quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O martírio de São Tarcísio

O Martírio de São Tarcísio
Versão romanceada por Marcela A. de Castro


- E como é que agente vai fazer? Falta mais um pra completar o time, senão, não tem como começar.
- Peraí, vamos ver se aparece alguém.
- Epa! Quem vem lá à direita?
- É o Tarcísio.
- Nosso problema tá resolvido. O manézinho pode servir.

Aquela havia sido uma manhã magnífica. As palavras sublimes do sacerdote ainda ecoavam em seus ouvidos. Infelizmente, não se podia convidar as pessoas abertamente, porque a perseguição de Valeriano era implacável e punha em risco não só a vida dos cristãos, mas a própria celebração dos Sagrados Mistérios. Tarcísio não conseguia entender porque os pagãos ficavam tão enfurecidos com os cristãos, mesmo tendo passado mais de duzentos anos da morte de Cristo. Uma só palavra à pessoa errada e tudo estaria acabado. Era preciso despertar o interesse por Jesus nas pessoas de maneira prudente e sábia, de modo que se pudesse confiar nas pessoas antes de convidá-las a participar do Santo Sacrifício. Isso tornava as celebrações nas catacumbas ainda mais emocionantes. Hoje, no entanto, o menino Tarcísio estava pisando nas nuvens. Seu coração estava jubiloso e ele se sentia verdadeiramente honrado com a missão que lhe fora confiada.

Naqueles dias, muitos de seus irmãos na Fé aguardavam nas prisões romanas o dia em que seriam chamados a dar a razão de sua esperança. A grande maioria seria cruelmente entregue às feras enquanto uma turba insana se divertiria vendo seus corpos sendo dilacerados. O único consolo que tinham nesses poucos dias que lhes restava na face da Terra era receber o “Pão dos Fortes”. Para estes o pão consagrado era tudo o que precisavam para recobrar o ânimo e não fraquejar. Porém, até isso era algo difícil de se obter em meio a tantas perseguições, detrações e fofocas. Era preciso muita coragem e esperteza para visitá-los nas prisões e dar-lhes o Pão da Vida. Em geral, os sacerdotes escolhiam os mais hábeis socialmente - aqueles que pudessem cumprir essa missão sem levantar suspeitas. O único problema é que naquela manhã não havia ninguém que pudesse levar as espécies sagradas aos cristãos encarcerados.  Mas e ele, será que não contava?

- Não, menino. És jovem demais. Não sabes o risco em que estás querendo te meter. Essa missão é muito perigosa. Se te pegam, poderão te fazer muito mal.
- Sim, sou jovem, mas também sou franzino e posso passar despercebido justamente porque não vão desconfiar de mim. Por favor, suplico-vos que me deixe prestar esse obséquio aos meus irmãos prisioneiros. Farei todo o possível para que os pagãos não me peguem.
- Então, está bem - respondeu o sacerdote com um longo suspiro não sem antes hesitar um pouco.
- Toma! Vai depressa e não pares no meio do caminho. Que Deus te abençoe, meu filho - respondeu Sisto, entregando um embrulho de linho a Tarcísio, que o colocou no peito por dentro da túnica, segurando-o externamente com as mãos.

- Chega aí Tarcísio. Agente tava esperando por você pra começar o jogo.
- Hoje não vai dar, Flavius. Estou apressado. Tenho que resolver um problema importante. Fica pra outro dia.
- Ah, qualé! Deixa pra resolver o problema depois. Vamos brincar um pouco.
- Sinto muito, tenho pressa. Hoje não vai dar.
- O manézinho tá apressado pra fazer o quê?
- Ei, o que é que você está escondendo no peito? Deixa a gente ver.
- Me larga, Augustus. Eu preciso ir.
- Então, mostra primeiro o que você está escondendo. Tá correndo o boato que tu anda frequentando as reuniões dos cristãos. De repente você tá escondendo os Mistérios dos Cristãos.
- Eu quero ver os mistérios dos cristãos.
- Eu também.
- Por favor, me deixem passar. Eu preciso ir.
- Virou cristãozinho agora é?
- Pega ele!

“Preciso resistir. Não deixarei que profanem o corpo de Cristo. Que Deus me dê forças. Não hão de me fazer trair a minha missão.” pensou o jovem Tarcísio enquanto se via encurralado por um bando de meninos ensandecidos. Um deles tentava a todo custo tirar suas mãos do peito. Naquele momento seus dedos adquiriam uma resistência extraordinária e ninguém podia fazê-lo largar o tesouro que protegia contra o peito.

Uma rasteira e um tombo no chão pedregoso. Um filete de sangue começou a verter do joelho esquerdo. O suor escorria-lhe pela face e pescoço. Seu coração disparara e sua respiração tornara-se ofegante.

- Levanta, rapaz! Mostra o que você tem aí no peito e agente te deixa em paz.
- Seus malvados! Por que vocês estão fazendo isso comigo? Nunca lhes fiz mal algum.
- Tá com medinho, tá? Manézinho, cristão! Vamos te mostrar quem é que manda por aqui.

Chutes, pontapés, impropérios. De uma hora para outra aqueles moleques com quem brincara tantas vezes tornavam-se terríveis algozes, ávidos para fazê-lo revelar o seu preciosíssimo segredo e quem sabe até mesmo destruí-lo. Não permitiria. Resistiria com todas as forças de fosse capaz. Tinha que se levantar de um pulo e sair correndo o mais rápido possível.
Tentou. Mais um tombo. Desta vez arremessaram-no brutalmente de encontro ao chão. Sua cabeça parecia rachada. Sangue jorrava de sua fronte.  Mais chutes nas pernas e barriga. Suas vestes estavam rasgadas.

- Otário, isso é pra você aprender. Agora vamos ver se você mostra ou não o que tem aí escondido.

Uma força sobre-humana se apossara do menino. Seus músculos se retesavam mais ainda e suas mãos cruzadas sobre o tórax pareciam como que de titânio.
Encurvou-se como um feto. Sentia dores. Estava com medo.
Um abismo descortinava-se à sua frente. Era como se estivesse entre o Céu e a Terra. Um pouco mais e não suportaria. Contudo, sabia que seu Senhor sofrera muito mais no madeiro, e para ir ao seu encontro faria qualquer coisa.
Um chute violento nas costas e seus pulmões pareciam prestes a estourar. Gritos frenéticos, xingamentos e pedradas se fizeram ouvir em toda a Via Ápia.

- O que está acontecendo por aqui? - indagou a voz grossa e retumbante de um soldado romano.

Dois meninos puxados para o lado; olhos arregalados de espanto e medo se voltaram para trás. Era hora de bater em retirada para o bando de malfeitores.
Quadratus, uma montanha de músculos em forma humana, ajoelha-se e pega em seus braços o jovem adolescente quase sem vida. Olha-o com ternura e exclama: “Rapaz, o que fizeram com você?!”
Tarcísio mal podia falar, apenas aponta para o peito. Sabe que pode confiar em Quadratus, que há pouco se fizera cristão. Sua face pálida não reflete ódio nem revolta, apenas serenidade e entrega.

- Vou levá-lo para um lugar seguro, amigo. Lá cuidaremos de você.

Virgínia, uma pagã de meia idade que a tudo assistira de longe enquanto caminhava em direção ao mercado, aproxima-se do soldado com o menino nos braços, olha para Tarcísio com espanto e exclama:
- Minha nossa! Pobrezinho! Acho que eu o conheço de algum lugar.

Tarcísio abre os olhos, vira o pescoço lentamente para fitá-la e entrega-lhe um cândido sorriso.
Aquele olhar. Um único olhar. Nunca na vida aquela mulher vira algo igual. Seus lindos olhos azuis eram uma janela para sua alma pura e cheia de fé. Pureza e fé! Era um cristão! E o soldado que o carregava também! Isso restava claríssimo!
Em um átimo Virgínia se dá conta do porquê de sua ânsia de cruzar a Via Ápia justamente naquela hora. O Deus dos cristãos existia! O olhar do menino lhe revelara essa verdade de maneira inexplicável. Daquele momento em diante se faria cristã também.

Chegando ao esconderijo com o corpo do menino nos braços, Quadratus olha para o sumo sacerdote. Pela expressão profundamente consternada do soldado, ele compreende imediatamente o que acabara de acontecer. Toca então as mãos de Tarcísio e estas se abrem suavemente para que ele possa guardar as hóstias consagradas.
- Menino valente! Que estejas na Paz do Senhor. Requiescat in pace - sussurrou Sisto profundamente consternado.


Algumas fontes dão conta de que atualmente os restos mortais de São Tarcísio repousam na Basílica de San Silvestro in Capite, em Roma.
As poucas informações que temos sobre São Tarcísio remontam à época do Papa Dâmaso I, que mandou preparar uma epígrafe em seu túmulo, na qual o compara a Santo Estêvão. Acredita-se que o jovem mártir tenha morrido por volta do ano 258.
Sua festa é celebrada no dia 15 de agosto de cada ano. São Tarcísio é patrono dos coroinhas.
Como esta data é reservada pelo calendário hagiológico à solenidade da Assunção de Maria, São Tarcísio não é mencionado neste calendário, apenas no Martirológio Romano.
Peçamos a esse bravo menino mártir que interceda por cada um de nós, a fim de que nosso amor a Jesus Sacramentado cresça a cada dia.

Fonte: Frates in unum.

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