Como de costume em nosso blog, publicamos aqui as homilias do Patriarca de Lisboa (Portugal), Cardeal Manuel José Macário do Nascimento Clemente, proferidas na Sé de Lisboa durante as celebrações da Semana Santa, neste ano de 2022 de 10 a 17 de abril:
Homilia no Domingo de Ramos da Paixão do Senhor
O caminho aberto na humildade de Cristo
Sé de Lisboa, 10 de abril de 2022
Caríssimos,
Iniciamos esta Semana Maior de
2022 num tempo difícil para a humanidade, em que os males sempre temidos da
peste, da fome e da guerra se traduzem de novo em muitas situações, mais
próximas ou mais distantes, mas que são irrecusavelmente nossas, na terra comum
de todos.
Principalmente nesta semana,
queremos avivar a consciência de que esses males tiveram e continuam a ter
resposta da parte de Deus. Sim, de Deus que os compartilha e salva na Paixão, Morte
e Ressurreição de Cristo. Batizados em Cristo, continuaremos a ser essa
resposta, no mesmo Espírito e em idêntica comunhão com todos. Deus responde
como companhia e fonte inesgotável de vida, agora para depois.
Convém sempre, em cada
celebração, guardar as palavras da “oração coleta”, que geralmente acentuam o
seu sentido particular. A de hoje deu à Paixão de Cristo um significado talvez
surpreendente. Começava assim: «Deus eterno e onipotente, que, para dar aos
homens um exemplo de humildade, quisestes que o nosso Salvador se fizesse homem
e padecesse o suplício da cruz...».
Prestemos toda a atenção a
este passo: a Encarnação e a Cruz são o exemplo de humildade que Deus eterno e
onipotente nos quis dar em Jesus. Modo de dizer que a onipotência divina não se
manifesta como qualquer poder mundano, mas precisamente ao contrário, como
entrega de si próprio, acompanhando-nos na fragilidade humana e mesmo na dor
mais aguda e imerecida, como foi a de Cristo, que assumiu a de tantos.
Precisamente no “húmus” da
nossa humanidade comum. Reparemos como humanidade e humildade se aproximam na
grafia e no significado a não perder... Só a onipotência do amor divino
conseguiria tanto, salvando-nos a todos com humildade vitoriosa.
E a oração continuava, pedindo que a mesma humildade que venceu em Jesus nos
assegure a nós a sua vitória pascal. Uma humildade que vence no contraste com
os poderes impositivos daquela ou desta altura, esses sim passageiros e
derrotados como acabam por ser: «Fazei que sigamos os ensinamentos da sua Paixão,
para tomarmos parte na glória da sua Ressurreição».
Trata-se de uma Via-Sacra a
percorrer com Jesus, como Ele a percorreu conosco e continua a percorrer
nos mais árduos caminhos das vidas individuais e coletivas. Se o fizermos,
chegaremos aonde Ele chegou e alargaremos no mundo a sua Páscoa. É o que
celebramos agora e nos incumbe sempre.
Deus salva porque nos
acompanha onde mais precisamos ser acompanhados. Pouco mais de trinta anos da
vida de Jesus neste mundo, mostram-nos como foi e como continua a ser. Como
naquela altura aconteceu, nascido pobre em Belém, refugiado a seguir no Egito,
humilde e trabalhador na oficina de Nazaré, calcorreando depois as margens do
lago e os caminhos da Galileia à Judeia, sem evitar sequer os da Samaria, ou
saindo de Israel para terra de gentios: eis Deus humanado e convivente, até na
própria morte, a que não se eximiu por fim.
Assim continua a ser, agora e
ressuscitado, multiplicando os sinais da sua presença no mundo, também e
sobretudo junto dos mais pobres de todas as pobrezas, ou oprimidos de todas as
opressões. Sinais da sua presença são os que, movidos pelo Espírito que nos
deixou, lhe reproduzem os gestos salvadores e ecoam a sua voz consoladora,
daqui até à Ucrânia e da Ucrânia a todos os cenários de muitos dramas e
tragédias que não faltam por esse mundo além, ou aquém.
Muito significativo é o fato
de entre tantos deuses e imperadores daquela altura, com o seu cortejo de
pompas e opressões, os primeiros cristãos terem descoberto e cantado o inaudito
contraste da humildade de Cristo. Ouvimo-lo há pouco, num hino bem precoce, que
havemos de retomar frequentemente, para que ele ressoe nas nossas vidas e
atitudes. «Cristo Jesus, que era de condição divina, não se valeu da sua
igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si próprio. (...) Por isso Deus o
exaltou e lhe deu o nome que está acima de todo o nome» (cf. Fl 2,6-11). Foi este o caminho da Páscoa de Cristo e é o que
nos dispomos a seguir também.
Foi este o caminho da humildade
de Deus e só este pode ser o nosso, para que a Páscoa continue a acontecer.
Deus é sempre humilde e assim se diz em Cristo, sua Palavra encarnada. Assim
como na criação que nos mantém vivos Deus é tão discreto que corremos o risco
de não O perceber, assim na redenção com que nos recria em Cristo, tudo é
humilde porque tudo é dom. Dom que não se impõe mas se oferece, para que todos
tenham vida e vida em abundância - e apenas isto procurando.
Tiveram de aprendê-lo, os
primeiros seguidores de Jesus. Tiveram de o descobrir como servo, para assim o
adorar como Senhor. E Senhor porque capaz de se entregar e de vencer
precisamente desse modo. Ouvimo-lo há pouco no Evangelho: «Levantou-se também
entre eles uma questão: qual deles se devia considerar o maior? Disse-lhes
Jesus: (...) O maior entre vós seja como o menor, e aquele que manda seja como
quem serve. Pois quem é o maior: o que está à mesa ou o que serve? Ora, Eu
estou no meio de vós como aquele que serve» (cf. Lc 22,24-27).
Tiveram de aceitá-lo assim e
de imitá-lo depois. Um depois que dura até agora e que nos propomos retomar
nesta Páscoa. Somos Igreja de Cristo no mundo, quando lhe retomamos a feição,
mais conforme e verdadeira. Para que Deus nos reconheça como seus e a Páscoa de
Cristo se difunda.
E se difunda agora, quando
entre nós tantos refugiados anseiam pela recuperação da sua terra e pela vida
dos seus. Os gestos de comunhão espiritual e solidariedade concreta que se têm
somado nestas trágicas semanas, mostram o melhor do coração humano e reabrem o
futuro que a guerra quis fechar. São prenúncios daquela vida que ressuscitou
dum sepulcro que parecia fechado. Fulguram a Páscoa que Cristo garante. Na
humildade e no serviço, vivamos uma semana realmente “maior”.
Homilia na Missa Crismal
Com a pressa de alma que levou Maria
Sé de Lisboa, 14 de abril de 2022
Caríssimos,
Chegamos a esta Semana Santa
em condições muito especiais e exigentes, a sair cautelosamente de uma pandemia
que deixará sequelas, tanto pela saudade dos que partiram como em quem mais
sofreu com o isolamento e outros condicionalismos graves, especialmente os mais
novos ou os mais idosos e sós. Mas saímos também com a gratidão devida a
quantos, no setor público, privado ou social, tanto fizeram para responder às
necessidades que surgiram.
Foi realmente muito o que se
fez e grande a solidariedade demonstrada. Em Missa Crismal como estamos, refiro
com gratidão tudo quanto foi feito pelas comunidades cristãs e os seus
pastores, conseguindo superar com empenho e criatividade os limites do
isolamento e das restrições sanitárias. Creio mesmo que algo do que se
conseguiu permanecerá na nossa prática pastoral, para chegar a quem não venha
ou não possa vir.
A isto acresceu a guerra na Ucrânia, com tudo o que de muito mau tem trazido à
sua população, ainda residente ou já refugiada em grande número. Também aqui
não têm faltado exemplos de grande solidariedade, acolhimento de quem chega e
ajuda a quem permanece na sua terra devastada. Continuaremos disponíveis e
próximos, colaborando com as entidades oficiais e participando em iniciativas
seguras, especialmente no âmbito da Cáritas Portuguesa e da nossa Cáritas
Diocesana, para maximizar os recursos.
Assim também para tudo o mais que a caridade e a justiça nos requeiram. Como no
que se refere à proteção de menores no espaço eclesial, a que hoje estamos
muito especialmente atentos. Aqui estamos, com plena consciência e compromisso,
para reconhecer e corrigir erros passados, pedir perdão por eles e prevenir
convenientemente o futuro.
Como ouvimos, a unção de Jesus
manifestou-o como boa nova para os pobres, redenção para os cativos, luz para
os cegos e libertação para os oprimidos, proclamando em tudo isto e no sentido
mais alargado de cada um desses itens o ano da graça do Senhor.
Esta unção abrange todos os batizados em Cristo, como ouviremos daqui a pouco
no Prefácio, louvando a Deus Pai nos seguintes termos: «Pela unção do Espírito
Santo constituístes o vosso Filho Unigênito pontífice da nova e eterna aliança,
e no vosso amor infinito quisestes perpetuar na Igreja o seu único sacerdócio.
Ele revestiu do sacerdócio real todo o seu povo santo...».
Havia no povo antigo
sacerdotes para oferecerem a Deus preces e imolações pelo povo. E houve também
reis, que deviam lembrar a todos que só Deus era o seu verdadeiro Senhor. Assim
devia ter sido sempre, como em Jesus acabou por ser finalmente.
Em Jesus Cristo, sacerdócio e
realeza unificam-se na constante entrega ao Pai e no pleno cumprimento da sua
vontade. Assim mesmo nos ensinou a rezar e a agir, quer ensinando o Pai-nosso
quer resumindo a sua doutrina no amor de Deus e do próximo, unindo a oração
filial e o amor fraterno em uma coisa só.
Entretanto e diretamente para
vós, caríssimos irmãos sacerdotes, o Prefácio continua deste modo, sempre
dirigido a Deus Pai: «[O vosso Filho Unigênito] de entre os seus irmãos,
escolheu homens que, mediante a imposição das mãos, participam do seu
ministério sagrado». Detenhamo-nos um pouco nesta frase, que refere a nossa
eleição pessoal por Cristo e a nossa ordenação sacramental para a Igreja.
Isto vos define aqui, a vós
que fostes chamados ao sacerdócio ministerial. Não foi escolha vossa, mas de
Cristo, que vos chegou pelo modo que cada um guarda na sua memória e no seu
coração. E tal sucede para que todo o Povo de Deus faça hoje a experiência
original da Igreja, quando na vida concreta do seu Fundador aprendia a
retribuir-se filialmente a Deus Pai e a viver fraternalmente com todos.
Foi no rosto, nas palavras e
nos gestos de Jesus Cristo, Verbo de Deus encarnado, que conheceram este
sacerdócio novo; e é pelo rosto, palavras e gestos dos que Ele escolheu e uniu
sacramentalmente a si que tal continua a acontecer, agora e com cada um de vós.
É esse o mistério que vos garante e é esse o serviço que prestais. É também o
que o Povo de Deus espera fundamentalmente dos seus padres.
Palavras e gestos sacerdotais
de Cristo, que o Prefácio enumera a seguir e preenchem também a vossa vida,
dirigindo-se sempre a Deus Pai: «[Os ministros sagrados] renovam em seu nome o
sacrifício da redenção humana, preparando para os vossos filhos o banquete
pascal; dirigem com amor fraterno o vosso povo santo, alimentam-no com a
palavra e fortalecem-no com os sacramentos».
Na verdade, seja qual for a
missão específica de um padre, tudo se orienta para a celebração do banquete
pascal. De Domingo a Domingo e mesmo em cada dia da semana, tudo se encaminha
para a Santa Missa, na vida do sacerdote e de todo o povo com ele e através
dele. Quando esta orientação se esvanece, tudo o mais declina e a própria
identidade se questiona.
Meditar e rezar a Palavra,
para bem a partilhar em todos os momentos sacramentais, é o primeiro serviço
que devemos aos outros. Não para lhes dizermos palavras meramente nossas, mas
para ecoarmos o que a Jesus ouvimos. Lembremos que foi essa a prioridade dos
primeiros Apóstolos, assim expressa: «Quanto a nós, entregar-nos-emos
assiduamente à oração e ao serviço da palavra» (At 6,4).
Falo da nossa experiência
concreta e da nossa missão sacerdotal propriamente dita. O que as pessoas
esperam de nós é a atualização de quanto ligam ao próprio Cristo, Palavra dita
e feita, precisamente como foi e a Tradição eclesial a guardou. A nossa
teologia é a que Jesus nos transmite da parte de Deus Pai. A nossa oração é a
que siga inteiramente o Pai-nosso. O nosso serviço é o que Jesus fez e ilustrou
em parábolas como a do Bom Samaritano. Quando não transmitimos isso mesmo,
podemos distrair alguma vez, mas acabamos por desiludir tarde ou cedo. Nós
próprios o sentimos e sofremos. É ainda o Prefácio desta Missa a apresentar-nos
assim: «Como verdadeiras testemunhas da fé e da caridade [os ministros
sagrados] comprometem-se generosamente a cumprir a sua missão, prontos, como
Cristo, a dar a vida por Vós [Pai Santo] e pelos homens seus irmãos».
A revitalização sinodal que
prosseguimos com o Papa Francisco - continuando o que procuramos antes com o
nosso Sínodo Diocesano - relança-nos ainda mais, a nós sacerdotes, como homens
da Igreja e para a Igreja. Somo-lo em um serviço próprio que não apropria,
antes reconhece e valoriza o de todos os irmãos e irmãs, na variedade
carismática e ministerial que o Espírito oferece para a missão que é de todos.
Em tempo de profunda transição social e cultural, nos é exigida uma atenção
redobrada aos “sinais dos tempos”, que só podem ser compreendidos e
correspondidos pelo conjunto eclesial na variedade de situações de cada um: nos
diversos grupos etários, vivendo em matrimônio ou celibato consagrado,
ministros ordenados ou laicais, exercendo esta ou aquela profissão...
Pode acontecer que diante da magnitude dos desafios que se enfrentam, rondem
tentações de desistência e mesmo fuga. Bem pelo contrário e em Missa Crismal,
move-nos, isso sim, a certeza de que o Espírito que ungiu a Cristo nos unge
agora a nós e nos levará em frente e, quando preciso, doutro modo. Relembro a
frase com que Chesterton resumia o nosso ressurgimento cíclico, após cada época
de crise: «O cristianismo morreu e renasceu muitas vezes, porque tinha um Deus
que sabia ressuscitar» (O homem eterno, Lisboa, Aletheia, 2009, p. 341).
É o mesmo Deus que nos transporta agora.
Temos diante de nós, em um
horizonte cada vez mais próximo, a Jornada Mundial da Juventude, da qual o Papa
Francisco tanto espera, como momento forte de Evangelho vivo e revitalizador
para a gente nova e para todos. A preparação prossegue e acelera-se, com grande
empenho de um número crescente e motivado de colaboradores, do espaço eclesial
e além dele.
A Jornada há de ser palavra
viva, eco bem audível do que Deus nos diz em Cristo e agora ressoa em tantos
jovens que o querem transmitir a muitos outros. De nós, ministros ordenados,
esperam o apoio que só o Evangelho escutado, proclamado e convivido pode dar.
Não falharemos por eles e por todos. Tomemos esta ocasião como estímulo para
nos renovarmos também nós, na colaboração pastoral que nos pertence.
Nossa Senhora nos transmitirá
a pressa de alma que a levou ao encontro de Isabel, nessa primeiríssima
evangelização que fez!
Homilia na Missa Vespertina da Ceia do Senhor
Até o fim
Sé de Lisboa, 14 de abril de 2022
Caríssimos,
Se ainda procurássemos o
verdadeiro por que desta celebração, creio que não encontraríamos resposta mais
cabal do que a ouvida no começo do Evangelho de há pouco: «Antes da festa da
Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo para o Pai,
Ele, que amara os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim» (Jo 13,1).
Reparemos que não se trata apenas de amar, mas de amar até o fim. Dito de outro
modo, amar verdadeiramente requer entrega total ao bem dos outros, fazendo da
vida uma plena oferta. A vida de Jesus mostra-nos o que tal significa, a sua
cruz realizou-o inteiramente e a Eucaristia oferece-o a cada um de nós.
São Paulo assimilou tão
plenamente esta verdade que a repetiu uma e outra vez nos seus escritos. Como
neste trecho, não hesitando em referir-nos à própria realidade divina, assim
mesmo demonstrada: «Sede, pois, imitadores de Deus, como filhos bem-amados, e
procedei com amor, como também Cristo nos amou e se entregou a Deus por nós
como oferta e sacrifício de agradável odor» (Ef 5,1-2). Sim, como
dirá o Prefácio desta Missa, «Cristo, nosso Senhor, verdadeiro e eterno
sacerdote, oferecendo-se como vítima de salvação, instituiu o sacrifício da
nova aliança e mandou que o celebrássemos em seu nome».
Jesus passou deste mundo para
o Pai, na circunstância precisa que o Sagrado Tríduo relembra e medita, da
traição do discípulo à morte na cruz. Mas de tudo isso, que podia ser apenas
uma grande derrota e um tristíssimo desfecho, Jesus fez oferta de si mesmo por
nós e por todos, inteiramente entregue às mãos de Deus Pai. Mãos que no-lo
devolveram como alimento de vida eterna, essa mesma que preenche e salva a quem
verdadeiramente a receba.
A simpatia humana é algo de
natural e espontâneo, na nossa humanidade comum. Manifesta-se nas vidas
que geram vidas, nos cuidados que se prestam e na atenção ao bem do próximo.
Mas também sentimos que não chega, quando falta quem estava, o horizonte se ensombra,
ou o mal parece vencer.
Significa isto que os melhores
sentimentos e vivências não conseguem atingir quanto prometem e o nosso desejo
mais profundo acaba por ficar sem cumprimento, não atingindo o fim que
pretendia. As circunstâncias atuais, que afligem tanta gente por esse mundo além
e aquém, dão lugar a grandes decepções. Na verdade, com tanto bem que se
pratica, tanto contributo da ciência e do engenho humano, tanto sonho e ideal
que nos movem, porque havemos de ficar a meio caminho de nós próprios, ou mesmo
entre os escombros dos melhores propósitos?
Que nos resta então, a nós
mortais? Os discípulos de Jesus celebram hoje um amor que nos amou até o fim e
que desse modo preencheu de vida divina o que a fraqueza humana extinguiria. E
não por fora desta mesma fraqueza, antes sofrendo-a até à morte e morte de cruz
(cf. Fl 2,8). Em tudo foi igual a
nós, no que sofreu, mas sempre com Deus Pai e assim vencendo.
Porque nos amou até o fim do
percurso terreno que lhe truncaram de modo tão injusto e tão cruel, nada ficou
por acompanhar em cada um, no infindo caminho em si aberto. Por isso celebramos
e comungamos a vida que nos deu, na Santíssima Ceia do seu Corpo oferecido e do
seu Sangue derramado.
Sim, caríssimos, se estamos
hoje aqui, celebrando a Missa Vespertina da Ceia do Senhor, é unicamente porque
Jesus nos amou até o fim. Se o não tivesse atingido, também não nos alcançaria
a nós, humanidade de qualquer tempo e lugar, sempre tão longe do que só com Ele
poderá ser. Sabia-o São Paulo, ao resumir a sua vida deste modo: «corro para
ver se o alcanço, já que fui alcançado por Cristo Jesus» (Fl 3,12).
Esta frase pode bem traduzir o dinamismo eucarístico de uma existência cristã
propriamente dita, da gratidão à entrega de si mesmo.
Duas consequências maiores
daqui se tiram. A primeira é que celebrar verdadeiramente a Eucaristia é
acertar a vida no ponto eucarístico a que Cristo chegou e de onde nos chama
agora e a cada um. É entrar na lógica divina que assim se revelou. Em Jesus
Cristo, seu Verbo encarnado, Deus diz-se e comprova-se como vida totalmente
oferecida.
Foi este o fim da revelação
divina, para a tomarmos nós como finalidade da nossa vida em Deus. Na sua cruz
Cristo entregou-se às mãos do Pai; na Eucaristia devolvemo-nos com Ele a Quem
nos espera a nós também. Não celebramos muitas Missas, celebramos cada vez
melhor a única de Cristo, sacramentalmente reiterada, para que o mesmo propósito
se realize até ao fim.
A outra consequência
necessária é a que Pedro aprendeu no lava-pés, como há pouco ouvimos, dando-lhe
o sentido que aprenderia depois: «Senhor, então não somente os pés, mas também
as mãos e a cabeça» (Jo 13,9). Não se
tratava de limpeza exterior e fácil de conseguir. Trata-se da renovação inteira
que só em Cristo se alcança. Em Cristo e precisamente no seu amor comprovado
“até ao fim”, refazendo-nos com a sua vida entregue, convertendo toda a boa
vontade humana na absoluta caridade divina.
Nenhum de nós se abeire da
Eucaristia para continuar como está ou se garantir como deseja de si e só para
si. Tudo isso seria muito pouco e mesmo ingratidão. A Eucaristia é a entrega
total de Cristo pela totalidade que havemos de atingir com Ele, para glória de
Deus e bem dos outros. Tudo nela é sacramento e sinal da Ressurreição que só
desse modo nos chega, pois com Cristo nos oferecemos a Deus e com Cristo nos
devolvemos a todos, ampliando a Missa em missão.
A Eucaristia é a memória viva
e vivificante da oferta que Jesus nos fez de si mesmo e nunca pode ser menos do
que isso, para ser autêntica e salutar. Lembrou-o também São Paulo: «Na
verdade, todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes deste cálice,
anunciareis a morte do Senhor, até que Ele venha» (1Cor 11,26).
Vivemos de uma vida
entregue, comunguemo-la inteiramente gratos e manifestemo-la em correspondência
total. Não fiquemos a meio do caminho que Ele quer percorrer, conosco e em nós,
até ao fim!
Homilia na Celebração da Paixão do Senhor
A resposta de Deus na cruz de Cristo
Sé de Lisboa, 14 de abril de 2022
A sair lentamente de uma
pandemia imprevista, lembrando os que ela vitimou e confrontados com uma
devastadora guerra na Europa, a juntar-se às que persistem em outras latitudes,
é caso para perguntar por que estamos hoje aqui e a recordar algo acontecido já
tão longe no tempo e no espaço, como foi a Paixão e Morte de Jesus de Nazaré...
A resposta imediata é uma só: Estamos aqui porque o reconhecemos como Cristo,
ou seja, o Messias tão esperado pelo povo bíblico e ainda hoje por quem não o
conheça. Messias ou Cristo significa ungido pelo Espírito Divino para nos
libertar de todos os cativeiros do corpo e da alma. Assim o sentimos e
confessamos nós. É o que significa estarmos aqui e a revelação do seu porquê.
Reconhecemo-lo, nós e para os
outros, por graça de Deus. Não como chefe vitorioso à maneira das efêmeras
vitórias deste mundo, mas com o rosto do servo de Yahweh, como ouvimos há
pouco: «Ele foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa
das nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva: pelas suas
chagas fomos curados» (Is 53,5).
Salvou-nos dando a vida por todos e não a tirando a ninguém.
O seu percurso terreno foi
como sabemos e a sua Paixão foi como acabamos de ouvir. Nada que aparentemente
o singularizasse, desde o pequeno perímetro de Nazaré da Galileia, entre a
oficina do trabalho que fazia e a sinagoga do culto que prestava, não faltando
a um nem a outro. Alguma notícia depois, da estada em Cafarnaum à passagem por
outras terras. Falava-se de curas e conversões por Ele realizadas, que
indiciavam ser o Messias há muito esperado, embora Ele pedisse discrição a esse
respeito.
Na sua última subida a
Jerusalém, começaram por aclamá-lo com “Hosanas ao Filho de Davi”, mas daí a
dias foi preso, torturado e morto, pelo triste conluio de alguns religiosos e
políticos e entre os gritos da turbamulta. Crucificaram-no por fim e assim
morreu pouco depois, suplicando o perdão divino para os seus algozes. Mas,
ainda aí, parecia mais um condenado entre outros que o ladeavam...
Perguntemo-nos então e de novo
sobre o por que de estarmos aqui, tantos séculos passados. Ou melhor, como se
tanto tempo passado não conseguisse tirar-nos de ao pé da cruz.
Esta mesma pergunta é já resposta, pois significa admiração - palavra próxima
de milagre - e uma admiração única pela atração que sentimos em redor de um
crucificado, algo que por si mesmo não nos atrairia jamais, muito pelo
contrário.
Cumpre-se assim, hoje e aqui,
o que Ele próprio predissera: «Eu, quando for erguido da terra - precisamente
na cruz - atrairei todos a mim» (Jo 12,32). Deixemos que esta
atração se imponha agora e ainda mais ao nosso espírito. Coincidamos com o que
sentiram os poucos que permaneciam junto daquela cruz levantada, os primeiros a
entrever que toda a tragédia humana se concentrava ali e assim mesmo encontrava
salvação, porque partilhada pelo próprio Deus.
Tragédia partilhada pelo
próprio Deus... Assim continua a ser, como a única esperança que apesar de tudo
se entreabre. Como nestas palavras de há poucos dias, proferidas por um
sacerdote ucraniano em uma igreja de Bucha, entre ruínas e cadáveres: «Só Deus
nos deu força para aguentar este inferno. Só Deus me dá força para contar o que
aqui vi. (...) Aqui, nestas três valas, foram deixados homens, mulheres e
crianças, muitas crianças, algumas de colo. Estão aqui centenas de pessoas.
Como é possível tanto mal? Como é possível tanta maldade? Meu Deus, meu Deus,
ajuda-nos, dá-nos força» (Público, 5 de abril, p. 2).
Estavam junto à cruz de Jesus
sua Mãe, a irmã de sua Mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria Madalena. Duas ou
três pessoas de família e uma das discípulas que o tinham seguido. Também um
discípulo especialmente referido, que confiou a sua Mãe, pedindo-lhe que a
guardasse depois. Eram poucos, mas estavam por muitos mais até hoje, como somos
nós, também discípulos, também confiados à sua Mãe e guardando-a na devoção
agradecida. Nascia ali a Igreja e assim se há de manter, em redor da cruz e vivendo
daquela vida oferecida, como Deus Pai a devolveu. Só por isso estamos aqui,
numa razão bastante e maior do que nós, pois só a partir dela nos compreendemos
agora, para testemunhá-la em toda a parte.
Importa perceber que a missão
da Igreja se alarga com os braços da cruz. Braços que chegam até nós, e por nós
hão de chegar aos outros. Não como mero emblema de naus de antanho ou de
condecorações de agora. Mas como vidas salvas na que Cristo ali nos deu,
entregando-nos consigo a Deus Pai e devolvidas pelo Pai a quem nos espera.
O Espírito com que tudo isto acontece manifesta-se hoje em cada vida entregue
ao bem dos outros. E pode acontecer assim porque na cruz do Gólgota a
humanidade atingiu em Cristo o ponto a partir do qual tudo verdadeiramente se renova.
Traduzindo a antiga frase e
assinalando a convicção duradoura, “a cruz permanece enquanto o mundo se
revolve”. Ali, onde «inclinando a cabeça, expirou». Expirou, repartindo conosco
o mesmo Alento que o movia, para reanimarmos agora tanto desalento que não
falta. Aí mesmo, onde a cruz do mundo se apresenta em fomes, pestes e guerras
persistentes, Cristo está presente, tomando para si o que nos dói e contando
conosco para se aproximar de todos, em cada momento e situação. Por isso
estavam os primeiros ao pé da sua cruz e continuamos nós onde ela se apresenta
hoje em toda a dor do mundo.
Sim, entre familiares e amigos
que sofram no corpo ou no espírito, como em quem não conhecemos e igualmente
sofra. Sim, em quem procure casa, sustento, saúde e educação para si e para os
seus. Sim, em quem precise de apoio para prosseguir a gravidez e salvaguardar a
vida que transporta em si, ou em quem requer companhia e cuidados para não
desistir de viver. Sim, em quem tenha de fugir da sua terra, da Ucrânia a
tantas outras paragens assoladas pela guerra e a devastação. Sim, em
solidariedade plena com quantos sofrem perseguição pelo fato de serem cristãos
ou quererem aderir a Cristo: Em todos estes casos, na sofrida concretização de
cada um, alargam-se os braços da mesma cruz e encontra-se o mesmo Cristo, que
nela nos espera em tantos rostos. E assim mesmo nos salva, quando a
correspondência é perfeita.
Por isso estamos aqui, na
única razão do atuar divino, como Jesus a revelou um dia: «Tanto amou Deus o
mundo, que lhe entregou o seu Filho Unigênito, a fim de que todo o que crê nele
não se perca, mas tenha a vida eterna» (Jo 3,16).
Acolhamos a resposta de
Deus na cruz de Jesus Cristo e convertamo-nos de vez ao amor que nos salva.
Homilia na Vigília Pascal na Noite Santa
Não nos falta Cristo, não faltemos nós!
Sé de Lisboa, 14 de abril de 2022
Caríssimos,
Celebrando a Vigília Pascal e
rememorando tudo quanto o texto sagrado nos trouxe, da criação à nova criação
de todas as coisas em Cristo, fazemos muito mais do que marcar uma data, ainda
que sobremaneira importante.
Importante para nós, que aqui
a podemos celebrar em paz; e não menos importante para os que a vivem entre a
aflição da guerra, da Ucrânia a outros lugares em que a humanidade apesar de
tudo sobrevive. Sobrevivência que a vitória de Cristo sobre a morte assinala e
garante. Com eles estamos em oração, somando o nosso querer ao do próprio Deus
da paz. Com eles permaneceremos, até que a guerra acabe e ainda depois.
Na verdade, estamos na fonte de uma nova vida que nos faz reviver a nós - e por
nós certamente a muitos mais, como pode e deve acontecer. A Páscoa é “passagem”
de Deus por nós e passagem de tudo para Deus, que, Ele sim, é finalmente a
nossa Terra Prometida, convivência eterna e comunhão perfeita.
É também surpresa,
circunstanciada e total. Circunstanciada, como ouvimos, naquele túmulo vazio
que encheu de espanto quem o encontrou assim. Total, sobretudo porque nesse
nada do que estava se assinalou o tudo que nos preenche agora: a vida
ressuscitada de Cristo, que nos ressuscita também. São verdades que dizemos e
cantamos com as palavras que a Liturgia nos oferece e sobretudo certezas com
que Deus nos refaz.
A conotação batismal desta
Vigília significa isso mesmo, com a Páscoa de Cristo a renovar-nos a nós. Assim
o seguimos no percurso que fez, encontrando-o também na cruz deste mundo, como
ela subsiste no drama da vida, nossa e dos outros. Aí mesmo encontramos a
Cristo, para o seguirmos até ao fim.
Fim que pareceu quase nada
naquele túmulo vazio e afinal foi tudo na vida que dali brotou. Porque
totalmente entregue foi-nos inteiramente devolvida, como a sentimos em nós e a
celebramos sempre, como se lá estivéssemos, como na verdade estamos.
Diante do túmulo vazio,
concluamos que ressuscita com Cristo em Deus quem com Cristo se esvazia de si,
para ser inteiramente de Deus como filho; e inteiramente para os outros, como
verdadeiro irmão.
A tal nos conduz o Espírito
batismal que perfaz o caminho de Cristo em cada um de nós. Por essa razão
nos chamamos “cristãos”, porque ungidos pelo mesmo Espírito. Trata-se de algo
de substantivo, que nos modifica realmente por dentro, e não de adjetivo
ocasional e exterior. Basta de “cristianismos” pretextuais e meramente
decorativos, que tanto contrariam a causa do Evangelho!
Vida ressuscitada é vida que
se esvazia de si, para ser preenchida pela caridade divina e assim mesmo se
eternizar também, porque só a caridade nunca acabará. Foi assim com Jesus, em
todo o seu percurso humano. Se pôde dizer um dia: «Eu o Pai somos um só» (Jo 10,30), foi porque nada retinha de si
e nada o movia que não fosse a vontade de Deus Pai, que inteiramente assumia
como também sua.
Foi, nos trinta e poucos anos
que viveu na terra, o que eternamente é em Deus: uma vida inteiramente recebida
e inteiramente retribuída. Assim o confessamos no Credo: «Deus de Deus, Luz da
Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro». O Espírito que assim o movia é o que
nos oferece no Batismo, para o sermos igualmente, divinizados e eternos em
Deus. Deste modo foi absolutamente para todos, porque a vontade de Deus Pai é a
salvação de cada um, como a atuação de Jesus sempre demonstrou. E como há de
prosseguir através de quantos recebem o seu Espírito.
É este e só este o critério da
santidade. Homens e mulheres de vários tempos e condições, crianças, adultos e
anciãos que fossem, são venerados nos altares onde subiram porque antes
desceram ao mais chão e comezinho da vida dos outros, nas variadas formas que a
dedicação encontra para servir quem precisa. Esvaziados de si, como o túmulo de
Cristo estava então, reviveram com Ele na caridade divina.
Tudo isto e melhor dito
ouvimo-lo há pouco a São Paulo, como escreveu aos cristãos de Roma, naquele
primeiríssimo tempo: «Todos nós que fomos batizados em Jesus Cristo fomos
batizados na sua morte. Fomos sepultados com Ele pelo Batismo na sua morte,
para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos pela glória do Pai, também
nós vivamos uma vida nova» (Rm 6,4).
E não é menos do que isto o
que lembraremos daqui a pouco, na renovação das promessas batismais, quando
“renunciarmos ao pecado, para vivermos na liberdade dos filhos de Deus”. O
pecado é o egoísmo que nos retém em nós; a liberdade dos filhos de Deus é a que
Cristo partilha com quem realmente viva de Deus para os outros e com os outros
em Deus.
Infelizmente, é certo que o
mundo em que vivemos e em que muitos a custo sobrevivem apresenta-se demais
como sepulcro fechado, como de fato assim é por tanta morte, destruição e
escombro acumulado, por guerras e outros males que não faltam. Também em muitas
vidas impedidas de nascer e em outras que desesperam de viver. Também em muitas
solidões e abandonos, que contrariam a verdade inquestionável de que “viver é
conviver”.
Nestas e em outras situações é de sepulcros fechados que se trata e com pesada
pedra a bloqueá-los. Nesta Vigília, porém, clareada numa intensa luz pascal, o
sepulcro vazio já proclama a vitória da vida sobre a morte, quando a própria
morte se transformar em vida, pela inteira caridade que a preencha. Assim com
Cristo - e por Cristo em nós e por nós onde chegarmos.
O Evangelho dizia-nos há pouco
que, vendo o túmulo vazio e apenas as ligaduras que restavam, «Pedro voltou
para casa admirado com o que tinha sucedido» (Lc 24,12). Também nós, que sabemos já o que o Apóstolo ainda não
sabia em tal momento, não perdemos decerto a admiração por tudo o que a Páscoa
nos oferece na inesgotável novidade da vitória de Cristo sobre a morte.
Por isso também voltaremos
admirados para casa. E admiraremos muitos mais, quando a nossa própria vida
for, em Cristo, geradora de vida para os outros, sobretudo onde houver maior
urgência em que aconteça. Não nos falta Cristo, não faltemos nós!
Homilia no Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor
Para entender finalmente a Escritura
Sé de Lisboa, 17 de abril de 2022
Ouvimos há pouco Maria
Madalena: «Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram...» (Jo 20,2). Pois bem, nós estamos aqui
neste dia inteiramente pascal porque sabemos onde Ele está. Como direis daqui a
pouco: «Ele está no meio de nós!».
Aliás, também a discípula o
soube e logo ali bem perto, quando Ele a chamou pelo nome. E depois os
discípulos, quando nesse primeiro Domingo Jesus não precisou que lhe abrissem a
porta da sala onde estavam para se apresentar no meio deles. E, daí até hoje, é
a mesma presença que reconhecemos, preenchendo todo o espaço e todo o tempo:
«Ele está no meio de nós!». E dizemo-lo com uma certeza surpreendente, que
antecede tudo mais, como evidência que se impõe e o tempo não dilui.
Sim, poderei dizer por todos
vós, que a presença de Cristo não é apenas memória do que disse e fez, como
desde há dois milênios é transmitida. Não pensamos n’Ele como em mais uma
figura do passado, memorável que fosse por algum feito realizado. Guardamos
certamente essas figuras e o seu legado, reconhecendo nelas o melhor que a
humanidade atingiu e nos legou. Não é pouco e é sobretudo justíssimo que o
façamos.
Mas com Jesus Cristo é
diferente. Diferente porque não é passado só, mas presente hoje, como será
amanhã. Preencheu tão totalmente o pouco espaço-tempo que foi o seu que o
alargou a toda realidade em qualquer ocasião que seja. Sim, ressuscitou naquela
altura precisa, a seguir ao silêncio do sábado. Mas, sobretudo sim, aí
despontou o Domingo que não tem ocaso e o faz contemporâneo de cada um de nós.
Assim o experimentamos e confessamos, como companhia permanente e total. Aliás,
espera-nos agora aonde nos precede, em toda Galileia deste universo em expansão.
A Páscoa de Jesus abrange-nos
como o fez a Saulo na estrada de Damasco, reduzindo tudo o que estava para trás
a expectativa ou indício, finalmente compreendido. Trata-se de uma presença que
relativiza ou inclui todas as outras. A Páscoa de Jesus é um acontecimento
absoluto, que reconfigura tudo o mais.
Com ela “ressuscitaremos para
a luz da vida”, como pediu a oração coleta. Por isso o Batismo que recebemos se
chama também “iluminação”. Dêmo-nos conta de que efetivamente assim é, pois que
o modo como vemos as coisas, próprias e alheias, só à luz da Ressurreição de
Cristo se consegue explicar.
Falei do Batismo e devo
dizê-lo mais devagar. Na antiga definição do sacramento, é obra da graça
divina, mas pressupõe que não haja óbice da nossa parte. Daí a consciência que
requer a quem o recebe e a quem o pede para outrem. Como acontecia com os
primeiros cristãos e ainda sucede agora onde não há liberdade religiosa,
implica risco e compromisso. Não se trata de tingir religiosamente a vida que
se leva ou quer levar; trata-se, isso sim, de mergulhar profundamente na Páscoa
de Cristo, para emergir diferente, com tudo o que ela exige e nos oferece além
de nós.
Há inegavelmente um antes e um
depois de Cristo, tanto na história do mundo como na história pessoal de cada
um. Não é difícil aos historiadores verificarem que assim é, tal a diferença
entre o que as culturas e civilizações tocadas pela mensagem cristã foram
manifestando no modo de entender a dignidade humana, a relação com os outros e
a presença no mundo e o que outras maneiras de ver tinham ou continuam a ter.
Igualmente no que a cada
pessoa diz respeito. Algum de nós pensaria como pensa, sobre si e sobre os
outros, sobre a vida e sobre a morte, sobre o sentido ou não-sentido das
coisas, se não reconhecesse a Jesus como o Cristo e não O sentisse em si e
junto a si, nos múltiplos sinais da sua presença e nas constantes interpelações
que vai fazendo?!
Interpelações constantes e
redobradas agora, em tempo de profundas mudanças na cultura e na civilização,
porque tanto tocam a valorização das coisas como a organização da vida
coletiva. Não há campo em que a questão não se ponha e tudo nos coloca hoje
numa situação semelhante à daqueles que primeiro viveram a Ressurreição de
Cristo. Precisamente aqueles que a essa luz pascal perceberam o que realmente
vale.
No Ressuscitado compreenderam
que a vida se ganha quando se oferece e que viver em Cristo é viver com os
outros e para os outros, solidários como Ele foi e nos ensina a ser com todos e
cada um, a começar pelos mais frágeis e injustiçados. Precisamente com esses se
identificou Cristo crucificado. É estando com eles que mais estamos com Cristo,
que assim mesmo ressuscitou.
Isto nos leva à última frase
do Evangelho de há pouco. Diz que os discípulos «ainda não tinham entendido a
Escritura, segundo a qual Jesus havia de ressuscitar dos mortos» (Jo 2,9).
Assim como já respondemos a Maria Madalena, dizendo que sabemos onde está o
Senhor, digamos agora aos discípulos que sim, que entendemos a Escritura,
segundo a qual Jesus havia de ressuscitar dos mortos. E respondamos
convictamente tanto a uma como a outra interpelação.
Na verdade, toda a Escritura
que antecede a vida de Jesus só encontra “pleno cumprimento” no movimento total
que o nunca por demais citado hino da Carta
aos Filipenses nos entoa: “Sendo de condição divina, Cristo esvaziou-se a
si mesmo, tomando a condição de servo e até à morte e morte de cruz; por isso
mesmo Deus o elevou acima de tudo e lhe concedeu o nome que está acima de todo
o nome” (cf. Fl 2,6-11).
A promessa feita a Abraão
pressupôs também alguma “morte”, no sentido em que perdeu a sua terra e se
dispunha a perder o próprio filho. A saída do cativeiro egípcio pressupôs a
“morte” de Moisés como príncipe, para se retomar como condutor do povo de Deus.
A promessa feita a Davi viria a concretizar-se bem depois, quando daquele reino
já não restava senão a profecia - e como esta se realizou em Jesus, de modo tão
inesperado e despossuído de si.
Ressuscitar é renascer de Deus
e inteiramente d’Ele, pressupondo o esvaziamento de nós mesmos e do que
desejaríamos só por nós. Ou melhor, convertendo o que em nós exista de
aspiração pessoal mais profunda no perfeito cumprimento da vontade divina, para
que seja esta a conduzir-nos, da crucificação à glória.
Sabendo também que a vontade
divina tanto nos quer a nós como quer a todos - e a todos nos oferece como
sinais do seu amor. Por isso mesmo a cruz gloriosa tanto nos ergue para o Pai
como nos oferece aos irmãos, na haste que se eleva e nos braços que se
estendem.
Concretizar hoje mesmo esta verdade, na ação de graças que nos mantém em Deus e
no serviço concreto que prestarmos aos outros, é viver a Páscoa por que o mundo
espera. Sim, já entendemos que o caminho da Ressurreição passa sempre pela
cruz. Pois não se trata de fazer o que faríamos sozinhos, mas de oferecer aos
outros o que só Deus em nós gera. Assim aconteceu com Cristo e por isso o temos
redivivo e tão presente. Assim acontecerá conosco, quando a sua Páscoa for a
nossa vida.
Entendeu-o São Paulo, quando também
morreu para si e se ganhou em Cristo, dizendo-o depois em frases memoráveis,
como esta, que indica um integral percurso cristão: «Assim posso conhecê-lo a
Ele, na força da sua Ressurreição e na comunhão com os seus sofrimentos,
conformando-me com Ele na morte, para ver se atinjo a ressurreição de entre os
mortos» (Fl 3,10-11).
Façamos Páscoa em nós, para
alargá-la aos outros em cada momento que seja. Quando morrer totalmente o
egoísmo que aliás nos mataria, seja individual seja coletivamente; quando o bem
dos outros imperar nas nossas escolhas e atitudes; quando a vontade de Deus nos
levar ao serviço de cada um, começando pelos que mais nos requeiram: então o
coração alarga-se e a ressurreição desponta. Cristo está no meio de nós e por
nós no meio de todos!
Fonte: Patriarcado de Lisboa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário