudá-los a percorrer um itinerário de cura deste mundo interior ferido, para
poderem ter acesso à compreensão e à reconciliação com as pessoas e com a
sociedade.
273. Quando se propõe os valores, é preciso fazê-lo pouco a pouco,
avançar de maneira diferente segundo a idade e as possibilidades concretas das
pessoas, sem pretender aplicar metodologias rígidas e imutáveis. A psicologia e
as ciências da educação, com suas valiosas contribuições, mostram que é
necessário um processo gradual para se conseguir mudanças de comportamento e
também que a liberdade precisa de ser orientada e estimulada, porque,
abandonando-a a si mesma, não se garante a sua maturação. A liberdade efectiva,
real, é limitada e condicionada. Não é uma pura capacidade de escolher o bem,
com total espontaneidade. Nem sempre se faz uma distinção adequada entre acto
«voluntário» e acto «livre». Uma pessoa pode querer algo de mal com uma grande
força de vontade, mas por causa duma paixão irresistível ou duma educação
deficiente. Neste caso, a sua decisão é fortemente voluntária, não contradiz a
inclinação da sua vontade, mas não é livre, porque lhe resulta quase impossível
não escolher aquele mal. É o que acontece com um dependente compulsivo da
droga: quando a quer, fá-lo com todas as suas forças, mas está tão condicionado
que, na hora, não é capaz de tomar outra decisão. Portanto, a sua decisão é
voluntária, mas não livre. Não tem sentido «deixá-lo escolher livremente»,
porque, de facto, não pode escolher, e expô-lo à droga só aumenta a
dependência. Precisa da ajuda dos outros e de um percurso educativo.
A vida familiar como contexto educativo
274. A família é a primeira escola dos valores humanos, onde se aprende
o bom uso da liberdade. Há inclinações maturadas na infância, que impregnam o
íntimo duma pessoa e permanecem toda a vida como uma inclinação favorável a um
valor ou como uma rejeição espontânea de certos comportamentos. Muitas pessoas
actuam a vida inteira duma determinada forma, porque consideram válida tal
forma de agir, que assimilaram desde a infância, como que por osmose: «Fui
ensinado assim»; «isto é o que me inculcaram». No âmbito familiar, pode-se
aprender também a discernir, criticamente, as mensagens dos vários meios de
comunicação. Muitas vezes, infelizmente, alguns programas televisivos ou
algumas formas de publicidade incidem negativamente e enfraquecem valores
recebidos na vida familiar.
275. Na época actual, em que reina a ansiedade e a pressa tecnológica,
uma tarefa importantíssima das famílias é educar para a capacidade de esperar.
Não se trata de proibir as crianças de jogarem com os dispositivos
electrónicos, mas de encontrar a forma de gerar nelas a capacidade de
diferenciarem as diversas lógicas e não aplicarem a velocidade digital a todas
as áreas da vida. O adiamento não é negar o desejo, mas retardar a sua
satisfação. Quando as crianças ou os adolescentes não são educados para aceitar
que algumas coisas devem esperar, tornam-se prepotentes, submetem tudo à
satisfação das suas necessidades imediatas e crescem com o vício do «tudo e
súbito». Este é um grande engano que não favorece a liberdade; antes,
intoxica-a. Ao contrário, quando se educa para aprender a adiar algumas coisas
e esperar o momento oportuno, ensina-se o que significa ser senhor de si mesmo,
autónomo face aos seus próprios impulsos. Assim, quando a criança experimenta
que pode cuidar de si mesma, enriquece a própria auto-estima. Ao mesmo tempo,
isto ensina-lhe a respeitar a liberdade dos outros. Naturalmente isto não
significa pretender das crianças que actuem como adultos, mas também não se
deve subestimar a sua capacidade de crescer na maturação duma liberdade
responsável. Numa família sã, esta aprendizagem realiza-se de forma normal
através das exigências da convivência.
276. A família é o âmbito da socialização primária, porque é o primeiro
lugar onde se aprende a relacionar-se com o outro, a escutar, partilhar,
suportar, respeitar, ajudar, conviver. A tarefa educativa deve levar a sentir o
mundo e a sociedade como «ambiente familiar»: é uma educação para saber
«habitar» mais além dos limites da própria casa. No contexto familiar,
ensina-se a recuperar a proximidade, o cuidado, a saudação. É lá que se rompe o
primeiro círculo do egoísmo mortífero, fazendo-nos reconhecer que vivemos junto
de outros, com outros, que são dignos da nossa atenção, da nossa gentileza, do
nosso afecto. Não há vínculo social, sem esta primeira dimensão quotidiana,
quase microscópica: conviver na proximidade, cruzando-nos nos vários momentos
do dia, preocupando-nos com aquilo que interessa a todos, socorrendo-nos
mutuamente nas pequenas coisas do dia-a-dia. A família tem de inventar, todos
os dias, novas formas de promover o reconhecimento mútuo.
277. No ambiente familiar, é possível também repensar os hábitos de consumo,
cuidando juntos da casa comum: «A família é a protagonista de uma ecologia
integral, porque constitui o sujeito social primário, que contém no seu
interior os dois princípios-base da civilização humana sobre a terra: o
princípio da comunhão e o princípio da fecundidade».[294] De
igual modo, podem ser muito educativos os momentos difíceis e duros da vida
familiar. É o que acontece, por exemplo, quando chega uma doença, porque,
«diante da doença, até em família surgem dificuldades, por causa da debilidade
humana. Mas, em geral, o tempo da enfermidade faz aumentar a força dos vínculos
familiares. (...) Uma educação que negligencie a sensibilidade pela doença
humana, torna árido o coração. E deixa os jovens “anestesiados” em relação ao
sofrimento do próximo, incapazes de se confrontar com o sofrimento e de viver a
experiência do limite».[295]
278. O encontro educativo entre pais e filhos pode ser facilitado ou
prejudicado pelas tecnologias de comunicação e distracção, cada vez mais
sofisticadas. Bem utilizadas, podem ser úteis para pôr em contacto os membros
da família, que vivem longe. Os contactos podem ser frequentes e ajudar a
resolver dificuldades.[296] Mas
deve ficar claro que não substituem nem preenchem a necessidade do diálogo mais
pessoal e profundo que requer o contacto físico ou, pelo menos, a voz da outra
pessoa. Sabemos que, às vezes, estes meios afastam em vez de aproximar, como
quando, na hora da refeição, cada um está concentrado no seu telemóvel ou
quando um dos cônjuges adormece à espera do outro que passa horas entretido com
algum dispositivo electrónico. Na família, também isto deve ser motivo de
diálogo e de acordos que permitam dar prioridade ao encontro dos seus membros
sem cair em proibições insensatas. Em todo o caso, não se podem ignorar os riscos
das novas formas de comunicação para as crianças e os adolescentes, chegando às
vezes a torná-los apáticos, desligados do mundo real. Este «autismo
tecnológico» expõe-nos mais facilmente às manipulações daqueles que procuram
entrar na sua intimidade com interesses egoístas.
279. Mas também não é bom que os pais se tornem seres omnipotentes para
seus filhos, de modo que estes só poderiam confiar neles, porque assim impedem
um processo adequado de socialização e amadurecimento afectivo. Para tornar
eficaz o prolongamento da paternidade e da maternidade para uma realidade mais
ampla, «as comunidades cristãs são chamadas a dar o seu apoio à missão
educativa das famílias»,[297] particularmente
através da catequese de iniciação. Para favorecer uma educação integral,
precisamos de «reavivar a aliança entre a família e a comunidade cristã».[298] O
Sínodo quis destacar a importância das escolas católicas, que «realizam uma
função vital de ajuda aos pais no seu dever de educar os filhos. (...) As
escolas católicas deveriam ser incentivadas na sua missão de ajudar os alunos a
crescer como adultos maduros que podem ver o mundo através do olhar de amor de
Jesus e compreender a vida como uma chamada para servir a Deus».[299] Para
isso «deve-se afirmar resolutamente a liberdade da Igreja ensinar a própria
doutrina e o direito à objecção de consciência por parte dos educadores».[300]
Sim à educação sexual
280. O Concílio Vaticano II apresentava a necessidade de «uma educação
sexual positiva e prudente» oferecida às crianças e adolescentes «à medida que
vão crescendo» e «tendo em conta os progressos da psicologia, pedagogia e
didáctica».[301]Deveríamos
perguntar-nos se as nossas instituições educativas assumiram este desafio. É
difícil pensar na educação sexual num tempo em que se tende a banalizar e
empobrecer a sexualidade. Só se poderia entender no contexto duma educação para
o amor, para a doação mútua; assim, a linguagem da sexualidade não acabaria tristemente
empobrecida, mas esclarecida. É possível cultivar o impulso sexual num percurso
de conhecimento de si mesmo e no desenvolvimento duma capacidade de
autodomínio, que podem ajudar a trazer à luz capacidades preciosas de alegria e
encontro amoroso.
281. A educação sexual oferece informação, mas sem esquecer que as
crianças e os jovens ainda não alcançaram plena maturidade. A informação deve
chegar no momento apropriado e de forma adequada à fase que vivem. Não é útil
saturá-los de dados, sem o desenvolvimento do sentido crítico perante uma
invasão de propostas, perante a pornografia descontrolada e a sobrecarga de
estímulos que podem mutilar a sexualidade. Os jovens devem poder dar-se conta
de que são bombardeados por mensagens que não procuram o seu bem e o seu
amadurecimento. Faz falta ajudá-los a identificar e procurar as influências
positivas, ao mesmo tempo que se afastam de tudo o que desfigura a sua
capacidade de amar. De igual modo, devemos aceitar que «a necessidade duma
linguagem nova e mais adequada se apresenta especialmente no momento de
introduzir as crianças e os adolescentes no tema da sexualidade».[302]
282. Tem um valor imenso uma educação sexual que cuide um são pudor,
embora hoje alguns considerem que é questão doutros tempos. É uma defesa
natural da pessoa que resguarda a sua interioridade e evita ser transformada em
mero objecto. Sem o pudor, podemos reduzir o afecto e a sexualidade a obsessões
que nos concentram apenas nos órgãos genitais, em morbosidades que deformam a
nossa capacidade de amar e em várias formas de violência sexual que nos levam a
ser tratados de forma desumana ou a prejudicar os outros.
283. Frequentemente a educação sexual concentra-se no convite a
«proteger-se», procurando um «sexo seguro». Estas expressões transmitem uma
atitude negativa a respeito da finalidade procriadora natural da sexualidade, como
se um possível filho fosse um inimigo de que é preciso proteger-se. Deste modo
promove-se a agressividade narcisista, em vez do acolhimento. É irresponsável
qualquer convite aos adolescentes para que brinquem com os seus corpos e
desejos, como se tivessem a maturidade, os valores, o compromisso mútuo e os
objectivos próprios do matrimónio. Assim, são levianamente encorajados a
utilizar a outra pessoa como objecto de experiências para compensar carências e
grandes limites. É importante, pelo contrário, ensinar um percurso pelas
diversas expressões do amor, o cuidado mútuo, a ternura respeitosa, a
comunicação rica de sentido. Com efeito, tudo isto prepara para uma doação
íntegra e generosa de si mesmo que se expressará, depois dum compromisso
público, na entrega dos corpos. Assim a união sexual no matrimónio aparecerá
como sinal dum compromisso totalizante, enriquecido por todo o caminho
anterior.
284. É preciso não enganar os jovens, levando-os a confundir os planos:
a atracção «cria, por um momento, a ilusão da “união”, mas, sem amor, tal união
deixa os desconhecidos tão separados como antes».[303] A
linguagem do corpo requer uma aprendizagem paciente que permita interpretar e
educar os próprios desejos em ordem a uma entrega de verdade. Quando se
pretende entregar tudo duma vez, é possível que não se entregue nada. Uma coisa
é compreender as fragilidades da idade ou as suas confusões, outra é encorajar
os adolescentes a prolongarem a imaturidade da sua forma de amar. Mas, quem
fala hoje destas coisas? Quem é capaz de tomar os jovens a sério? Quem os ajuda
a preparar-se seriamente para um amor grande e generoso? Não se toma a sério a
educação sexual.
285. A educação sexual deveria incluir também o respeito e a valorização
da diferença, que mostra a cada um a possibilidade de superar o confinamento
nos próprios limites para se abrir à aceitação do outro. Para além de
compreensíveis dificuldades que cada um possa viver, é preciso ajudar a aceitar
o seu corpo como foi criado, porque «uma lógica de domínio sobre o próprio
corpo transforma-se numa lógica, por vezes subtil, de domínio sobre a criação. (...)
Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou
masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que
é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom específico do outro ou
da outra, obra de Deus criador, e enriquecer-se mutuamente».[304] Só
perdendo o medo à diferença é que uma pessoa pode chegar a libertar-se da
imanência do próprio ser e do êxtase por si mesmo. A educação sexual deve
ajudar a aceitar o próprio corpo, de modo que a pessoa não pretenda «cancelar a
diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela».[305]
286. Também não se pode ignorar que, na configuração do próprio modo de
ser – feminino ou masculino –, não confluem apenas factores biológicos ou
genéticos, mas uma multiplicidade de elementos que têm a ver com o
temperamento, a história familiar, a cultura, as experiências vividas, a
formação recebida, as influências de amigos, familiares e pessoas admiradas, e
outras circunstâncias concretas que exigem um esforço de adaptação. É verdade
que não podemos separar o que é masculino e feminino da obra criada por Deus,
que é anterior a todas as nossas decisões e experiências e na qual existem
elementos biológicos que é impossível ignorar. Mas também é verdade que o
masculino e o feminino não são qualquer coisa de rígido. Por isso é possível,
por exemplo, que o modo de ser masculino do marido possa adaptar-se de maneira
flexível à condição laboral da esposa; o facto de assumir tarefas domésticas ou
alguns aspectos da criação dos filhos não o torna menos masculino nem significa
um falimento, uma capitulação ou uma vergonha. É preciso ajudar as crianças a
aceitar como normais estes «intercâmbios» sadios que não tiram dignidade alguma
à figura paterna. A rigidez torna-se um exagero do masculino ou do feminino, e
não educa as crianças e os jovens para a reciprocidade encarnada nas condições
reais do matrimónio. Tal rigidez, por seu lado, pode impedir o desenvolvimento
das capacidades de cada um, tendo-se chegado ao ponto de considerar pouco
masculino dedicar-se à arte ou à dança e pouco feminino desempenhar alguma tarefa
de chefia. Graças a Deus, isto mudou; mas, nalguns lugares, certas ideias
inadequadas continuam a condicionar a legítima liberdade e a mutilar o
autêntico desenvolvimento da identidade concreta dos filhos e das suas
potencialidades.
Transmitir a fé
287. A educação dos filhos deve estar marcada por um percurso de
transmissão da fé, que se vê dificultado pelo estilo de vida actual, pelos
horários de trabalho, pela complexidade do mundo actual, onde muitos têm um
ritmo frenético para poder sobreviver.[306] Apesar
disso, a família deve continuar a ser lugar onde se ensina a perceber as razões
e a beleza da fé, a rezar e a servir o próximo. Isto começa no baptismo, onde –
como dizia Santo Agostinho – as mães que levam os seus filhos «cooperam no
parto santo».[307] Depois
tem início o percurso de crescimento desta vida nova. A fé é dom de Deus,
recebido no baptismo, e não o resultado duma acção humana; mas os pais são
instrumentos de Deus para a sua maturação e desenvolvimento. Por isso, «é
bonito quando as mães ensinam os filhos pequenos a enviar um beijo a Jesus ou a
Nossa Senhora. Quanta ternura há nisto! Naquele momento, o coração das crianças
transforma-se em lugar de oração».[308] A
transmissão da fé pressupõe que os pais vivam a experiência real de confiar em
Deus, de O procurar, de precisar d’Ele, porque só assim «cada geração contará à
seguinte o louvor das obras [de Deus] e todos proclamarão as [Suas] proezas» (Sl 145/144,
4) e «o pai dará a conhecer aos seus filhos a [Sua] fidelidade» (Is 38,
19). Isto requer que imploremos a acção de Deus nos corações, aonde não podemos
chegar. O grão de mostarda, semente tão pequenina, transforma-se num grande
arbusto (cf. Mt 13, 31-32), e, deste modo, reconhecemos a
desproporção entre a acção e o seu efeito. Sabemos, assim, que não somos
proprietários do dom, mas seus solícitos administradores. Entretanto o nosso
esforço criativo é uma oferta que nos permite colaborar com a iniciativa divina.
Por isso, «tenha-se o cuidado de valorizar os casais, as mães e os pais, como
sujeitos activos da catequese (...). De grande ajuda é a catequese familiar,
enquanto método eficaz para formar os pais jovens e torná-los conscientes da
sua missão como evangelizadores da sua própria família».[309]
288. A educação na fé sabe adaptar-se a cada filho, porque os recursos
aprendidos ou as receitas às vezes não funcionam. As crianças precisam de
símbolos, gestos, narrações. Os adolescentes habitualmente entram em crise com
a autoridade e com as normas, pelo que é conveniente estimular as suas
experiências pessoais de fé e oferecer-lhes testemunhos luminosos que se
imponham simplesmente pela sua beleza. Os pais, que querem acompanhar a fé dos
seus filhos, estão atentos às suas mudanças, porque sabem que a experiência
espiritual não se impõe, mas propõe-se à sua liberdade. É fundamental que os
filhos vejam de maneira concreta que, para os seus pais, a oração é realmente
importante. Por isso, os momentos de oração em família e as expressões da
piedade popular podem ter mais força evangelizadora do que todas as catequeses
e todos os discursos. Quero exprimir a minha gratidão de forma especial a todas
as mães que rezam incessantemente, como fazia Santa Mónica, pelos filhos que se
afastaram de Cristo.
289. O exercício de transmitir aos filhos a fé, no sentido de facilitar
a sua expressão e crescimento, permite que a família se torne evangelizadora e,
espontaneamente, comece a transmiti-la a todos os que se aproximam dela e mesmo
fora do próprio ambiente familiar. Os filhos que crescem em famílias
missionárias, frequentemente tornam-se missionários, se os pais sabem viver
esta tarefa duma maneira tal que os outros os sintam vizinhos e amigos, de tal
modo que os filhos cresçam neste estilo de relação com o mundo, sem renunciar à
sua fé nem às suas convicções. Lembremo-nos que o próprio Jesus comia e bebia
com os pecadores (cf. Mc 2, 16; Mt 11, 19),
podia deter-se a conversar com a Samaritana (cf. Jo 4, 7-26) e
receber de noite Nicodemos (cf. Jo 3, 1-21), deixava ungir os
seus pés por uma mulher prostituta (cf. Lc 7, 36-50) e não
hesitava em tocar os doentes (cf. Mc 1, 40-45; 7, 33). E o
mesmo faziam os seus apóstolos, que não eram pessoas desprezadoras dos outros,
fechadas em pequenos grupos de eleitos, isoladas da vida do seu povo. Enquanto
as autoridades os perseguiam, eles gozavam da simpatia de todo o povo (cf. At 2,
47; 4, 21.33; 5, 13).
290. «A família torna-se sujeito da acção pastoral, através do anúncio
explícito do Evangelho e do legado de múltiplas formas de testemunho,
nomeadamente a solidariedade com os pobres, a abertura à diversidade das
pessoas, a salvaguarda da criação, a solidariedade moral e material para com as
outras famílias, especialmente para com as mais necessitadas, o empenho na
promoção do bem comum, inclusive através da transformação das estruturas
sociais injustas, a partir do território onde vive a família, praticando as
obras corporais e espirituais de misericórdia».[310] Isto
deve ser feito no contexto da convicção mais preciosa dos cristãos: o amor do
Pai que nos sustenta e faz crescer, manifestado no dom total de Jesus Cristo,
vivo no meio de nós, que nos torna capazes de enfrentar, unidos, todas as
tempestades e todas as etapas da vida. E, no coração de cada família, deve
ressoar também o querigma, a tempo e fora de tempo, para iluminar o caminho.
Todos deveríamos poder dizer, a partir da vivência nas nossas famílias: «Nós
conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (1Jo 4, 16).
Só a partir desta experiência é que a pastoral familiar poderá conseguir que as
famílias sejam simultaneamente igrejas domésticas e fermento evangelizador na
sociedade.
CAPÍTULO VIII: ACOMPANHAR,
DISCERNIR E INTEGRAR A FRAGILIDADE
291. Os Padres sinodais afirmaram que, embora a Igreja reconheça que
toda a ruptura do vínculo matrimonial «é contra a vontade de Deus, está
consciente também da fragilidade de muitos dos seus filhos».[311] Iluminada
pelo olhar de Cristo, a Igreja «dirige-se com amor àqueles que participam na
sua vida de modo incompleto, reconhecendo que a graça de Deus também actua nas
suas vidas, dando-lhes a coragem para fazer o bem, cuidar com amor um do outro
e estar ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham».[312] Aliás
esta atitude vê-se corroborada no contexto de um Ano Jubilar dedicado à
misericórdia. Embora não cesse jamais de propor a perfeição e convidar a uma
resposta mais plena a Deus, «a Igreja deve acompanhar, com atenção e
solicitude, os seus filhos mais frágeis, marcados pelo amor ferido e
extraviado, dando-lhes de novo confiança e esperança, como a luz do farol dum
porto ou duma tocha acesa no meio do povo para iluminar aqueles que perderam a
rota ou estão no meio da tempestade».[313] Não
esqueçamos que, muitas vezes, o trabalho da Igreja é semelhante ao de um
hospital de campanha.
292. O matrimónio cristão, reflexo da união entre Cristo e a sua Igreja,
realiza-se plenamente na união entre um homem e uma mulher, que se doam
reciprocamente com um amor exclusivo e livre fidelidade, se pertencem até à
morte e abrem à transmissão da vida, consagrados pelo sacramento que lhes
confere a graça para se constituírem como igreja doméstica e serem fermento de
vida nova para a sociedade. Algumas formas de união contradizem radicalmente
este ideal, enquanto outras o realizam pelo menos de forma parcial e analógica.
Os Padres sinodais afirmaram que a Igreja não deixa de valorizar os elementos
construtivos nas situações que ainda não correspondem ou já não correspondem à
sua doutrina sobre o matrimónio.[314]
A gradualidade na pastoral
293. Os Padres consideraram também a situação particular de um
matrimónio apenas civil ou mesmo, ressalvadas as distâncias, da mera
convivência: «quando a união atinge uma notável estabilidade através dum
vínculo público e se caracteriza por um afecto profundo, responsabilidade para
com a prole, capacidade de superar as provas, pode ser vista como uma ocasião a
acompanhar na sua evolução para o sacramento do matrimónio».[315] Além
disso, é preocupante que hoje muitos jovens não tenham confiança no matrimónio
e convivam adiando indefinidamente o compromisso conjugal, enquanto outros põem
termo ao compromisso assumido e imediatamente instauram um novo. Aqueles «que
fazem parte da Igreja, precisam duma atenção pastoral misericordiosa e
encorajadora».[316] Com
efeito, aos pastores compete não só a promoção do matrimónio cristão, mas
também «o discernimento pastoral das situações de muitas pessoas que deixaram
de viver esta realidade», para «entrar em diálogo pastoral com elas a fim de
evidenciar os elementos da sua vida que possam levar a uma maior abertura ao
Evangelho do matrimónio na sua plenitude».[317] No
discernimento pastoral, convém «identificar elementos que possam favorecer a
evangelização e o crescimento humano e espiritual».[318]
294. «Muitas vezes a escolha do matrimónio civil ou, em diversos casos,
da simples convivência não é motivada por preconceitos ou relutância face à
união sacramental, mas por situações culturais ou contingentes».[319] Nestas
situações, poderão ser valorizados aqueles sinais de amor que refletem de algum
modo o amor de Deus.[320] Sabemos
que «está em contínuo crescimento o número daqueles que, depois de terem vivido
juntos longo tempo, pedem a celebração do matrimónio na Igreja. Muitas vezes,
escolhe-se a simples convivência por causa da mentalidade geral contrária às
instituições e aos compromissos definitivos, mas também porque se espera
adquirir maior segurança existencial (emprego e salário fixo). Noutros países,
por último, as uniões de facto são muito numerosas, não só pela rejeição dos
valores da família e do matrimónio, mas sobretudo pelo facto de a cerimónia do
casamento ser sentida como um luxo, pelas condições sociais, de modo que a
miséria material impele a viver uniões de facto».[321] Mas
«é preciso enfrentar todas estas situações de forma construtiva, procurando
transformá-las em oportunidades de caminho para a plenitude do matrimónio e da
família à luz do Evangelho. Trata-se de acolhê-las e acompanhá-las com
paciência e delicadeza».[322] Foi
o que Jesus fez com a Samaritana (cf. Jo 4, 1-26): dirigiu uma
palavra ao seu desejo de amor verdadeiro, para a libertar de tudo o que
obscurecia a sua vida e guiá-la para a alegria plena do Evangelho.
295. Nesta linha, São João Paulo II propunha a chamada «lei da
gradualidade», ciente de que o ser humano «conhece, ama e cumpre o bem moral
segundo diversas etapas de crescimento».[323] Não
é uma «gradualidade da lei», mas uma gradualidade no exercício prudencial dos
atos livres em sujeitos que não estão em condições de compreender, apreciar ou praticar
plenamente as exigências objectivas da lei. Com efeito, também a lei é dom de
Deus, que indica o caminho; um dom para todos sem excepção, que se pode viver
com a força da graça, embora cada ser humano «avance gradualmente com a
progressiva integração dos dons de Deus e das exigências do seu amor definitivo
e absoluto em toda a vida pessoal e social».[324]
296. O Sínodo referiu-se a diferentes situações de fragilidade ou
imperfeição. A este respeito, quero lembrar aqui uma coisa que pretendi propor,
com clareza, a toda a Igreja para não nos equivocarmos no caminho: «Duas
lógicas percorrem toda a história da Igreja: marginalizar e reintegrar. (...) O
caminho da Igreja, desde o Concílio de Jerusalém em diante, é sempre o de
Jesus: o caminho da misericórdia e da integração. (...) O caminho da Igreja é o
de não condenar eternamente ninguém; derramar a misericórdia de Deus sobre
todas as pessoas que a pedem com coração sincero (...). Porque a caridade
verdadeira é sempre imerecida, incondicional e gratuita».[326] Por
isso, «temos de evitar juízos que não tenham em conta a complexidade das diversas
situações e é necessário estar atentos ao modo em que as pessoas vivem e sofrem
por causa da sua condição».[327]
297. Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar cada um a encontrar a
sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se sinta
objecto duma misericórdia «imerecida, incondicional e gratuita». Ninguém pode
ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho! Não me
refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a todos seja qual for
a situação em que se encontrem. Obviamente, se alguém ostenta um pecado
objectivo como se fizesse parte do ideal cristão ou quer impor algo diferente
do que a Igreja ensina, não pode pretender dar catequese ou pregar e, neste
sentido, há algo que o separa da comunidade (cf. Mt 18, 17).
Precisa de voltar a ouvir o anúncio do Evangelho e o convite à conversão. Mas,
mesmo para esta pessoa, pode haver alguma maneira de participar na vida da
comunidade, quer em tarefas sociais, quer em reuniões de oração, quer na forma
que lhe possa sugerir a sua própria iniciativa discernida juntamente com o
pastor. Quanto ao modo de tratar as várias situações chamadas «irregulares», os
Padres sinodais chegaram a um consenso geral que eu sustento: «Na abordagem
pastoral das pessoas que contraíram matrimónio civil, que são divorciadas
novamente casadas, ou que simplesmente convivem, compete à Igreja revelar-lhes
a pedagogia divina da graça nas suas vidas e ajudá-las a alcançar a plenitude
do desígnio que Deus tem para elas»,[328] sempre
possível com a força do Espírito Santo.
298. Os divorciados que vivem numa nova união, por exemplo, podem
encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser catalogadas ou
encerradas em afirmações demasiado rígidas, sem deixar espaço para um adequado
discernimento pessoal e pastoral. Uma coisa é uma segunda união consolidada no
tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação generosa,
compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande
dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em
novas culpas. A Igreja reconhece a existência de situações em que «o homem e a
mulher, por motivos sérios – como, por exemplo, a educação dos filhos – não se
podem separar».[329] Há
também o caso daqueles que fizeram grandes esforços para salvar o primeiro
matrimónio e sofreram um abandono injusto, ou o caso daqueles que «contraíram
uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão
subjectivamente certos em consciência de que o precedente matrimónio,
irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido».[330] Coisa
diferente, porém, é uma nova união que vem dum divórcio recente, com todas as
consequências de sofrimento e confusão que afetam os filhos e famílias
inteiras, ou a situação de alguém que faltou repetidamente aos seus
compromissos familiares. Deve ficar claro que este não é o ideal que o
Evangelho propõe para o matrimónio e a família. Os Padres sinodais afirmaram
que o discernimento dos pastores sempre se deve fazer «distinguindo
adequadamente»,[331] com
um olhar que discirna bem as situações.[332] Sabemos
que não existem «receitas simples».[333]
299. Acolho as considerações de muitos Padres sinodais que quiseram
afirmar que «os baptizados que se divorciaram e voltaram a casar civilmente
devem ser mais integrados na comunidade cristã sob as diferentes formas
possíveis, evitando toda a ocasião de escândalo. A lógica da integração é a
chave do seu acompanhamento pastoral, para saberem que não só pertencem ao Corpo
de Cristo que é a Igreja, mas podem também ter disso mesmo uma experiência
feliz e fecunda. São baptizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama
neles dons e carismas para o bem de todos. A sua participação pode exprimir-se
em diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir quais
das diferentes formas de exclusão actualmente praticadas em âmbito litúrgico,
pastoral, educativo e institucional possam ser superadas. Não só não devem
sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja,
sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afectuosamente deles e
encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho. Esta integração é necessária
também para o cuidado e a educação cristã dos seus filhos, que devem ser
considerados o elemento mais importante».[334]
300. Se se tiver em conta a variedade inumerável de situações concretas,
como as que mencionamos antes, é compreensível que se não devia esperar do
Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável
a todos os casos. É possível apenas um novo encorajamento a um responsável
discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria
reconhecer: uma vez que «o grau de responsabilidade não é igual em todos os
casos»,[335] as
consequências ou efeitos duma norma não devem necessariamente ser sempre os
mesmos.[336] Os
sacerdotes têm o dever de «acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do
discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo. Neste
processo, será útil fazer um exame de consciência, através de momentos de
reflexão e arrependimento. Os divorciados novamente casados deveriam
questionar-se como se comportaram com os seus filhos, quando a união conjugal
entrou em crise; se houve tentativas de reconciliação; como é a situação do
cônjuge abandonado; que consequências têm a nova relação sobre o resto da
família e a comunidade dos fiéis; que exemplo oferece ela aos jovens que se
devem preparar para o matrimónio. Uma reflexão sincera pode reforçar a
confiança na misericórdia de Deus que não é negada a ninguém».[337] Trata-se
dum itinerário de acompanhamento e discernimento que «orienta estes fiéis na
tomada de consciência da sua situação diante de Deus. O diálogo com o
sacerdote, no foro interno, concorre para a formação dum juízo correto sobre
aquilo que dificulta a possibilidade duma participação mais plena na vida da
Igreja e sobre os passos que a podem favorecer e fazer crescer. Uma vez que na
própria lei não há gradualidade (cf.Familiaris consortio, 34), este
discernimento não poderá jamais prescindir das exigências evangélicas de
verdade e caridade propostas pela Igreja. Para que isto aconteça, devem
garantir-se as necessárias condições de humildade, privacidade, amor à Igreja e
à sua doutrina, na busca sincera da vontade de Deus e no desejo de chegar a uma
resposta mais perfeita à mesma».[338] Estas
atitudes são fundamentais para evitar o grave risco de mensagens equivocadas,
como a ideia de que algum sacerdote pode conceder rapidamente «excepções», ou
de que há pessoas que podem obter privilégios sacramentais em troca de favores.
Quando uma pessoa responsável e discreta, que não pretende colocar os seus
desejos acima do bem comum da Igreja, se encontra com um pastor que sabe
reconhecer a seriedade da questão que tem entre mãos, evita-se o risco de que
um certo discernimento leve a pensar que a Igreja sustente uma moral dupla.
As circunstâncias atenuantes no discernimento pastoral
301. Para se entender adequadamente por que é possível e necessário um
discernimento especial nalgumas situações chamadas «irregulares», há uma
questão que sempre se deve ter em conta, para nunca se pensar que se pretende
diminuir as exigências do Evangelho. A Igreja possui uma sólida reflexão sobre
os condicionamentos e as circunstâncias atenuantes. Por isso, já não é possível
dizer que todos os que estão numa situação chamada «irregular» vivem em estado
de pecado mortal, privados da graça santificante. Os limites não dependem
simplesmente dum eventual desconhecimento da norma. Uma pessoa, mesmo
conhecendo bem a norma, pode ter grande dificuldade em compreender «os valores
inerentes à norma»[339] ou
pode encontrar-se em condições concretas que não lhe permitem agir de maneira
diferente e tomar outras decisões sem uma nova culpa. Como bem se expressaram
os Padres sinodais, «pode haver factores que limitam a capacidade de decisão».[340] E
São Tomás de Aquino reconhecia que alguém pode ter a graça e a caridade, mas é
incapaz de exercitar bem alguma das virtudes,[341] pelo
que, embora possua todas as virtudes morais infusas, não manifesta com clareza
a existência de alguma delas, porque a prática exterior dessa virtude está
dificultada: «Diz-se que alguns Santos não têm certas virtudes, enquanto
experimentam dificuldade em pô-las em acto, embora tenham os hábitos de todas
as virtudes».[342]
302. A propósito destes condicionamentos, o Catecismo da Igreja Católica exprime-se
de maneira categórica: «A imputabilidade e responsabilidade dum acto podem ser
diminuídas, e até anuladas, pela ignorância, a inadvertência, a violência, o
medo, os hábitos, as afeições desordenadas e outros factores psíquicos ou
sociais».[343] E,
noutro parágrafo, refere-se novamente às circunstâncias que atenuam a
responsabilidade moral, nomeadamente «a imaturidade afectiva, a força de
hábitos contraídos, o estado de angústia e outros fatores psíquicos ou
sociais».[344] Por
esta razão, um juízo negativo sobre uma situação objetiva não implica um juízo
sobre a imputabilidade ou a culpabilidade da pessoa envolvida.[345] No
contexto destas convicções, considero muito apropriado aquilo que muitos Padres
sinodais quiseram sustentar: «Em determinadas circunstâncias, as pessoas
encontram grandes dificuldades para agir de maneira diferente. (...) O
discernimento pastoral, embora tendo em conta a consciência rectamente formada
das pessoas, deve ocupar-se destas situações. As próprias consequências dos
actos praticados não são necessariamente as mesmas em todos os casos».[346]
303. A partir do reconhecimento do peso dos condicionamentos concretos,
podemos acrescentar que a consciência das pessoas deve ser melhor incorporada
na práxis da Igreja em algumas situações que não realizam objetivamente a nossa
conceção do matrimónio. É claro que devemos incentivar o amadurecimento duma
consciência esclarecida, formada e acompanhada pelo discernimento responsável e
sério do pastor, e propor uma confiança cada vez maior na graça. Mas esta
consciência pode reconhecer não só que uma situação não corresponde
objectivamente à proposta geral do Evangelho, mas reconhecer também, com
sinceridade e honestidade, aquilo que, por agora, é a resposta generosa que se
pode oferecer a Deus e descobrir com certa segurança moral que esta é a doação
que o próprio Deus está a pedir no meio da complexidade concreta dos limites,
embora não seja ainda plenamente o ideal objectivo. Em todo o caso,
lembremo-nos que este discernimento é dinâmico e deve permanecer sempre aberto
para novas etapas de crescimento e novas decisões que permitam realizar o ideal
de forma mais completa.
As normas e o discernimento
304. É mesquinho deter-se a considerar apenas se o agir duma pessoa
corresponde ou não a uma lei ou norma geral, porque isto não basta para
discernir e assegurar uma plena fidelidade a Deus na existência concreta dum
ser humano. Peço encarecidamente que nos lembremos sempre de algo que ensina
São Tomás de Aquino e aprendamos a assimilá-lo no discernimento pastoral:
«Embora nos princípios gerais tenhamos o carácter necessário, todavia à medida
que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito
da acção, a verdade ou a rectidão prática não são iguais em todas as aplicações
particulares, mas apenas nos princípios gerais; e, naqueles onde a rectidão é
idêntica nas próprias acções, esta não é igualmente conhecida por todos. (...)
Quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação».[347] É
verdade que as normas gerais apresentam um bem que nunca se deve ignorar nem
transcurar, mas, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as
situações particulares. Ao mesmo tempo é preciso afirmar que, precisamente por
esta razão, aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação
particular não pode ser elevado à categoria de norma. Isto não só geraria uma
casuística insuportável, mas também colocaria em risco os valores que se devem
preservar com particular cuidado.[348]
305. Por isso, um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando
leis morais àqueles que vivem em situações «irregulares», como se fossem pedras
que se atiram contra a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados, que
muitas vezes se escondem até por detrás dos ensinamentos da Igreja «para se
sentar na cátedra de Moisés e julgar, às vezes com superioridade e
superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas».[349] Na
mesma linha se pronunciou a Comissão Teológica Internacional: «A
lei natural não pode ser apresentada como um conjunto já constituído de regras
que se impõem a priori ao sujeito moral, mas é uma fonte de
inspiração objectiva para o seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de
decisão».[350] Por
causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível que uma
pessoa, no meio duma situação objectiva de pecado – mas subjectivamente não
seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa
amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso
a ajuda da Igreja.[351] O
discernimento deve ajudar a encontrar os caminhos possíveis de
resposta a Deus e de crescimento no meio dos limites. Por pensar que tudo seja
branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e
desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus. Lembremo-nos de
que «um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais
agradável a Deus do que a vida externamente correcta de quem transcorre os seus
dias sem enfrentar sérias dificuldades».[352] A
pastoral concreta dos ministros e das comunidades não pode deixar de incorporar
esta realidade.
306. Em toda e qualquer circunstância, perante quem tenha dificuldade em
viver plenamente a lei de Deus, deve ressoar o convite a percorrer a via
caritatis. A caridade fraterna é a primeira lei dos cristãos (cf. Jo 15,
12; Gal 5, 14). Não esqueçamos a promessa feita na Sagrada
Escritura: «Acima de tudo, mantende entre vós uma intensa caridade, porque o
amor cobre a multidão de pecados» (1 Ped 4, 8); «redime o teu
pecado pela justiça; e as tuas iniquidades, pela piedade para com os infelizes»
(Dn 4, 24); «a água apaga o fogo ardente, e a esmola expia o
pecado» (Sir 3, 30). O mesmo ensina também Santo Agostinho: «Tal
como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o
mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a
chama do pecado; assim, quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia
de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é
oferecida e da qual podemos tomar a água para extinguir o incêndio».[353]
A lógica da misericórdia pastoral
307. Para evitar qualquer interpretação tendenciosa, lembro que, de modo
algum, deve a Igreja renunciar a propor o ideal pleno do matrimónio, o projecto
de Deus em toda a sua grandeza: «É preciso encorajar os jovens baptizados para
não hesitarem perante a riqueza que o sacramento do matrimónio oferece aos seus
projectos de amor, com a força do apoio que recebem da graça de Cristo e da
possibilidade de participar plenamente na vida da Igreja».[354] A
tibieza, qualquer forma de relativismo ou um excessivo respeito na hora de
propor o sacramento seriam uma falta de fidelidade ao Evangelho e também uma
falta de amor da Igreja pelos próprios jovens. A compreensão pelas situações
excepcionais não implica jamais esconder a luz do ideal mais pleno, nem propor
menos de quanto Jesus oferece ao ser humano. Hoje, mais importante do que uma
pastoral dos falimentos é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e
assim evitar as rupturas.
308. Todavia, da nossa consciência do peso das circunstâncias atenuantes
– psicológicas, históricas e mesmo biológicas – conclui-se que, «sem diminuir o
valor do ideal evangélico, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência,
as possíveis etapas de crescimento das pessoas, que se vão construindo dia após
dia», dando lugar à «misericórdia do Senhor que nos incentiva a praticar o bem
possível».[355] Compreendo
aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão
alguma; mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem
que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que
expressa claramente a sua doutrina objectiva, «não renuncia ao bem possível,
ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada».[356] Os
pastores, que propõem aos fiéis o ideal pleno do Evangelho e a doutrina da
Igreja, devem ajudá-los também a assumir a lógica da compaixão pelas pessoas
frágeis e evitar perseguições ou juízos demasiado duros e impacientes. O
próprio Evangelho exige que não julguemos nem condenemos (cf. Mt 7,
1; Lc 6, 37). Jesus «espera que renunciemos a procurar aqueles
abrigos pessoais ou comunitários que permitem manter-nos à distância do nó do
drama humano, a fim de aceitarmos verdadeiramente entrar em contacto com a vida
concreta dos outros e conhecermos a força da ternura. Quando o fazemos, a vida
complica-se sempre maravilhosamente».[357]
309. É providencial que estas reflexões sejam desenvolvidas no contexto
de um Ano Jubilar dedicado à misericórdia, porque, também perante as mais
diversas situações que afectam a família, «a Igreja tem a missão de anunciara
misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve
chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o
comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir
ninguém».[358] Ela
bem sabe que o próprio Jesus Se apresenta como Pastor de cem ovelhas, não de
noventa e nove; e quer tê-las todas. A partir desta consciência, tornar-se-á
possível que «a todos, crentes e afastados, possa chegar o bálsamo da
misericórdia como sinal do Reino de Deus já presente no meio de nós».[359]
310. Não podemos esquecer que «a misericórdia não é apenas o agir do
Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus verdadeiros
filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque, primeiro, foi
usada misericórdia para connosco».[360] Não
é uma proposta romântica nem uma resposta débil ao amor de Deus, que sempre
quer promover as pessoas, porque «a arquitrave que suporta a vida da Igreja é a
misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveria estar envolvida pela ternura
com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo,
nada pode ser desprovido de misericórdia».[361] É
verdade que, às vezes, «agimos como controladores da graça e não como
facilitadores. Mas a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna, onde há
lugar para todos com a sua vida fadigosa».[362]
311. O ensino da teologia moral não deveria deixar de assumir estas considerações,
porque, embora seja verdade que é preciso ter cuidado com a integralidade da
doutrina moral da Igreja, todavia sempre se deve pôr um cuidado especial em
evidenciar e encorajar os valores mais altos e centrais do Evangelho,[363] particularmente
o primado da caridade como resposta à iniciativa gratuita do amor de Deus. Às
vezes custa-nos muito dar lugar, na pastoral, ao amor incondicional de Deus.[364] Pomos
tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e real
significado, e esta é a pior maneira de aguar o Evangelho. É verdade, por
exemplo, que a misericórdia não exclui a justiça e a verdade, mas, antes de
tudo, temos de dizer que a misericórdia é a plenitude da justiça e a
manifestação mais luminosa da verdade de Deus. Por isso, convém sempre
considerar «inadequada qualquer concepção teológica que, em última instância,
ponha em dúvida a própria omnipotência de Deus e, especialmente, a sua
misericórdia».[365]
312. Isto fornece-nos um quadro e um clima que nos impedem de
desenvolver uma moral fria de escritório quando nos ocupamos dos temas mais
delicados, situando-nos, antes, no contexto dum discernimento pastoral cheio de
amor misericordioso, que sempre se inclina para compreender, perdoar,
acompanhar, esperar e sobretudo integrar. Esta é a lógica que deve prevalecer
na Igreja, para «fazer a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas
mais variadas periferias existenciais».[366] Convido
os fiéis, que vivem situações complexas, a aproximar-se com confiança para
falar com os seus pastores ou com leigos que vivem entregues ao Senhor. Nem
sempre encontrarão neles uma confirmação das próprias ideias ou desejos, mas
seguramente receberão uma luz que lhes permita compreender melhor o que está a
acontecer e poderão descobrir um caminho de amadurecimento pessoal. E convido
os pastores a escutar, com carinho e serenidade, com o desejo sincero de entrar
no coração do drama das pessoas e compreender o seu ponto de vista, para
ajudá-las a viver melhor e reconhecer o seu lugar na Igreja.
CAPÍTULO IX: ESPIRITUALIDADE
CONJUGAL E FAMILIAR
313. O amor assume matizes diferentes, segundo o estado de vida a que
cada um foi chamado. Várias décadas atrás, o Concílio Vaticano II, a propósito
do apostolado dos leigos, punha em realce a espiritualidade que brota da vida
familiar. Dizia que a espiritualidade dos leigos «deverá assumir
características especiais» próprias, nomeadamente a partir do «estado do
matrimónio e da família»,[367] e
que os cuidados familiares não devem ser alheios ao seu estilo de vida
espiritual.[368] Por
isso, vale a pena deter-nos brevemente a descrever algumas características
fundamentais desta espiritualidade específica que se desenrola no dinamismo das
relações da vida familiar.
Espiritualidade da comunhão sobrenatural
314. Sempre falamos da inabitação de Deus no coração da pessoa que vive
na sua graça. Hoje podemos dizer também que a Trindade está presente no templo
da comunhão matrimonial. Assim como habita nos louvores do seu povo (cf. Sl 22/21,
4), assim também vive intimamente no amor conjugal que Lhe dá glória.
315. A presença do Senhor habita na família real e concreta, com todos
os seus sofrimentos, lutas, alegrias e propósitos diários. Quando se vive em
família, é difícil fingir e mentir, não podemos mostrar uma máscara. Se o amor
anima esta autenticidade, o Senhor reina nela com a sua alegria e a sua paz. A
espiritualidade do amor familiar é feita de milhares de gestos reais e
concretos. Deus tem a sua própria habitação nesta variedade de dons e encontros
que fazem maturar a comunhão. Esta dedicação une «o humano e o divino»,[369] porque
está cheia do amor de Deus. Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma
espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino.
316. A comunhão familiar bem vivida é um verdadeiro caminho de
santificação na vida ordinária e de crescimento místico, um meio para a união
íntima com Deus. Com efeito, as exigências fraternas e comunitárias da vida em
família são uma ocasião para abrir cada vez mais o coração, e isto torna
possível um encontro sempre mais pleno com o Senhor. Lê-se, na Palavra de Deus,
que «quem tem ódio ao seu irmão está nas trevas» (1 Jo 2, 11),
«permanece na morte» (1 Jo 3, 14) e «não chegou a conhecer a Deus»
(1 Jo 4, 8). O meu antecessor, Bento XVI, disse que «o fechar os
olhos diante do próximo torna cegos também diante de Deus»[370] e
que, fundamentalmente, o amor é a única luz que «ilumina incessantemente um
mundo às escuras».[371] Somente
«se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor chegou à
perfeição em nós» (1 Jo 4, 12). Dado que «a pessoa humana tem uma
inata e estrutural dimensão social»[372] e
«a primeira e originária expressão da dimensão social da pessoa é o casal e a
família»,[373] a
espiritualidade encarna-se na comunhão familiar. Por isso, aqueles que têm
desejos espirituais profundos não devem sentir que a família os afasta do
crescimento na vida do Espírito, mas é um percurso de que o Senhor Se serve
para os levar às alturas da união mística.
Unidos em oração à luz da Páscoa
317. Se a família consegue concentrar-se em Cristo, Ele unifica e
ilumina toda a vida familiar. Os sofrimentos e os problemas são vividos em
comunhão com a Cruz do Senhor e, abraçados a Ele, pode-se suportar os piores
momentos. Nos dias amargos da família, há uma união com Jesus abandonado, que
pode evitar uma ruptura. As famílias alcançam pouco a pouco, «com a graça do
Espírito Santo, a sua santidade através da vida matrimonial, participando
também no mistério da cruz de Cristo, que transforma as dificuldades e os
sofrimentos em oferta de amor».[374] Por
outro lado, os momentos de alegria, o descanso ou a festa, e mesmo a
sexualidade são sentidos como uma participação na vida plena da sua
Ressurreição. Os cônjuges moldam, com vários gestos quotidianos, este «espaço
teologal, onde se pode experimentar a presença mística do Senhor ressuscitado».[375]
318. A oração em família é um meio privilegiado para exprimir e reforçar
esta fé pascal.[376] Podem-se
encontrar alguns minutos cada dia para estar unidos na presença do Senhor vivo,
dizer-Lhe as coisas que os preocupam, rezar pelas necessidades familiares, orar
por alguém que está a atravessar um momento difícil, pedir-Lhe ajuda para amar,
dar-Lhe graças pela vida e as coisas boas, suplicar à Virgem que os proteja com
o seu manto de Mãe. Com palavras simples, este momento de oração pode fazer
muito bem à família. As várias expressões da piedade popular são um tesouro de
espiritualidade para muitas famílias. O caminho comunitário de oração atinge o
seu ponto culminante ao participarem juntos na Eucaristia, sobretudo no
contexto do descanso dominical. Jesus bate à porta da família, para partilhar
com ela a Ceia Eucarística (cf. Ap 3, 20). Aqui, os esposos
podem voltar incessantemente a selar a aliança pascal que os uniu e reflecte a
Aliança que Deus selou com a humanidade na Cruz.[377]A
Eucaristia é o sacramento da Nova Aliança, em que se actualiza a acção
redentora de Cristo (cf. Lc 22, 20). Constatamos, assim, os
laços íntimos que existem entre a vida conjugal e a Eucaristia.[378] O
alimento da Eucaristia é força e estímulo para viver cada dia a aliança
matrimonial como «igreja doméstica».[379]
Espiritualidade do amor exclusivo e libertador
319. No matrimónio, vive-se também o sentido de pertencer completamente
a uma única pessoa. Os esposos assumem o desafio e o anseio de envelhecer e
gastar-se juntos, e assim reflectem a fidelidade de Deus. Esta firme decisão,
que marca um estilo de vida, é uma «exigência interior do pacto de amor
conjugal»,[380] porque,
«quem não se decide a amar para sempre, é difícil que possa amar deveras um só
dia».[381] Mas
isto não teria significado espiritual, se fosse apenas uma lei vivida com
resignação. É uma pertença do coração, lá onde só Deus vê (cf. Mt 5,
28). Cada manhã, quando se levanta, o cônjuge renova diante de Deus esta
decisão de fidelidade, suceda o que suceder ao longo do dia. E cada um, quando
vai dormir, espera levantar-se para continuar esta aventura, confiando na ajuda
do Senhor. Assim, cada cônjuge é para o outro sinal e instrumento da
proximidade do Senhor, que não nos deixa sozinhos: «Eu estarei sempre convosco,
até ao fim dos tempos» (Mt 28, 20).
320. Há um ponto em que o amor do casal alcança a máxima libertação e se
torna um espaço de sã autonomia: quando cada um descobre que o outro não é seu,
mas tem um proprietário muito mais importante, o seu único Senhor. Ninguém pode
pretender possuir a intimidade mais pessoal e secreta da pessoa amada, e só Ele
pode ocupar o centro da sua vida. Ao mesmo tempo, o princípio do realismo
espiritual faz com que o cônjuge não pretenda que o outro satisfaça
completamente as suas exigências. É preciso que o caminho espiritual de cada um
– como justamente indicava Dietrich Bonhoeffer – o ajude a «desiludir-se» do
outro,[382] a
deixar de esperar dessa pessoa aquilo que é próprio apenas do amor de Deus.
Isto exige um despojamento interior. O espaço exclusivo, que cada um dos
cônjuges reserva para a sua relação pessoal com Deus, não só permite curar as
feridas da convivência, mas possibilita também encontrar no amor de Deus o
sentido da própria existência. Temos necessidade de invocar cada dia a acção do
Espírito, para que esta liberdade interior seja possível.
Espiritualidade da solicitude, da consolação e do estímulo
321. «Os esposos cristãos são cooperadores da graça e testemunhas da fé
um para com o outro, para com os filhos e demais familiares».[383] Deus
convida-os a gerar e a cuidar. Por isso mesmo, a família «foi desde sempre o
“hospital” mais próximo».[384] Prestemo-nos
cuidados, apoiemo-nos e estimulemo-nos mutuamente, e vivamos tudo isto como
parte da nossa espiritualidade familiar. A vida em casal é uma participação na
obra fecunda de Deus, e cada um é para o outro uma permanente provocação do
Espírito. O amor de Deus exprime-se «através das palavras vivas e concretas com
que o homem e a mulher se declaram o seu amor conjugal».[385] Assim,
os dois são entre si reflexos do amor divino, que conforta com a palavra, o
olhar, a ajuda, a carícia, o abraço. Por isso, «querer formar uma família é ter
a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de sonhar com Ele, a
coragem de construir com Ele, a coragem de unir-se a Ele nesta história de
construir um mundo onde ninguém se sinta só».[386]
322. Toda a vida da família é um «pastoreio» misericordioso. Cada um,
cuidadosamente, desenha e escreve na vida do outro: «A nossa carta sois vós,
uma carta escrita nos nossos corações (...) não com tinta, mas com o Espírito
do Deus vivo» (2 Cor 3, 2-3). Cada um é um «pescador de homens» (Lc 5,
10) que, em nome de Jesus, lança as redes (cf. Lc 5, 5) para
os outros, ou um lavrador que trabalha nesta terra fresca que são os seus entes
queridos, incentivando o melhor deles. A fecundidade matrimonial implica promover,
porque «amar uma pessoa é esperar dela algo indefinível e imprevisível; e é, ao
mesmo tempo, proporcionar-lhe de alguma forma os meios para satisfazer tal
expectativa».[387] Isto
é um culto a Deus, pois foi Ele que semeou muitas coisas boas nos outros, com a
esperança de que as façamos crescer.
323. É uma experiência espiritual profunda contemplar cada ente querido
com os olhos de Deus e reconhecer Cristo nele. Isto exige uma disponibilidade
gratuita que permita apreciar a sua dignidade. É possível estar plenamente
presente diante do outro, se uma pessoa se entrega gratuitamente, esquecendo
tudo o que existe em redor. Assim a pessoa amada merece toda a atenção. Jesus
era um modelo, porque, quando alguém se aproximava para falar com Ele, fixava
nele o seu olhar, olhava com amor (cf. Mc10, 21). Ninguém se sentia
transcurado na sua presença, pois as suas palavras e gestos eram expressão
desta pergunta: «Que queres que te faça?» (Mc 10, 51). Vive-se isto
na vida quotidiana da família. Nela, recordamos que a pessoa que vive connosco
merece tudo, pois tem uma dignidade infinita por ser objecto do amor imenso do
Pai. Assim floresce a ternura, capaz de «suscitar no outro a alegria de
sentir-se amado. Exprime-se, de modo particular, no debruçar-se com delicada
atenção sobre os limites do outro, especialmente quando aparecem de forma
evidente».[388]
324. Sob o impulso do Espírito, o núcleo familiar não só acolhe a vida
gerando-a no próprio seio, mas abre-se também, sai de si para derramar o seu
bem nos outros, para cuidar deles e procurar a sua felicidade. Esta abertura
exprime-se particularmente na hospitalidade,[389] que
a Palavra de Deus encoraja de forma sugestiva: «Não vos esqueçais da
hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos» (Heb 13,
2). Quando a família acolhe e sai ao encontro dos outros, especialmente dos
pobres e abandonados, é «símbolo, testemunho, participação da maternidade da
Igreja».[390] Na
realidade, o amor social, reflexo da Trindade, é o que unifica o sentido
espiritual da família e a sua missão fora de si mesma, porque torna presente o
querigma com todas as suas exigências comunitárias. A família vive a sua
espiritualidade própria, sendo ao mesmo tempo uma igreja doméstica e uma célula
viva para transformar o mundo.[391]
***
325. As palavras do Mestre (cf. Mt 22, 30) e as de São
Paulo (cf. 1 Cor 7, 29-31) sobre o matrimónio estão inseridas
– não por acaso – na dimensão última e definitiva da nossa existência, que
precisamos de recuperar. Assim, os esposos poderão reconhecer o sentido do
caminho que estão a percorrer. Com efeito, como recordamos várias vezes nesta
Exortação, nenhuma família é uma realidade perfeita e confeccionada duma vez
para sempre, mas requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de
amar. Há um apelo constante que provém da comunhão plena da Trindade, da união
estupenda entre Cristo e a sua Igreja, daquela comunidade tão bela que é a
família de Nazaré e da fraternidade sem mácula que existe entre os Santos do
céu. Mas contemplar a plenitude que ainda não alcançámos permite-nos também
relativizar o percurso histórico que estamos a fazer como família, para deixar
de pretender das relações interpessoais uma perfeição, uma pureza de intenções
e uma coerência que só poderemos encontrar no Reino definitivo. Além disso,
impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande
fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de
nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo
constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! Aquilo que se nos
promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos nossos limites,
mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos
foi prometida.
Oração à Sagrada
Família
Jesus, Maria e José,
em Vós contemplamos
o esplendor do verdadeiro amor,
confiantes, a Vós nos consagramos.
Sagrada Família de Nazaré,
tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos de oração,
autênticas escolas do Evangelho
e pequenas igrejas domésticas.
Sagrada Família de Nazaré,
que nunca mais haja nas famílias
episódios de violência, de fechamento e divisão;
e quem tiver sido ferido ou escandalizado
seja rapidamente consolado e curado.
Sagrada Família de Nazaré,
fazei que todos nos tornemos conscientes
do carácter sagrado e inviolável da família,
da sua beleza no projecto de Deus.
Jesus, Maria e José,
ouvi-nos e acolhei a nossa súplica.
Ámen.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no Jubileu Extraordinário da
Misericórdia, a 19 de Março – solenidade de São José – do ano 2016, quarto do
meu Pontificado.
Franciscus
[1]III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, Relatio Synodi (18 de Outubro de 2014),
2.
[3]Francisco, Discurso no encerramento da XIV Assembleia Geral Ordinária
do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015):L’Osservatore
Romano(ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9; cf. Pont. Comissão Bíblica, Fé
e cultura à luz da Bíblia. Actas da Sessão Plenária de 1979 da Pontifícia Comissão
Bíblica (Turim 1981); Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja
no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 44; João Paulo II, Carta
enc. Redemptoris missio (7 de Dezembro de
1990), 52: AAS 83 (1991), 300; Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de
2013), 69.117: AAS 105 (2013), 1049.1068-1069.
[4]Francisco, Discurso no Encontro com as Famílias, em
Santiago de Cuba (22 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 24/IX/2015), 14.
[6] Homilia na
Eucaristia celebrada em Puebla de los Ángeles (28 de Janeiro de
1979), 2: AAS 71 (1979), 184.
[14]Francisco, Discurso ao Congresso dos Estados Unidos da América (24
de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 01/X/2015), 9.
[17]III Assembleia Geral Extraordinária do Sínodo dos Bispos, Mensagem (18
de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 23/X/2014), 7.
[25]Pont. Conselho para a Família, Carta dos direitos da família (22
de Outubro de 1983), introdução.
[31] Relatio Finalis 2015,
23; cf. Mensagem para o Dia Mundial do Emigrante e do Refugiado em
17 de Janeiro de 2016 (12 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 08/X/2015), 18-19.
[37]Francisco, Discurso no encerramento da XIV Assembleia Geral Ordinária
do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015):L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9.
[39]Conferência Episcopal Mexicana, Que en Cristo Nuestra Paz México
tenga vida digna (15 de Fevereiro de 2009), 67.
[42]Francisco, Catequese (22 de
Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 23/IV/2015), 16.
[43]Idem, Catequese (29 de
Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 30/IV/2015), 16.
[49]Conferência Episcopal da Colômbia, A tiempos difíciles,
colombianos nuevos (13 de Fevereiro de 2003), 3.
[68]Francisco, Catequese (6 de
Maio de 2015): L’Osservatore Romano(ed. semanal
portuguesa de 7/V/2015), 20.
[69]Leão Magno, Epistula Rustico narbonensi episcopo, inquis.
IV: PL 54, 1205A; cf. Incmaro de Reims, Epist. 22: PL 126,
142.
[70]Cf. Pio XII, Carta enc. Mystici Corporis Christi (29
de Junho de 1943): AAS 35 (1943), 202: « Matrimonio
enim quo coniuges sibi invicem sunt ministri gratiae…».
[71]Cf . Código de Direito Canónico, cc. 1116;
1161-1165; Código dos Cânones das Igrejas Orientais,
832; 848-852.
[77]Francisco, Homilia na Santa Missa de encerramento do VIII Encontro
Mundial das Famílias em Filadélfia (27
de Setembro de 2015): L´Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 08/X/2015), 4.
[81]Cf . Código de Direito Canónico, c. 1055-§ 1: « ad
bonum coniugum atque ad prolis generationem et educationem ordinatum».
[88]Congr. para a Doutrina da Fé, Instr. sobre o respeito da vida humana
nascente e a dignidade da procriação Donum vitae (22 de Fevereiro de 1987),
II, 8: AAS 80 (1988), 97.
[97]Pont. Conselho para a Família, Sexualidade humana: verdade e significado (8
de Dezembro de 1995), 23.
[98]Francisco, Catequese (20 de
Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 21/V/2015), 20.
[99]Cf. João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 38: AAS 74 (1982), 129.
[100]Cf. Francisco, Discurso à Assembleia diocesana de Roma (14
de Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 18/VI/2015), 6.
[109]Francisco, Catequese (13 de Maio de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 14/V/2015), 16.
[112]Francisco, Catequese (13 de Maio de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 14/V/2015), 16.
[113]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 21: AAS 74 (1982), 106.
[115]São Tomás de Aquino entende o amor como « vis unitiva» ( Summa
theologiae, I, q. 20, art. 1, ad 3), retomando uma expressão de Dionísio
Pseudo-Areopagita ( De divinis monibus, IV, 12: PG 3,
709).
[118]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 13: AAS 74 (1982), 94.
[119]Francisco, Catequese (2 de
Abril de 2014): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 03/IV/2014), 12.
[122]Tomás de Aquino, Summa contra gentiles, III, 123; cf.
Aristóteles, Ética a Nicómaco, 8, 12 (ed. Bywater, Oxford 1984,
174).
[124]«De sacramento matrimonii», I, 2 in: Idem, Disputationes de
controversiis christianae fidei, III, 5, 3 (ed. Giuliano, Nápoles 1858,
778).
[132]Francisco, Discurso às famílias do mundo inteiro por ocasião da sua
peregrinação a Roma no Ano da Fé (26 de Outubro de 2013): AAS 105
(2013), 980.
[133]Idem, Angelus (29 de Dezembro de 2013): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 02/I/2014), 12.
[134]Idem, Discurso às famílias do mundo inteiro por ocasião da sua
peregrinação a Roma no Ano da Fé (26 de Outubro de 2013): AAS 105
(2013), 978.
[137]Conferência Episcopal do Chile, La vida y la familia: regalos de
Dios para cada uno de nosotros (21 de Julho de 2014).
[145]Cf. ibid., II-II, q. 153, art. 2, ad 2: « Abundantia
delectationis quae est in actu venereo secundum rationem ordinato, non
contrariatur medio virtutis».
[146]João Paulo II, Catequese (22 de Outubro de 1980), 5: Insegnamenti 3/2
(1980), 951; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
26/X/1980), 12.
[148]Idem, Catequese (24 de Setembro de 1980), 4: Insegnamenti 3/2
(1980), 719; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
28/IX/1980), 12.
[149] Catequese (12 de
Novembro de 1980), 2: Insegnamenti 3/2 (1980),
1133; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
16/XI/1980), 12.
[153] Catequese (16 de Janeiro de 1980), 1: Insegnamenti 3/1
(1980), 151; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
20/I/1980), 12.
[158] Catequese (18 de
Junho de 1980), 5: Insegnamenti 3/1 (1980), 1778; L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 29/VI/1980), 18.
[160]Cf. Idem, Catequese (30 de Julho de 1980), 1: Insegnamenti 3/2
(1980), 311; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
03/VIII/1980), 12.
[161]Idem, Catequese (8 de Abril de 1981), 3: Insegnamenti 4/1
(1981), 904; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
12/IV/1981), 12.
[162] Catequese (11 de
Agosto de 1982), 4: Insegnamenti 5/3 (1982),
205-206; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
15/VIII/1982), 8.
[166] Catequese (14 de
Abril de 1982), 1: Insegnamenti 5/1 (1982), 1176; L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 18/IV/1982), 12.
[168]João Paulo II, Catequese (7 de Abril de 1982), 2: Insegnamenti 5/1
(1982), 1127; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
11/IV/1982), 12.
[169]Idem, Catequese (14 de Abril de 1982), 3: Insegnamenti 5/1
(1982), 1177; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
18/IV/1982), 12.
[173]Pont. Conselho para a Família, Família, matrimónio e «uniões de facto» (26
de Julho de 2000), 40.
[174]João Paulo II, Catequese (31 de Outubro de 1984), 6: Insegnamenti 7/2
(1984), 1072; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
04/XI/1984), 12.
[176]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 14: AAS 74 (1982), 96.
[177]Francisco, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.
[179]Idem, Catequese (8 de Abril de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 09/IV/2015), 16.
[181]«Todos tenham bem presente que a vida humana e a missão de a transmitir
não se limitam a este mundo, nem podem ser medidas ou compreendidas unicamente
em função dele, mas que estão sempre relacionadas com o eterno destino do
homem» (Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes, 51).
[182] Carta à Secretária-Geral da Conferência Internacional da ONU
sobre População e Desenvolvimento (18 de Março de 1994):Insegnamenti17/1
(1994), 750-751; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 02/IV/1994), 4.
[183]João Paulo II, Catequese (12 de Março de 1980), 3: Insegnamenti3/1
(1980), 543; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
16/III/1980), 12.
[185]Francisco, Discurso no encontro com as famílias , em Manila (16 de Janeiro de 2015): AAS 107
(2015), 176.
[186]Idem, Catequese (11 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.
[187]Idem, Catequese (14 de Outubro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 15/X/2015), 12.
[188]Conferência dos Bispos Católicos da Austrália, Carta pastoral Don’t
Mess with Marriage (24 de Novembro de 2015), 11.
[190]João Paulo II, Catequese (12 de Março de 1980), 2: Insegnamenti3/1
(1980), 542; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
16/III/1980), 12.
[191]Cf. Idem, Carta ap. Mulieris dignitatem (15 de Agosto de
1988), 30-31: AAS 80 (1988), 1726-1729.
[192]Francisco, Catequese (7 de Janeiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 8/I/2015), 12.
[194]Idem, Catequese (28 de Janeiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 29/I/2015), 16.
[197]Francisco, Catequese (4 de Fevereiro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 5/II/2015), 16.
[200]V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Documento
de Aparecida (29 de Junho de 2007), 457.
[203]Francisco, Discurso no encontro com as famílias , em Manila (16 de Janeiro de 2015): AAS 107
(2015), 178.
[205]Cf. Francisco, Catequese (16 de
Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 17/IX/2015), 20.
[206]Idem, Catequese (7 de
Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 08/X/2015), 24.
[209]Francisco, Catequese (18 de
Março de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 19/III/2015), 20.
[210]Idem, Catequese (11 de
Fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 12/II/2015), 16.
[212]Francisco, Catequese (4 de
Março de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 05/III/2015), 16.
[213]Idem, Catequese (11 de
Março de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 12/III/2015), 16.
[215]Idem, Discurso aos participantes no «Fórum Internacional sobre o
Envelhecimento Activo» (5 de Setembro de 1980), 5:Insegnamenti3/2
(1980), 539; L’Osservatore Romano(ed. semanal portuguesa de
21/IX/1980), 14.
[217]Francisco, Catequese (4 de
Março de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 05/III/2015), 16.
[219]Idem, Discurso no Encontro com os Idosos (28
de Setembro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 02/X/2014), 8.
[220]Idem, Catequese (18 de
Fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 19/II/2015), 20.
[223]JoãoPaulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 18: AAS 74 (1982), 101.
[224]Francisco, Catequese (7 de
Outubro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 08/X/2015), 24.
[239]Conferência Episcopal Italiana. Comissão episcopal para a família e a
vida, Orientamenti pastorali sulla preparazione al matrimonio e alla
famiglia (22 de Outubro de 2012), 1.
[242]João Paulo II, Catequese (27 de Junho de 1984), 4: Insegnamenti 7/1
(1984), 1941; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
01/VII/1984), 12.
[243]Francisco, Catequese (21 de Outubro de 2015): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 22/X/2015), 16.
[246]João Paulo II, Catequese (4 de Julho de 1984), 3.6: Insegnamenti 7/2
(1984), 9.10; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
08/VII/1984), 12.
[257]Francisco, Catequese (24 de
Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 25/VI/2015), 20.
[258]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 83: AAS 74 (1982), 184.
[261]Cf. Francisco, Catequese (5 de
Agosto de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 06-13/VIII/2015), 16.
[264]Cf. Motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus (15 de Agosto
de 2015): L’Osservatore Romano (ed. diária italiana de
09/IX/2015), 3-4; Motu proprio Mitis et Misericors Iesus (15 de Agosto
de 2015): L’Osservatore Romano (ed. diária italiana de
09/IX/2015), 5-6.
[265]Motu proprio Mitis Iudex Dominus Iesus (15 de Agosto
de 2015), preâmbulo, III: L’Osservatore Romano (ed. diária
italiana de 09/IX/2015), 3.
[268]Francisco, Catequese (20 de
Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 21/V/2015), 20.
[269]Idem, Catequese (24 de
Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 25/VI/2015), 20.
[270]Idem, Catequese (5 de
Agosto de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 06-13/VIII/2015), 16.
[278] Relatio Finalis 2015,
76; cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Considerações sobre os projetos
de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais (3 de
Junho de 2003), 4.
[281]Francisco, Catequese (17 de
Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 18/VI/2015), 16.
[283]Francisco, Catequese (17 de
Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 18/VI/2015), 16.
[287]Cf.«Últimos colóquios: “Caderno Amarelo” da Madre Inês» (17 de Julho de
1897): Opere complete (Cidade do Vaticano 1997), 1028. Nesta
linha, é significativo o testemunho das carmelitas de que Santa Teresa
prometera que a sua partida deste mundo havia de ser «como uma chuva de rosas»
( Ibid., 9 de Junho de 1897: o. c., 991).
[288]Jordão de Saxónia, Libellus de principiis Ordinis predicatorum,
93: Monumenta Historica Sancti Patris Nostri Dominici, XVI (Roma
1935), 69.
[292]Idem, Catequese (20 de
Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 21/V/2015), 20.
[294]Francisco, Catequese (30 de
Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 01/X/2015), 24.
[295]Idem, Catequese (10 de
Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 11/VI/2015), 16.
[297]Francisco, Catequese (20 de
Maio de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 21/V/2015), 20.
[298]Idem, Catequese (9 de
Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 10/IX/2015), 16.
[305]Idem, Catequese (15 de
Abril de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 16/IV/2015), 20.
[308]Francisco, Catequese (26 de
Agosto de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 27/VIII/2015), 12.
[325]Cf. Francisco, Catequese (24 de
Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 25/VI/2015), 12.
[326]Idem, Homilia na Eucaristia celebrada com os novos Cardeais (15
de Fevereiro de 2015): AAS 107 (2015), 257.
[329]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 84: AAS 74 (1982), 186. Nestas situações, muitos,
conhecendo e aceitando a possibilidade de conviver «como irmão e irmã» que a
Igreja lhes oferece, assinalam que, se faltam algumas expressões de intimidade,
«não raro se põe em risco a fidelidade e se compromete o bem da prole» (Conc.
Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,51).
[330]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 84: AAS 74 (1982), 186.
[333]Bento XVI, Discurso no VII Encontro Mundial das Famílias, em Milão (2
de Junho de 2012), resposta 5 : Insegnamenti, 8/1
(2012), 691; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
09/VI/2012), 11.
[336]E também não devem ser sempre os mesmos na aplicação da disciplina
sacramental, dado que o discernimento pode reconhecer que, numa situação
particular, não há culpa grave. Neste caso, aplica-se o que afirmei noutro
documento: cf. Exort. ap.Evangelii gaudium (24 de Novembro de
2013), 44.47: AAS 105 (2013), 1038-1040.
[339]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 33: AAS 74 (1982), 121.
[344]N. 2352; cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Decl. sobre a eutanásia Iura et bona (5
de Maio de 1980), II: AAS 72 (1980), 546. João Paulo II, ao
criticar algumas leituras da categoria «opção fundamental», reconhecia que
«podem, sem dúvida, verificar-se situações muito complexas e obscuras sob o
ponto de vista psicológico, que influem na imputabilidade subjectiva do
pecador» [Exort. ap. Reconciliatio et paenitentia (2 de
Dezembro de 1984), 17: AAS 77 (1985), 223].
[345]Cf. Pont. Conselho para os Textos Legislativos, Decl. sobre A admissibilidade à Sagrada Comunhão dos divorciados que
voltaram a casar (24 de Junho de 2000), 2.
[348]Referindo-se ao conhecimento geral da norma e ao conhecimento particular
do discernimento prático, São Tomás chega a dizer que, «se existir apenas um
dos dois conhecimentos, é preferível que este seja o conhecimento da realidade
particular porque está mais próximo do agir» [ Sententia libri
Ethicorum, VI, 6 (ed. Leonina, t. 47, 354)].
[349]Francisco, Discurso no encerramento da XIV Assembleia Geral Ordinária
do Sínodo dos Bispos (24 de Outubro de 2015):L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 29/X/2015), 9.
[351]Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso,
«aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de
tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor» [Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de
2013), 44: AAS 105 (2013), 1038]. E de igual modo assinalo que
a Eucaristia «não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um
alimento para os fracos» [ Ibid., 47: o. c., 1039].
[353] De catechizandis rudibus, I, 14, 22: PL 40,
327; cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de Novembro de
2013), 193:AAS 105 (2013), 1101.
[364]Talvez por escrúpulo, oculto por detrás dum grande desejo de fidelidade
à verdade, alguns sacerdotes exigem aos penitentes um propósito de emenda claro
sem sombra alguma, fazendo com que a misericórdia se esfume debaixo da busca
duma justiça supostamente pura. Por isso vale a pena recordar o ensinamento de
São João Paulo II quando afirmou que a previsibilidade duma nova queda «não prejudica
a autenticidade do propósito» [ Carta ao Card. William W. Baum por
ocasião do curso sobre o foro interno, organizado pela Penitenciaria Apostólica(22
de Março de 1996), 5: Insegnamenti, 19/1 (1996), 589; L’Osservatore
Romano(ed. semanal portuguesa de 30/III/1996), 3].
[365]Comissão Teológica Internacional, A esperança de salvação para as crianças que morrem sem
baptismo (19 de Abril de 2007), 2.
[372]João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Christifideles laici (30
de Dezembro de 1988), 40: AAS 81 (1989), 468.
[375]João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Vita consecrata (25 de Marco de 1996),
42: AAS 88 (1996), 416.
[377]Cf. João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 57: AAS 74 (1982), 150.
[378]Não esqueçamos que a Aliança de Deus com o seu povo se exprime como um
desposório (cf. Ez 16, 8.60; Is 62, 5; Os 2,
21-22), e a nova Aliança é apresentada também como um matrimónio (cf. Ap 19,
7; 21, 2; Ef 5, 25).
[380]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 11: AAS 74 (1982), 93.
[381]Idem, Homilia na Eucaristia celebrada para as famílias, em
Córdova/Argentina (8 de Abril de 1987), 4: Insegnamenti 10/1
(1987), 1161-1162; L´Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 08/V/1987), 6.
[384]Francisco, Catequese (10 de
Junho de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 11/VI/2015), 16.
[385]João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 12: AAS 74 (1982), 93.
[386]Francisco, Discurso na Festa das Famílias e Vigília de Oração,
em Filadélfia (26 de Setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 08/X/2015), 2.
[389]Cf. João Paulo II, Exort. ap. Familiaris consortio (22 de Novembro de
1981), 44: AAS 74 (1982), 136.
[391]Sobre os aspectos sociais da família, cf. Pont. Conselho «Justiça e
Paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja,
248-254.
Fonte: Santa Sé
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