Continuando os textos do site Vatican News sobre a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, publicamos hoje duas reflexões sobre os teólogos da reforma litúrgica:
19 de setembro de 2018
Damos continuidade neste nosso espaço memória
histórica ao tema da reforma litúrgica, que encontrou sua expressão máxima com
a Constituição Sacrosanctum Concilum do Concílio Vaticano II.
O objetivo desta reforma era de que o texto e as cerimônias deveriam ser
ordenadas de tal modo, que exprimissem mais claramente as coisas santas que
eles significam e que o povo cristão pudesse compreendê-las facilmente, participando,
à medida do possível, plena e ativamente da celebração comunitária.
No programa desta quarta-feira, padre Gerson
Schmidt, incardinado na arquidiocese de Porto Alegre - que tem nos acompanhado
neste percurso dos documentos conciliares – nos fala sobre os teólogos que
fomentaram a reforma litúrgica:
A reforma litúrgica não se deu de um dia para
outro, como se tivesse acontecido um Pentecostes tão somente no Concilio
Vaticano II. Houve um tempo de longa preparação, motivados pelos movimentos de
renovação litúrgica, pelos teólogos, liturgistas e também pelas reformas dos
papas anteriores ao concilio: Pio X, Pio XI e Pio XII.
A Constituição Sacrosantum Concilium, portanto,
não caiu do céu, mas é fruto de todo um clamor que vinha dos novos tempos, da
nova compreensão da liturgia, motivada pelos centros teológicos, que fomentaram
os princípios contidos na SC. Anselm Schott, por exemplo, tinha publicado
em 1884 um Missal popular, das formas de participação do povo, que teve grande
difusão nos anos sucessivos.
Em 1909, em Malines, por ocasião do Katholikentag (palavra
alemã, que se traduz por “dia do Católico”), o bispo Lambert Beauduin (+1960)
defendeu o fortalecimento da Liturgia celebrada com a participação do povo.
Esse encontro de Malines assinalou o início do movimento litúrgico no século
XX, encontrando eco na Holanda, Bélgica, Itália e França [1]. O movimento
litúrgico foi particularmente ativo nos países de língua alemã.
Os grandes teólogos desse movimento litúrgico foram
Odo Casel, OSB (+1948) e Romano Guardini (+1968). Guardini já havia escrito,
durante a I Guerra Mundial (1914-1918) a sua obra magistral intitulada “O
Espírito da Liturgia”, que terá uma influência enorme nessa reforma. Bento XVI
foi aluno e admirador confesso de Romano Guardini.
O destino realmente singular de Romano Guardini é o
fato de ter sido uma espécie de ‘mestre’ para nada menos do que três papas.
Paulo VI promoveu pessoalmente as suas primeiras traduções a partir do pequeno
livro La coscienza, que aconselhava aos seus estudantes da
Federação das Universidades Católicas Italianas. Bento XVI se percebe até mesmo
como uma espécie de discípulo espiritual e intelectual do grande pensador.
Finalmente, o Papa Francisco passou alguns meses na Alemanha para ler e estudar
Guardini....
O primeiro teólogo da Liturgia que se ocupou da
celebração enquanto tal foi Odo Casel (1948), pioneiro também por oferecer uma
reflexão do culto cristão sobre bases direta e primariamente teológicas. Para
ele a celebração é uma epifania, uma manifestação do divino na ação ritual
(...), o elemento principal do ato celebrativo é a presença-atualização da
salvação na ação sagrada e ritual, na qual intervém a prece da Igreja (...). A
ação sagrada é imitação simbólica do agir divino (mimésis), mas ao contrário do que ocorre na celebração das religiões
naturalistas, apoia-se numa palavra pronunciada como anúncio da intervenção
divina (Palavra de Deus) e na súplica que se seguiu como resposta à proclamação
[2].
Odo Casel preparou terreno para a Teologia do
Mistério Pascal e Romano Guardini, entre os tesouros, a ideia fundamental da
Igreja como Corpo Místico, ambos conceitos contemplados e valorizados nos
documentos do Concílio Vaticano II”.
26
de setembro de 2018
A palavra Liturgia tem sua origem no grego leitourgos, para denominar alguém que
fazia serviço público ou liderava uma cerimônia sagrada. Mesmo já sendo usada
na antiguidade, somente depois dos séculos VIII e IX passou a ser usada no
contexto da Eucaristia na Igreja grega.
Por meio da Liturgia, “exerce-se a obra da nossa
redenção” (Concílio Vaticano II, Sacrosanctum
Concilium, 2). Assim como foi enviado pelo Pai, Cristo enviou os apóstolos
para anunciarem a redenção e “realizarem a obra de salvação que proclamavam,
mediante o sacrifício e os sacramentos, em torno dos quais toda a vida
litúrgica gira” (ibid., 6).
“A Igreja pode celebrar e adorar o mistério de
Cristo presente na Eucaristia precisamente porque o próprio Cristo se entregou
antes a ela no sacrifício da cruz” (Sacramentum
Caritatis, 14). A Igreja vive desta presença e tem a difusão desta presença
no mundo inteiro como a sua razão de ser e de existir” (Bento XVI, Discurso de
15 de abril de 2010 aos Bispos do Brasil, Regional Norte-2).
Esta é a maravilha da liturgia, que, como o
catecismo recorda, é culto divino, anúncio do evangelho e caridade em ato (cf.
CIC, 1070). É Deus mesmo quem age, e nós nos sentimos atraídos por esta sua
ação, a fim de sermos, deste modo, transformados nele.
Inicialmente a liturgia era da responsabilidade dos
apóstolos e bispos, mas é sabido que algumas Igrejas criaram a sua própria
liturgia, como a Igreja da Alexandria no Egito e de Antioquia na Síria. Existem
várias manifestações de Liturgia, como a Liturgia ambrosiana, Liturgia de S.
João Crisóstomo, Liturgias orientais.
Até a metade do século XVI não havia uma regra
geral e obrigatória para a Liturgia. O Concílio Vaticano II representou uma
renovação da Liturgia, dando maior ênfase à Sagrada Escritura na Liturgia da
palavra e permitindo o uso de línguas em vez do latim, de forma que o fiel
pudessem melhor compreender e participar de forma mais ativa da celebração.
Na edição de hoje deste nosso espaço, padre Gerson
Schmidt, que tem nos acompanhado neste percurso de exposição dos documentos
conciliares, nos fala sobre a liturgia dentro da história da salvação:
A Constituição Sacrosantum Concilium não foi
proclamada no Concílio sem ter em conta a caminhada percorrida pelos teólogos,
liturgistas e Papas, antes do Concilio Vaticano II, num verdadeiro movimento
sério de Reforma da Liturgia. Os teólogos Odo Casel e Romano Guardini tiveram
sua importância fundamental aqui nos conceitos do Mistério Pascal e do Corpo
Místico. Também contribuíram Salvatore Marsili, Dom Lambert Beauduin, Maurice
Festugière, Cipriano Vagaggini. O caminho percorrido pelos papas Pio X, Pio XI
e Pio XII também deram mais um passo à frente.
O teólogo pioneiro na reflexão da teologia
litúrgica sem dúvida é Odo Casel. Casel, explorando a doutrina dos mistérios, construiu
a base sólida da teologia litúrgica a partir da tradição e do argumento
teológico. Para ele, “o mistério de Cristo é um conjunto orgânico e vivo que
não pode ser fracionado; é o grande mistério da redenção, portanto, onde está
presente o mistério central, como é o mistério da cruz, todos os demais
mistérios da vida de Cristo estão presentes” [3].
Isso o leva a afirmar a presença sacramental do ato
da morte e ressurreição de Cristo no ato litúrgico atual. Por isso, Casel ocupa
uma posição hegemônica na teologia moderna. Salvatore Marsili, outro expoente,
seguiu os passos de Odo Casel e continuou o seu pensamento, embora com as
devidas diferenças. Ao redefinir teologia como teologia do mistério de Cristo e
da história da salvação, naturalmente incluiu a Liturgia como um eixo da
teologia, pois a “Liturgia é aquela realidade na qual a revelação divina se
torna acontecimento de salvação em ato e se coloca como momento síntese de toda
a história da salvação” [4].
A Constituição Sacrosantum
Concilium insere a Liturgia no seu lugar legítimo que é dentro da história
da salvação. “Dentro da história da salvação existe uma economia eclesial e
litúrgica. Aqui, torna-se evidente que a Liturgia é o elo que liga o tempo de
Cristo e o tempo da Igreja. A ação litúrgica aparece claramente como um momento
da revelação” [5].
A história da salvação é atualizada nos ritos e
sinais sagrados. Se a história da salvação não fosse ritualmente celebrada se
transformaria em mero fato do passado, seria apenas um “rito mitológico,
alienante e incapaz de despertar em nós a esperança escatológica”.
[1] Helmut Hoping. A Constituição Sacrosanctum Concilium. in: As Constituições do Vaticano II, ontem e hoje. Geraldo B. Hackmann
e Miguel de Salis Amaral (org.). Edições CNBB, 2015, p.104.
[2] J. L.Martin, No Espírito e na Verdade,
I, p. 187.
[3] J.J. Flores. Introdução à teologia litúrgica, Paulinas, 2006, pp.197-198.
[4] ibid.,
p.247.
[5] Apontamento de Dom Geovane Luiz da Silva, Bispo
Auxiliar de Belo Horizonte, enquanto ainda padre da Arquidiocese de Mariana.
Subsídio entregue na Assembleia Regional do Clero, Região Episcopal da
Conceição – Arquidiocese de Belo Horizonte, p. 07.
Abadia de Maria Laach, na Alemanha Lar de Odo Casel e outros teólogos do Movimento Litúrgico |
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