quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Jesus Cristo 31

Com sua 49ª Catequese sobre Jesus Cristo o Papa São João Paulo II concluiu a seção sobre a formulação dogmática da fé em Cristo e com ela a 1ª parte das suas meditações, centrada na Pessoa de Jesus.

Confira a postagem introdutória, com os links para todas as Catequeses, clicando aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO

49. As definições cristológicas dos Concílios e a fé da Igreja de hoje
João Paulo II - 13 de abril de 1988

1. Nas últimas Catequeses, resumindo a doutrina cristológica dos Concílios Ecumênicos e dos Padres, pudemos perceber do esforço realizado pela mente humana para penetrar no mistério do homem-Deus, e ler n’Ele as verdades da natureza humana e da natureza divina, da sua dualidade e da sua união na pessoa do Verbo, das propriedades e faculdades da natureza humana e da sua perfeita harmonização e subordinação à hegemonia do “Eu” divino. Essa leitura profunda foi traduzida pelos Concílios com conceitos e termos tomados da linguagem corrente, que era a expressão natural do modo comum de conhecer e de raciocinar, anterior à conceitualização realizada por qualquer escola filosófica ou teológica.

A busca, a reflexão e a tentativa de aperfeiçoar a forma de expressão não faltaram aos Padres e não faltarão nos sucessivos séculos da Igreja, ao longo dos quais os conceitos e termos utilizados na cristologia - especialmente o de “pessoa” - receberam aprofundamentos e precisões de valor incalculável também para o progresso do pensamento humano. Mas o seu significado na aplicação à verdade revelada não estava vinculado ou condicionado por autores ou escolas particulares: era aquele que se podia captar na linguagem ordinário dos entendidos e também dos não entendidos de qualquer tempo, como se pode perceber da análise das definições formuladas nesses termos.

Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965)

2. É compreensível que em tempos mais recentes, querendo traduzir os dados revelados em uma linguagem que correspondesse a novas concepções filosóficas ou científicas, alguns encontraram certa dificuldade na hora de empregar e aceitar aquela terminologia antiga, especialmente a distinção entre natureza e pessoa, que é fundamental tanto na cristologia tradicional como na teologia da Trindade. Particularmente quem deseja se inspirar nas posições das diversas escolas modernas, que insistem em uma filosofia da linguagem e em uma hermenêutica dependente dos pressupostos do relativismo, subjetivismo, existencialismo, estruturalismo, etc., será levado a menosprezar ou mesmo a rejeitar os antigos conceitos e termos por considerá-los imbuídos de escolasticismo, formalismo, estaticismo, a-historicidade, etc., e, por conseguinte, inadequados para expressar e comunicar hoje o mistério do Cristo vivo.

3. Mas o que aconteceu então? Em primeiro lugar, que alguns se tornaram prisioneiros de uma nova forma de escolasticismo, induzidos por noções e terminologias vinculadas às novas correntes de pensamento filosófico e científico, sem preocupar-se por um autêntico confronto com a forma de expressão do senso comum e, podemos dizer, da inteligência universal, que permanece indispensável também hoje para comunicar-se uns com os outros no pensamento e na vida. Em segundo lugar, como era previsível, se passou da crise aberta sobre a questão da linguagem à relativização do dogma niceno e calcedoniano, considerado como uma simples tentativa de leitura histórica, datada, superada e que não poderia mais ser proposta à inteligência moderna. Esta passagem foi e continua sendo muita arriscada e pode conduzir a posturas dificilmente conciliáveis com os dados da Revelação.

4. Nessa nova linguagem, com efeito, se chegou a falar da existência de uma “pessoa humana” em Jesus Cristo, baseando-se na concepção fenomenológica da personalidade, dada por um conjunto de momentos expressivos da consciência e da liberdade, sem consideração suficiente pelo sujeito ontológico que está na sua origem. Ou então se reduziu a personalidade divina à autoconsciência que Jesus tem do “divino” que há n’Ele, sem entender a Encarnação como assunção da natureza humana por parte de um “Eu” divino transcendente e preexistente. Essas concepções, que refletem também sobre o dogma mariano e, de maneira particular, sobre a maternidade divina de Maria, tão ligada nos Concílios ao dogma cristológico, incluem quase sempre a negação da distinção entre natureza e pessoa, termos que, ao contrário, os Concílios tomaram da linguagem comum e elaboraram teologicamente como chave interpretativa do mistério de Cristo.

5. Esses fatos, que aqui só podemos referir brevemente, nos fazem compreender quão delicado seja o problema da nova linguagem tanto para a teologia como para a catequese, sobretudo quando, partindo da rejeição - cheia de preconceito - de categorias antigas (por exemplo, as apresentadas como “helênicas”), se acaba por sofrer tal dependência das novas categorias - ou das novas palavras - que, em seu nome, se pode chegar a manipular mesmo a substância da verdade revelada.

Isso não significa que não se possa ou não se deva continuar a investigar o mistério do Verbo Encarnado e a “pesquisar a maneira mais adequada de comunicar a doutrina cristã”, segundo as normas e o espírito do Concílio Vaticano II, o qual, com João XXIII, enfatiza bem que “uma coisa é o próprio depósito da fé ou as verdades, e outra é a maneira pela qual são enunciadas, conservando o mesmo sentido e o mesmo significado” (Gaudium et spes, n. 62; cf. João XXIII, Discurso de abertura do Concílio, 11 de outubro de 1962).

A mentalidade do homem moderno, formada segundo os critérios e os métodos do conhecimento científico, deve ser entendida levando em conta sua tendência à investigação nos distintos campos do saber, mas sem esquecer sua mais profunda aspiração a um “mais além” que supera qualitativamente todas os confins do experimentável e do calculável, assim como as frequentes manifestações da necessidade de uma sabedoria muito mais satisfatória e estimulante do que a que oferece a ciência. Desse modo, essa mentalidade contemporânea não se apresenta de nenhuma maneira impenetrável ao discurso sobre as “razões supremas” da vida e sobre o seu fundamento em Deus. Daqui emerge também a possibilidade de um discurso sério e leal sobre o Cristo dos Evangelhos e da história, formulado consciente do mistério e, portanto, como que “balbuciando”, mas sem renunciar à clareza dos conceitos elaborados com a ajuda do Espírito pelos Concílios e pelos Padres e transmitidos a nós pela Igreja.

6. A esse “depósito” revelado e transmitido deverá permanecer fiel a catequese cristológica, a qual, estudando e apresentando a figura, a palavra, a obra do Cristo dos Evangelhos, poderá enfatizar magnificamente, precisamente nesse conteúdo de verdade e de vida, a afirmação da preexistência eterna do Verbo, o mistério da sua “kénosis” (cf. Fl 2,7), sua predestinação e exaltação, que é o fim verdadeiro de toda a economia da salvação e que engloba com Cristo e em Cristo, homem-Deus, toda a humanidade e, de certo modo, todo o criado.

Essa catequeses deverá presentar a verdade integral do Cristo como Filho e Verbo de Deus na grandeza da Trindade (outro fundamental dogma cristão), que se encarna para nossa salvação e realiza assim a máxima união pensável e possível entre a criatura e o Criador, no ser humano e em todo o universo.

Tal catequese não poderá descuidar, além disso, a verdade de Cristo que tem sua própria realidade ontológica de humanidade pertencente à Pessoa divina, mas também uma íntima consciência da sua divindade, da unidade entre a sua humanidade e a sua divindade e da missão salvífica que, como homem, lhe foi confiada.

Aparecerá assim a verdade pela qual em Jesus de Nazaré, em sua experiência e conhecimento interior, se dá a mais elevada realização da “personalidade” também no seu valor de “sensus sui”, de autoconsciência como fundamento e centro vital de toda atividade interior e exterior, mas realizada na esfera infinitamente superior da Pessoa divina do Filho.

Aparecerá igualmente a verdade do Cristo que pertence à história como um personagem e um fato particular - “nascido de mulher, nascido sujeito à Lei” (Gl 4,4), mas que concretiza em si o valor universal da humanidade pensada e criada no “eterno conselho” de Deus; a verdade do Cristo como realização total do projeto eterno que se traduz na “aliança” e no “reino” - de Deus e do homem - que conhecemos pela profecia e pela história bíblica; a verdade do Cristo, Logos eterno, luz e razão de todas as coisas (cf. Jo 1,4.9ss), que se encarna e se faz presente no meio dos homens e das coisas, no coração da história, para ser - segundo o desígnio de Deus Pai - a cabeça ontológica do universo, o Redentor e Salvador de todos os homens, o Restaurador que recapitula todas as coisas, do céu e da terra (cf. Ef 1,10).

7. Bem longe das tentações de qualquer forma de monismo materialista ou panlógico, uma nova reflexão sobre este mistério de Deus que assume a humanidade para integrá-la, salvá-la e glorificá-la na comunhão conclusiva da sua glória, não perde nada do seu fascínio e permite saborear sua verdade e beleza profundas, se, desenvolvida e explicada no âmbito da cristologia dos Concílios e da Igreja, é levada também a novas expressões teológicas, filosóficas e artísticas (cf. Gaudium et spes, n. 62), nas quais o espírito humano possa haurir cada vez melhor daquilo que brota do abismo infinito da Revelação divina.

João Paulo II em 1988

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (13 de abril de 1988). 

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