O site Vatican News continua a publicar esporadicamente textos sobre a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Hoje recordamos aqui três textos que refletem sobre a novidade da Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia:
29
de agosto de 2018
A Constituição Sacrosanctum Concilium
e o espírito de “aggiornamento” do Concílio é o tema do nosso
Espaço Memória Histórica, 50 anos do Concílio Vaticano II desta quarta-feira.
No nosso Espaço Memória Histórica, iniciado em
2013, já dedicamos mais de 200 programas ao tema Concílio Vaticano II.
Começamos pela contextualização e pelos eventos que levaram à convocação do
Concílio, época em que contamos com a preciosa colaboração do Padre João
Batista Libânio, falecido em janeiro de 2014. Passamos pela abertura, a
participação do episcopado brasileiro no evento e agora repassamos os
documentos, tendo concentrado os últimos programas à Constituição Sacrosancutum Concilium.
O Concílio Vaticano II não surgiu de uma hora para
outra. Estava sendo gestado pelos movimentos de renovação. Um novo concílio era
inevitável, iria acontecer, cedo ou tarde. Pio XII, Papa anterior a João XXIII,
que convocou o Concílio, já tinha pensado num Concílio Ecumênico.
Embora tenha um caráter especificamente pastoral, o
Concílio Vaticano II não deixou de fazer uma belíssima síntese teológica,
sobretudo nas duas grandes Constituições Dogmáticas Dei Verbum (1965)
e Lumen Gentium (1964) e também através da Sacrosanctum Concilium (1963). Deixamos claro aqui, em outro
momento se deixou na dúvida, que a Constituição Conciliar Sacrosanctum
Concilium não é dogmática, justamente porque prevê adaptações na Liturgia,
salvaguardando o essencial e divino. As Constituições Dogmáticas são
unicamente Dei Verbum e Lumen Gentium. Mas
lembramos que essas três Constituições falam dos aspectos constitutivos da
Igreja.
O Concílio não causou uma ruptura na tradição da fé
da Igreja. Não podemos separar o Concilio Vaticano II dos outros Concílios
precedentes e torná-lo como um “superconcílio”, como afirma Helmut Hoping,
padre professor de Teologia da Universidade de Friburgo. Por isso, na
fronteira de uma nova época, que hoje é chamada de “mudança epocal” ou “mudança
de época”, o Papa João XXIII convoca toda a Igreja para um verdadeiro “aggiornamento”.
Aggiornamento é
um termo italiano, que significa “atualização”, renovação. Esta palavra foi a
orientação chave dada como objetivo para o Concílio Vaticano II, convocado pelo
Papa João XXIII. “O aggiornamento para adequar a Igreja aos
tempos atuais não deveria significar a mera adaptação a relações mutáveis, mas
sim abertura ao mundo moderno. O aggiornamento da Igreja, que
era o objetivo do Concilio, não se verificou através da ruptura com a tradição,
nem com a adaptação a um ambiente transformado; deu-se sobretudo de um aggiornamento que
entrelaçou as tradições mais antigas, em parte esquecidas, com o tempo
presente” [1].
No século XIX a Igreja entrou num isolamento do
mundo moderno. O Concílio Vaticano II deveria superar esse isolamento,
dialogando com os novos tempos e a nova realidade. Isso não significa uma
hermenêutica de ruptura com os princípios, com os valores da tradição até então
guardados no depositum fides (tradição da fé).
Os padres conciliares não queriam criar uma nova Igreja,
mas uma Igreja renovada. A Igreja não pode ser reinventada
negligenciando-se a doutrina, a tradição, os dogmas e os costumes. A Revelação
de Deus não se inventa, mas se atualiza de acordo com os novos desafios. Não se
pode criar outro credo, mas renovar os princípios da fé verdadeiramente
conforme às novas necessidades e emergências atuais.
A Constituição Conciliar Sacrosanctum
Concilium resume o espírito do aggiornamento da seguinte
maneira: “fomentar a vida cristã entre os fiéis, adaptar melhor às necessidades
do nosso tempo as instituições susceptíveis de mudança, promover tudo o que
pode ajudar à união de todos os crentes em Cristo, e fortalecer o que pode
contribuir para chamar a todos ao seio da Igreja” (SC, 01).
05 de setembro de 2018
No
nosso espaço “Memória História - 50 anos do Concílio Vaticano II”, vamos
continuar a falar sobre a novidade da Sacrosanctum
Concilium.
Trata
da Liturgia da Igreja Católica, especialmente a da Igreja latina, em
continuidade com a Encíclica Mediator Dei
do Papa Pio XII. Os princípios enunciados constituíram o ponto de partida para
a reforma litúrgica implementada após o encerramento do Concílio Vaticano II.
A
Constituição Sacrosanctum Concilium
sobre a Sagrada Liturgia foi publicada pelo Concílio Vaticano II em 04 de
dezembro de 1963, dia do encerramento da segunda sessão do Concílio. Na
presença do Papa Paulo VI, o documento conciliar teve a aprovação (o placet) de 2.147 votantes e tão somente
4 votos contra. Ou seja, quase a maioria dos padres conciliares concordou com o
documento como foi promulgado.
Essa
Constituição representou uma novidade na história da Igreja. Pela primeira vez,
um Concílio Ecumênico havia se debruçado de maneira exaustiva sobre a Liturgia
do Rito Romano, estabelecendo a renovação geral da Liturgia com propostas
concretas.
De
fato, esse aggiornamento da Igreja,
grande objetivo do Concílio Vaticano II, jamais foi tão claro e visível como no
caso da Liturgia. As adaptações, a reforma, a renovação da Liturgia deveria ser
feita, porém, “com prudência, no espirito da sã tradição” e adaptada “de acordo
com as circunstâncias e as necessidades de nosso tempo”, como aponta a SC, no
número 04.
De
acordo com o princípio da continuidade, a Constituição formulou o princípio do
desenvolvimento orgânico da liturgia, prestando atenção ao fato de que novas
formas deveriam surgir “daquelas já existentes”(SC, n.23) [2]. Portanto, não há
um descontinuismo, uma ruptura, como, de fato, tantas interpretações errôneas
foram feitas após o Concílio.
Aqui
queremos lembrar o que foi escrito e aprovado no número 21 da constituição Sacrosanctum Concilium: “A santa mãe
Igreja, para permitir ao povo cristão o acesso mais seguro à abundância de graças
que a liturgia contém, deseja fazer uma acurada reforma geral da liturgia. Na
verdade, a liturgia compõe-se de uma parte imutável, porque de instituição
divina, e de partes suscetíveis de mudanças. Estas, com o passar dos tempos,
podem ou mesmo devem variar, se nelas se introduzirem elementos que menos
correspondam à natureza íntima da própria liturgia, ou se estes se tenham
tornado menos oportunos. Nesta reforma, porém, o texto e as cerimônias devem
ordenar-se de tal modo, que de fato exprimam mais claramente as coisas santas
que elas significam e o povo cristão possa compreendê-las facilmente, à medida
do possível, e também participar plena e ativamente da celebração comunitária”.
Portanto,
na Liturgia há aspectos divinos e imutáveis e outros suscetíveis de mudanças e
adaptações. Porque houve no decorrer da história da Igreja muitos acréscimos de
alguns aspectos secundados, de algumas roupagens desnecessárias e desconexas na
Liturgia. Damos como exemplo, o demasiado tom penitencial medieval na Liturgia
ou os introitos acrescentados na procissão de entrada quando os reis
participavam da Missa, havendo aquelas introduções longas e que não fazem parte
da Eucaristia primitiva.
Diz
mais uma coisa nesse número 21 que quero destacar: que a reforma, porém, ordene-se
de tal modo que de fato exprimam mais claramente as coisas santas. Ou seja, o
mistério precisa ser mais claro que permita - como conclui esse número 21 - a
participação mais plena e ativa dos fiéis na celebração.
12 de setembro de 2018
De
acordo com o princípio da continuidade, a Constituição Sacrosanctum Concilium formulou o princípio do desenvolvimento
orgânico da liturgia, prestando atenção ao fato de que novas formas deveriam
surgir “daquelas já existentes”. Neste sentido, no documento conciliar
promulgado em 4 de dezembro de 1963 pelo Papa Paulo VI, não há uma
descontinuidade, uma ruptura, como afirmam determinadas leituras.
A
constituição Sacrosanctum Concilium
propõe uma reforma geral da Liturgia nas coisas que podemos mudar e que não
sejam essenciais. Diz assim o número 21: “Nesta reforma, porém, o texto e as
cerimônias devem ordenar-se de tal modo, que de fato exprimam mais claramente
as coisas santas que eles significam e o povo cristão possa compreendê-las
facilmente, à medida do possível, e também participar plena e ativamente da
celebração comunitária”.
Portanto,
que a reforma ordene-se de tal modo que de fato exprimam mais claramente as
coisas santas. Ou seja, o mistério precisa ser mais claro que permita - como
conclui esse número 21 - a participação mais plena e ativa dos fiéis na
celebração. É claro que a liturgia continuará sempre a ser um mistério
imensurável da fé. Continuará sempre ser um “mistério”, uma fonte inesgotável
que não podemos abarcar com toda a nossa capacidade intelectual. Por ser
divino, é inesgotável. Mas não podemos cair no outro extremo de dizer que, por
ser mistério da fé, seja obscuro, seja ininteligível.
A Liturgia
precisa ser mais expressiva, de forma que o povo entenda, mergulhe e participe
ativamente, sem o fiel ser um mero expectador, como se estivesse assistindo um
teatro ou um filme, sem se envolver, com o Mistério Pascal que ali se dá, se
realiza e se atualiza.
Por
isso, “toda celebração litúrgica, como obra de Cristo sacerdote e do seu corpo,
que é a Igreja, é uma ação sagrada por excelência, cuja eficácia nenhuma outra
ação da Igreja iguala, sob o mesmo título e grau” (SC, 07). Fala-se nesse
número 07, da eficácia da Liturgia, porque na história houve muitas
controvérsias a respeito do sacramento. Martinho Lutero quis salientar a
necessidade das predisposições do sujeito para que os sacramentos produzam
fruto. Erra quando afirma que essas predisposições sejam a causa eficaz do
sacramento em si mesmo.
Por
isso, o Concilio de Trento definirá a eficácia dos sacramentos, dizendo que
quem afirmar que os sacramentos são apenas sinais externos da graça, seja
considerado anátema (ou seja, fora da doutrina de Cristo). A presença da graça
divina no sacramento não depende da santidade daquele que administra o
sacramento, nem daquele que o recebe. A causa da graça não é o homem e seus
méritos. Mas unicamente Jesus Cristo. Daí dizer-se: o sacramento age “ex opere operato” (frase latina que
traduzida significa realizar com eficácia o que significa e simboliza o
sacramento) é o mesmo que afirmar que uma vez realizado o rito sacramental,
colocados os sagrados símbolos em matéria e forma, Jesus Cristo age e se torna
realmente presente, sem sombra de dúvida.
Diante
dessa controvérsia luterana, sabemos que na história, na Liturgia, se acentuou
demasiadamente, na Liturgia católica, o princípio da eficácia do sacramento, em
detrimento aos sinais litúrgicos e celebrativos – dessa clareza pedida pela SC.
Por causa dessa eficácia operante (“ex
opera operatur”), não se deu mais tanta importância aos sinais litúrgicos e
se negligenciou essa expressão mais clara das coisas santas (SC, 21), pedida agora
pelo Concílio Vaticano II.
Por
isso, é possível entender o apelo dos padres conciliares: “Nesta reforma,
porém, o texto e as cerimônias devem ordenar-se de tal modo, que de fato
exprimam mais claramente as coisas santas que eles significam e o povo cristão
possa compreendê-las facilmente, à medida do possível, e também participar
plena e ativamente da celebração comunitária”. Ou seja, a importância dos sinais
– não só da eficácia sacramental.
[1] Helmut Hoping. A Constituição Sacrosanctum Concilium. in: As Constituições do Vaticano II, ontem e hoje. Geraldo B. Hackmann
e Miguel de Salis Amaral (org.). Edições CNBB, 2015, pp. 99-100.
[2]
ibid., p.102.
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